Quando existe total liberdade em curar um evento, cria-se a possibilidade de ir buscar os nomes mais arrojados para se emoldurar num cartaz, permitindo ao público — mesmo às cabeças mais atentas — dar de caras com um ou outro nome que até então não se tinha prestado a devida atenção. André Forte já tinha chamado à atenção por cá quando apontou Kaloli como um dos melhores projectos lançados em 2020, mas este parece mesmo ser o ano mais urgente de sempre para Nihiloxica, que vieram mais corrosivos do que nunca no seu Source of Denial, trabalho que os faz integrar o alinhamento para o recém-criado festival lisboeta Vale Perdido, onde actuam no Armazém 8, em Marvila, dia 17 de Novembro.
Esta é uma banda que nasce de uma ligação não assim tão óbvia à partida. No seio da Nyege Nyege Tapes, os produtores ingleses Spooky-J e pq fundiram-se ao Nilotika Cultural Ensemble, do Uganda, e juntos têm trilhado um percurso discográfico bastante interessante, que encontra paralelismos e contrastes entre a espiritualidade do som dos tambores do reino de Buganda e os rituais que têm lugar nas masmorras da cena rave — há uma certa adoração em ambos os lados desta moeda, que tem tanto de sagrado com de profano.
Na ressaca da edição do seu segundo álbum pela Crammed Discs, estabelecemos contacto com Nihiloxia via Zoom para perceber que trevas nos aguardam durante o seu electrizante espectáculo agendado para Lisboa, naquela que será a segunda passagem do grupo por Portugal após uma série de datas em 2018. Durante a conversa, tivemos a oportunidade de perceber como se formou este projecto, de escutar histórias de ghosting artístico sofrido pelos músicos ugandeses e ainda de decifrar o código genético que forma este novo LP Source of Denial.
Pelo que percebi, vocês estão divididos entre o Reino Unido e o Uganda, é isso?
[Spooky-J] Mais ou menos. Eu vivo em Amsterdão neste momento. O Pete vive no Reino Unido, tecnicamente, mas anda por todo o lado. O resto da malta está sediada no Uganda.
Vocês procuram encontrar-se com regularidade, ou os contactos dão-se maioritariamente via Internet?
[Spooky-J] Inicialmente estivemos em Kampala todos juntos. Depois do COVID-19, o mundo ficou um bocado mais complicado e nós espalhámo-nos por aí. Comparativamente aos anteriores, este álbum foi aquele que compusemos mais separados uns dos outros, digamos assim. Depois, juntámo-nos para o ensaiar e gravar.
Vocês tinham carreiras a solo antes de Nihiloxica ou esta foi a vossa primeira experiência a editar música?
[Spooky-J] Todos tínhamos cada um a sua cena, de alguma forma. Digamos que Nihiloxica é o nosso projecto mais bem-sucedido.
[pq] Sem dúvida. Eu e o Jacob temos vindo a editar música electrónica. Não sei se vocês já tinham editado algo…
[Henry “Prince” Kasoma] Sim, enquanto Nilotika.
E em que altura é que vocês se cruzam nos caminhos uns dos outros?
[Spooky-J] Eu conheci-os em 2016. Fizemos umas gravações para alguns projectos. Depois disso, decidi voltar no ano seguinte, juntamente com o Pete, para iniciarmos a banda. Portanto, inicialmente tive alguns encontros, até que depois decidi: “Ok, vamos trabalhar juntos como deve de ser.” No ano seguinte voltei e gravámos o material que acabaria por sair no primeiro EP pela Nyege Nyege Tapes.
Foi uma espécie de amor à primeira vista, ou demorou algum tempo até terem noção de que essa era uma fusão que fazia sentido?
[Spooky-J] Para mim, sempre me soou a uma ideia bastante arrojada. Eu queria fazer uma banda em que pudesse meter sintetizadores e electrónica em cima de percussões. Quando nos juntámos, lembro-me de ter pensado, “não sei se isto vai funcionar.” Mas, depois, passámos um mês inteiro só a ensaiar e a gravar, e acho que durante esse período foi quando começámos a sentir que, “Ok, isto até pode vir a dar certo.” No final, percebemos que a coisa até tinha ficado bastante fixe. O que é que tu achas, Prince?
