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Fotografia: Bruno Simão
Publicado a: 19/02/2025

Canções para combater a exclusão e o isolamento social.

“Nós Somos os Ciganos de Portugal”: a música como uma arma

Fotografia: Bruno Simão
Publicado a: 19/02/2025

A hora de encontro estava marcada para as dez da manhã. Era domingo, um dia que para muitos significava descanso ou estar em família. Para o grupo musical La Familia Gitana era dia de ensaio. O primeiro a chegar foi o elemento mais jovem, Moisés Montoya, acompanhado pelo seu teclado. Logo depois, Ari Monteiro, guitarrista, Ângelo Quintino, mais conhecido por BA, e Hugo Fonseca, os dois percussionistas, chegaram apressados com o pequeno almoço ainda por tomar. Num compasso de espera pelo Ângelo Vasques, vocalista, BA revela que compôs uma letra. Com um brilho nos olhos, Ari tira a guitarra do saco e dedilha alguns acordes até sair uma melodia.

O entusiasmo contagiou rapidamente os restantes, que acompanharam com palmas. Sem darem por isso, um compasso de espera tinha-se tornado num concerto intimista, onde as notas e ritmos ciganos ecoavam pelas ruas do Bairro do Fim do Mundo, no Estoril. Não foi há tanto tempo que aquela música deixou de ser apenas apreciada pelos próprios moradores do bairro, que paravam para ouvir, e alcançou outros públicos. Há mais de 500 anos, as primeiras comunidades ciganas chegaram a Portugal, no entanto, nos tempos que correm ainda contamos só pelos dedos das mãos os músicos ciganos que vingaram com a sua cultura em Portugal. 

“Houve sempre interesse [pela comunidade cigana] apenas num sentido artístico. Num sentido antropológico e etnográfico, a música cigana nunca foi contemplada”, explicou Tiago Pereira, criador da Associação “A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria” e autor do projeto “A Música Cigana a Gostar dela Própria”, no qual gravou mais de 250 músicos ciganos por todo o país. “O que eles fazem é etnográfico; ainda por cima, são uma etnia específica. Eles sempre foram acompanhados pela música, não é à toa que se diz que o cigano nasce a saber cantar. Nasce nas casas e nas festas, é algo que já está intrínseco”, afirma. 

Ari Monteiro aprendeu a tocar guitarra aos sete anos com o seu pai, Bernardo Monteiro, que já tinha um historial na música. Em jovem criou um projeto com os irmãos e primos, José Luís Quintino, Tomás Fernandes, Sandro Fonseca e Micael Fernandes. Chamavam-se de Soul Gypsy. Apesar dos grandes autores da música flamenca — El Camarón, Paco Castillo, Parrita, entre outros — já tocarem religiosamente nas casas de cada um, foram os seus pais e tios que se tornaram uma inspiração, mais tarde, para a criação do grupo La Familia Gitana, composta por seis primos: Ângelo Vasques, na voz, Rui Marques e Ari Monteiro, nas guitarras, Ângelo Quintino e Hugo Fonseca, nos cajóns, e Moisés Montoya, no teclado. 

“Fui convidado a tocar na festa de Natal no bairro da Boa Nova, mas só tinha uma música composta, e, por isso, não sabia o que ia tocar”. Estávamos no local onde tudo começou.

Ari tinha criado aquela única música no antigo espaço do Take IT: Talentos e Artes com Criatividade e Empreendedorismo, um projeto de ação social que visa direcionar jovens tanto a nível pessoal como profissional. “Lembro-me de estar aqui com o meu pai a ensinar-me alguns acordes para ganhar mais repertório, mas ainda precisava de alguém que cantasse. O meu pai chamou o Ângelo [Vasques], e mais tarde arranjámos também o outro amigo, Garras, para tocar cajón (instrumento de percussão em forma de caixa) e fizemos um concerto. Naquela altura, não tínhamos a ideia de fundar uma banda. Até que fomos ensaiando mais e decidimos criar só pelo divertimento”. Apesar da saída de alguns elementos, as brincadeiras passaram a ser chamadas de ensaios, e este projeto mantém-se até hoje, somando oficialmente seis anos de existência. Ari confessa que foi quando subiu ao palco da Gulbenkian, no âmbito do projeto BoCA (Biennial of Contemporary Arts), que começaram a levar isto mais “a sério”. Além dos vários vizinhos que ficavam à janela da sala de ensaios a escutar as suas canções, estavam a criar um público fora do seu bairro. 

Foi nos bares noturnos de Lisboa que encontramos um percurso semelhante. Fomos a uma noite flamenca no bar So What, um espaço arquitetonicamente idêntico a um bar de jazz, onde um grupo de músicos se preparava no pequeno palco iluminado por um holofote de pouca intensidade. Escondido entre as cortinas de veludo vermelhas, estava o vocalista Diego El Gavi a rever o seu reportório. A sala não sabia o que esperar, mas todos os olhares estavam postos nos músicos. Ouvimos o solo de guitarra acompanhado pelo bailarino que se movia a favor da melodia, enquanto os cajóns marcavam o tempo, ainda com algumas ondulações rítmicas livres. Diego El Gavi entrou com a sua projetante voz e com os seus “ais”, cheios de sentimento, que “ilustram os vários anos de sofrimento e exclusão da própria comunidade”. Naquela noite, o público foi transportado até uma verdadeira casa flamenca. 

A verdade é que, durante muito tempo, Diego El Gavi não acreditava que pudesse fazer da música a sua vida, embora ela fizesse parte do seu crescimento de uma forma visceral. Começou a cantar aos cinco anos de idade e, em casa, costumava dar pequenos concertos privados. “A minha mãe contava que os obrigava a assistir, caso contrário, fazia uma birra. Pegava no cabo da vassoura como se fosse uma guitarra e eles tinham de assistir. Cantava por cantar. Não tinha noção”, conta. 

Aos 16 anos, criou a sua primeira banda, Los Gitanos, inspirada nos Gypsy Kings. “O nosso primeiro concerto aconteceu por mera brincadeira”, disse Diego El Gavi. Aconteceu num café no centro comercial da Damaia, onde Diego e os seus amigos costumavam parar para beber um café. “Pensei que nessa noite não aparecesse ninguém, mas as pessoas já sabiam que nós fazíamos aquelas brincadeiras”, explicou. Por uma feliz coincidência, uma multidão enchia o interior e o exterior do café. “Tocámos das oito às nove e meia. O mais engraçado foi no final do concerto, quando havia pessoas a chegar e pensavam que aquilo era o início. Acabámos por fazer uma segunda parte das dez às onze e meia, porque foram chegando mais pessoas. Quando começámos a fazer mais concertos e a receber cachê, achei que era possível.”

Até que certos elementos do grupo se casam. “Com o casamento, a vida deles mudou completamente. Já não tinham a mesma disponibilidade para ensaios e, se só houvesse concertos a um fim de semana, tinha de ser muito bem programado. Comecei a ter algum receio”, conta o músico. O nome Los Gitanos acabou por desaparecer e, sem opções,  Diego foi forçado a pôr a sua paixão de parte. A música voltou a pulsar nas suas veias quando se mudou para Lisboa. “Tive uma banda com sete ciganos, aproveitando o nome da anterior [Los Gitanos]. Nunca toquei tanto na minha vida, porque tínhamos um manager que nos punha a tocar em tudo o que era sítio.” Mas foi novamente um projeto de curta duração, levando Diego a fazer uma promessas a si mesmo: “Se eu quero vingar na música, não posso ter ciganos comigo, pelo menos neste estado”. 