[Henry “Prince” Kasoma] Acho que foi assim como dizes. Ao início demorou a perceber o que ía sair dali, não havia muita confiança e não levámos a coisa como algo muito sério. Nós estamos habituados a ser explorados pelas pessoas deste lado do globo. Há pessoas que vêm ter connosco para trabalhar em projectos e depois desaparecem do nada. Mas eles os dois fizeram um trabalho mesmo bom. Nesse período em que passámos um mês inteiro juntos, também deu para nos interligarmos e conhecermo-nos melhor uns aos outros. Isso ajudou muito a cimentar o projecto.
Houve algum receio em misturar estas duas sonoridades? É que de um lado há o som de Nilotika Cultural Ensemble, que é uma coisa tão tradicional e, de certa forma, sagrado, enquanto que do outro temos toda aquela escuridão do techno e da cena rave.
[Henry “Prince” Kasoma] Nós não tivemos receio em fazer essa mistura. O único receio que tivemos foi mesmo só o de estarmos a ser usados. Nós estamos habituados a ter convites para trabalhar e depois essas pessoas desaparecem com o disco, ao ponto de nós nunca conseguirmos retirar proveito nenhum das coisas. Essas coisas aconteceram-nos. Mas não temos qualquer receio de misturar certas sonoridades com a música da nossa cultura.
Vocês começaram por editar a vossa música na Nyege Nyege Tapes e agora estão afiliados à Crammed Discs. Ou seja, neste momento são uma banda meio inglesa, meio ugandesa, que edita música por um selo belga. Tem sido um desafio ter a vossa música a circular por tantas paragens ainda antes de ser editada?
[Spooky-J] Na verdade, nós não fazemos nada na Bélgica. A editora está lá sediada, mas fora isso, não vamos lá fazer nada. Nós trabalhamos predominantemente no Uganda. Se estivermos juntos a compor, isso por norma acontece em Kampala. Muitas das ideias podem ser escritas noutros lados — no computador, em casa, nos nossos quartos —, mas quando nos juntamos para ensaiar os temas, isso acontece em Kampala. Depois, na estrada, tocamos com regularidade e talvez as músicas consigam ficar ainda mais coesas. Mas o processo de composição é maioritariamente feito no Uganda.
Como é que funciona esse processo de composição? As coisas partem muito dessas ideias que vocês trazem, ou há coisas que nascem completamente do zero, lá no Uganda?
[pq] Nós temos diferentes maneiras de abordar esse processo. No que toca à minha parte, eu adoro surgir com um som louco de sintetizador, uma espécie de riff. Eu sou um gajo do metal, por isso tenho tendência a surgir com esse tipo de padrões. Então, chego ao pé da malta e “está aqui isto.” Depois adicionam-se os tambores. Essas ideias que eu trago, tento criá-las já com base no som do Uganda, se é que me entendes. Também podemos começar por um ritmo qualquer tradicional que os gajos da Nilotika passaram a vida inteira a tocar e nos trazem. Aí pensamos: “Como é que vamos adicionar sintetizadores a isto?” Essas são as duas formas principais pelas quais começamos.
E existe sempre uma ideia na base, ou também têm por hábito ir para um estúdio apenas para jammar e ver o que sai?
[pq] Claro.
[Spooky-J] Sim, esse também pode ser um ponto de partida. Às vezes estamos a ensaiar no estúdio, chegamos a um certo ritmo e depois experimentamos adicionar algo em cima disso. Diria que este último álbum foi um bocado mais planeado do que os outros. Mas nos anteriores costumávamos ter um ritmo como base, depois o Prince adicionava algumas coisas por cima e desenvolvíamos a partir daí. Mas sim, há diversas formas diferentes que usamos para compor coisas.
[pq] Agora lembrei-me: uma das faixas deste disco, a “Postloya”, é toda ela uma jam, basicamente. Acho que consegues sentir isso ao escutá-la. É mais livre, mais aberta. Fomos apenas tocando as coisas sem demasiado controlo.