Diego decidiu dedicar-se ao flamenco com o guitarrista Paulo Croft. “Desenvolvi um gosto pelo flamenco ao ouvir El Camarón de la Casa, Paco Lucia, Vicente Amigo, Tomatito, todos os grandes artistas espanhóis. E achava que era ali que começava a música a sério”, embora reconhecesse o caminho difícil que teria de enfrentar. “Há 10 anos, não se ouvia flamenco na Rua Cor-de-Rosa. Eram coisas muito dispersas”, explicando ainda que os programadores associavam o Flamenco aos ciganos e que, por consequência, “estavam com medo de marcar salas”. O cantor conta que teve de ouvir muitas vezes a frase: “Música cigana aqui não”. Contudo, graças ao trompetista de jazz Ricardo Pinto, Diego El Gavi viu abrirem-se portas para o seu flamenco.



[A nova montra da música cigana]

Anos depois, foi com o crescimento de plataformas como o YouTube, o Facebook e o Instagram que a comunidade cigana conseguiu romper a sua bolha e alcançar outros públicos. Olhemos para o caso mais mediático, Nininho Vaz Maia. O artista começou quando um vídeo seu, no qual aparecia sentado no sofá da sala e com uma pulseira eletrónica no tornozelo, a tocar guitarra enquanto cantava o seu tema “Já Conheço o Teu Olhar”, se tornou viral. “Hoje em dia, com as redes sociais, nós não enfrentamos o problema que a geração dos nossos mais velhos enfrentou há uns anos. É muito mais fácil chegar a um maior número de pessoas hoje em dia do que naquela altura, em que a divulgação se fazia apenas por CDs”, apontou BA. Ari acrescenta que foi com a publicação dos vários singles no YouTube que a sua música foi além fronteiras. “Chegaram-nos a contactar de Badajoz, uma cidade espanhola, e fomos lá a cantar”. 

Ainda assim, o realizador Tiago Pereira confessa que a música cigana ainda vive numa “espécie de submundo do YouTube” e que não chega a toda a gente. “É um YouTube que só é visto pelos próprios ciganos. Se procurares por música cigana na plataforma, nunca mais acaba, só que as coisas não estão filtradas, e por vezes estão mal gravadas”. O autor do projeto MPAGDP, afirma que os programas de televisão como o Got Talent e The Voice são uma forte solução para a imagem da comunidade cigana e para a promoção da cultura, “porque funcionam exatamente como uma montra anticiganofobica, quebrando o preconceito através da música”. É o caso do cantor Emanuel Matos e do seu irmão guitarrista, António Matos, que um ano depois de gravarem para o projeto Música Cigana a Gostar Dela Própria, foram convidados a participar no programa Got Talent, onde chegaram à semifinal. 

[Mistura: arma contra o preconceito]

Embora a comunidade tenha alcançado algumas conquistas, Diego El Gavi considera que ainda há muito trabalho a fazer, tanto pela comunidade cigana como pela comunidade não cigana. Em 2019 lançou o seu primeiro álbum, Puerta del Alma, um disco no qual a essência do flamenco se funde com outros géneros musicais, como o jazz latino e o soul. Diego afirma que a comunidade cigana não compreendeu o álbum. “Já sabia que não ia agradar a comunidade cigana, só aos menos conservadores. Quando saiu, os ciganos não compreendiam, diziam: ‘Isto é um disco, mas não é para nós’”, conta o músico. Ao contrário de certos ciganos, o músico confessa que a sua abertura a outras culturas foi motivada pelo seu avô materno. “Das coisas que ele me disse, ficou-me a ideia de não perdermos o que é nosso, mas também de não nos fecharmos dentro do que é nosso”, uma ideia que aplica na sua música. Apesar de ter começado no flamenco, Diego considera que a sua música é “do mundo”. “Não gosto de estar só agarrado à palavra ‘flamenco’. Gosto de fazer música com a qual me sinta realizado.”