Vocês quando partem do Uganda, saem de lá já com o álbum fechado? Ou trazem as pistas com vocês e depois ainda lhe aplicam alguma pós-produção?
[Spooky-J] Nós recorremos muito à pós-produção, sim. Tudo o que forem tambores, é tudo gravado no Uganda, nós todos juntos na mesma sala. Depois disso adicionamos os sintetizadores. E comparativamente aos anteriores, este álbum teve mais pós-produção, no sentido de que andámos a desarrumar as percussões, a aplicar distorções, a mudar um pouco mais determinadas coisas. Basicamente, saímos do Uganda com as gravações, deixámos repousar um bocado e, depois, passámos um período intenso de três semanas em que misturámos e produzimos tudo.
Embora contenha muito poucas palavras, a vossa música soa bastante política. Eu estive a ler a descrição deste novo disco no Bandcamp e lá vocês apontam para o Source of Denial como sendo “um dedo do meio apontado à imigração hostil.” Vêem a vossa música como sendo uma arma que pode ajudar a combater este tipo de desigualdades?
[pq] Ela não combaterá a desigualdade no seu todo. Mas acho que ela pode ajudar a combater as desigualdades que existem neste tipo de sistemas. Sem dúvida que isso esteve na base deste álbum. Basta pensar: “Porque é que é tão fácil para mim e para o Jacob irmos ao Uganda, se quando são eles a virem ter connosco a situação é completamente diferente?” É esse o tipo de desigualdade pelo qual a nossa música luta.
[Spooky-J] Eu acho que podemos apontar isto para a desigualdade no seu todo. A ideia de que estamos segregados e que somos tratados de formas diferentes são tópicos inaceitáveis. É o que eu sinto. Nós apenas sublinhamos esse aspecto de não podermos viajar tão facilmente enquanto banda. Seja para irmos tocar ou apenas para nos visitarmos uns aos outros, a situação que se cria em torno disso soa-me ridícula e é algo com o qual temos de lidar enquanto banda. Nós quisemos canalizar esse problema com o qual lidamos.
Vocês quando entraram no estúdio para criar este disco já tinham essa ideia em mente, ou foi um conceito que surgiu apenas após escutarem o som que tinham conseguido alcançar?
[Spooky-J] Nós sempre tivemos este problema, mas acho que a ideia de o tornar como parte da identidade do álbum surgiu depois, porque começámos a lidar com este problema cada vez mais e mais. Talvez não fosse necessário frisarmos isso, até porque a nossa música já é bastante sombria e pesada por si só. Fomos nós a tentar encontrar uma via para nos focarmos com a música que está incluída no disco, basicamente.
Diria que este Source of Denial é o vosso projecto mais corrosivo até à data. Quando foram para estúdio compô-lo, já tinham decidido que iam seguir este caminho, ainda mais sombrio e pesado do que nos anteriores?
[pq] Acho somos apenas nós a fazer mais daquilo que já fazemos. O que fazemos já é sombrio, apenas nos tornámos melhores a fazê-lo. Com o Kaloli tivemos algumas faixas mais leves que misturámos lá pelo meio. Mas eu sinto que sempre gostei mais de cenas escuras, de descer por esse caminho.
[Spooky-J] Eu diria que depende. Por exemplo: se tu escutares apenas as partes de bateria, tu poderias incluir melodias mais “felizes” lá por cima e criar outro tipo de faixas a partir dali. Mas os sintetizadores e o tipo de texturas que escolhemos usar são, à partida, mais sombrios, sim. Diria que é uma fusão disto tudo.
Nos discos anteriores, eu fiquei com esta ideia de que a electrónica orbitava em torno das percussões. Enquanto que neste novo trabalho as coisas já me soam completamente misturadas. O som ficou mais coeso, talvez por já terem uma certa experiência em fazer música juntos que antes não tinham. Concordam com esta ideia?
[Spooky-J] Se calhar apenas conseguimos fazer com que as coisas soassem melhor. Sinto que conseguimos melhores baterias, melhores sintetizadores e melhores harmonias, em comparação com o que fizemos no disco anterior.