Por outro lado, Tiago Pereira não deixa de realçar que embora haja desconfiança e pouca abertura, o processo de integração deve ser feito ao contrário: “Não são eles [os ciganos] que têm de se adaptar a nós. Somos nós que temos de nos adaptar a eles.” O realizador, que percorreu Portugal para conhecer as várias musicalidades que ilustram a comunidade cigana, confessou que se deparou com bairros “completamente horríveis, sem luz e sem saneamento,” o que o fez questionar: “Como é que eles podem pensar? Como é que conseguem ir para à escola?” Além das condições básicas, a mudança começa quando a cultura cigana é reconhecida como parte integrante de Portugal. 

Apesar de ter despertado a curiosidade de algumas pessoas pela música, em especial o flamenco, Diego El Gavi admite estar cansado de não ver ainda uma verdadeira adoção do género em Portugal. “Uma coisa que faço sempre nos meus concertos é dizer que a música que toco é também dos portugueses. Nós estamos cá há 500 anos, e por isso não somos imigrantes. Nós somos portugueses. Nós nascemos cá. E enquanto os portugueses não agarrarem a música cigana e a adotarem como deles, não vamos a lado nenhum”. Ambos concordam que a mistura poderá ser uma solução para a preservação e valorização da música cigana, mas também uma mais-valia para a música portuguesa. “Enquanto isso não acontecer, a música não se vai alterar. É preciso que haja estas influências para que esta possa haver uma transformação e criar uma tradição nova”, explica Tiago Pereira.

[Enquanto o cigarro estiver aceso]

Ainda assim, vários artistas têm tido este cuidado e interesse. Em 2023, o mediático artista Pedro Mafama convidou os La Familia Gitana e Diego El Gavi para participar em algumas faixas do seu mais recente disco Estava No Abismo Mas Dei Um Passo Em Frente. Numa perspetiva mais multidisciplinar, os La Familia Gitana juntaram-se ao poeta António Poppe para incorporarem o espetáculo “Música Cigana Camões Yanomami / A Soma de Todxs”, que, em palco, fundiu a música cigana com a poesia camoniana. “A música cigana é uma música que nunca foi tão ouvida como outras, exceto por ciganos. Mas acho que hoje toda a gente gostaria de misturar a música cigana com as suas músicas. Para nós é bom porque vamos alcançar vários públicos”. No entanto, para os La Familia Gitana existe um limite. “Não queremos sair por completo, mas queremos explorar e aprender. Talvez consigamos formar um grupo diferente, e é esse diferente que nos permitirá voar”, admitiu Ari. “Acho que a música cigana deve seguir o tradicional, se não a cultura perde-se”, acrescentou BA.

“Agora estamos numa boa fase”, afirma Diego El Gavi, porém não baixa a guarda. Com a escalada do “extremismo político”, o músico teme que “comecem a destruir o que tem sido feito até agora, sobretudo na música cigana”. Os La Familia Gitana designam esses problemas como “muralhas”, que pretendem derrubar. Questionados sobre quais são as próximas metas, os La Familia Gitana respondem: “Só queremos mostrar um pouco da nossa cultura, e fazer com que as pessoas nos queiram conhecer, porque só assim é que se quebra a ignorância”. O refrão “Nós somos os ciganos de Portugal / E do Estoril” é escutado pelo bairro do Fim do Mundo, como um hino de afirmação e pertença. No outro lado da estrada dos seus estúdios está o moral de uma das suas inspirações — El Camaron de la Casa — e lá ficou gravada uma das suas letras: “Com a luz do cigarro vi o moinho, o cigarro apagou-se e eu perdi-me”. Mas, ao contrário do que sugere a letra, os músicos ciganos lutam para que este não se apague, mantendo-se como a chama que ilumina o caminho da resistência e da inclusão. No bairro do Fim do Mundo, a música ecoa como um lembrete de que as “muralhas” podem cair — basta ouvir, compreender e abrir espaço.


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