[pq] Também tem a ver com a confiança que já temos. Eu, por exemplo, quando começámos, não queria meter o meu sintetizador a soar muito alto, para não “insultar” os tambores. Mas, desta vez, eu acho que a música pedia por isso. Nós tornámo-nos mais confiantes nesse processo de balancear e de misturar as coisas.
Pete, tu já tinhas dado conta de teres vindo da cena do heavy metal e eu notei que neste disco há alguns sintetizadores que me fazem lembrar aqueles rasgos de guitarra típicos do metal. Esse género foi particularmente influente para este disco?
[pq] Sem dúvida. Digamos que, no Source of Denial, eu usei os sintetizadores como se tivesse a tocar guitarra com palm mute. Eu compus literalmente riffs de metal com os sintetizadores. E também usei um sintetizador novo neste disco, que tem todas estas camadas de distorção e sons mais poderosos. Isso permitiu-me ser ainda mais criativo. E nós nunca tínhamos sequer falado sobre isto, mas o Source Of Denial foi basicamente todo composto com um novo sintetizador, comparando com o que usámos nas cenas anteriores.
Que sintetizador é esse?
[pq] Novation Summit. É bem louco!
A primeira faixa do vosso novo álbum intitula-se “Kudistro” e faz-me lembrar o termo kuduro, um tipo de música electrónica de Angola bastante abraçado por Portugal. Vocês estão familiarizados com o género?
[pq] Claro que sim. Esse tema somos nós a tentar copiar o kuduro [risos].
Presumo que estejam então familiarizados com toda a cena da Principe Discos e com gente como o Jonathan Uliel Saldanha, que por acaso até já editou pela Nyege Nyege Tapes.
[Spooky-J] Estamos sim.
[pq] Claro que sim. E o Johnathan é um amigo com quem já tive a oportunidade de fazer algumas coisas.
Este concerto que têm agendado para Lisboa, será o vosso primeiro em Portugal?
[Spooky-J] Vai ser o segundo!
Quando é que estiveram cá pela primeira vez, lembram-se?
[Spooky-J] A nossa primeira vez aí foi em Serralves, no Porto. E também tocámos nas DAMAS, em Lisboa. Nós gostámos imenso de Portugal e estamos bastante felizes por poder voltar. Nunca mais fomos aí desde essa primeira vez, que foi em 2018.
A experiência correu bem? Sentem que as pessoas se conseguiram ligar com esta vossa proposta musical?
[pq] Eu acho que correu bastante bem. Eu, pelo menos, adorei a data de Serralves, que também foi um dos nossos primeiros espectáculos de sempre.
Como é que vocês andam na estrada a apresentar a vossa música ao vivo? Isto acontece em palco no formato de banda, certo?
[pq] Sim. Neste momento somos 5. Há pessoas que às vezes nem gostam assim tanto da música e preferem ver-nos ao vivo. Já houve até uma pessoa que, depois de um espectáculo, veio ter comigo e disse-me que tinha odiado o disco mas que o concerto tinha sido muito bom. Eu nem sei bem como me posicionar quanto a esse tipo de comentários. Devo dizer “obrigado” ou “vai-te foder”? [Risos] Isto para te dizer que as pessoas, por norma, adoram as nossas prestações ao vivo. Acho que a nossa música é mesmo feita para tocar ao vivo e o álbum mostra-te apenas uma fotografia daquilo que ela consegue ser.
O que podemos esperar do vosso concerto em Portugal?
[Spooky-J] Comparativamente aos concertos anteriores?
Pelo menos a formação tenho ideia de ser diferente, estou certo? Ou a banda que levam convosco na estrada ainda é composta pelas mesmas pessoas?
[Spooky-J] Nós estamos com menos uma pessoa. Antes éramos 6, agora somos 5. Só aí já tens uma diferença. Depois, temos todo este novo material. E posso dizer-te que será bem mais sombrio.
[pq] Vamos desligar as luzes todas. Vai ficar bem escuro [risos].