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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 31/01/2025

O Fim do Nada do produtor-estrela.

Mizzy Miles: “Travei batalhas absurdas para fazer isto acontecer”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 31/01/2025

Chegou o momento de Mizzy Miles. Nos últimos anos, tem vindo a reinventar a figura do produtor de hip hop e a posicionar-se como o artista no centro do jogo, reivindicando os holofotes a que os compositores e beatmakers, criaturas de estúdio, muitas vezes estão vedados.

Fê-lo de forma estratégica, em cada videoclipe ou momento de comunicação, enquanto hypeman nas suas actuações megalómanas como DJ. Todo o caminho que traçou até aqui, que o levou a tornar-se um DJ de rádio ou a actuar antes de um jogo da Supertaça de Portugal, a estar em tour pelo Brasil e a criar uma marca artística própria, trouxe-o a este momento em que lança o seu aguardado álbum de estreia, Fim do Nada, no qual tem vindo a trabalhar desde 2020.

Pelo caminho ficaram uma série de singles vistosos, que fizeram parte da trajectória mas escaparam ao alinhamento final. Mas nos impressionantes créditos de Fim do Nada encontramos colaborações com nomes como Wet Bed Gang, Slow J, ProfJam, Ivandro, Julinho KSD, Deejay Télio, Nenny, T-Rex, Van Zee, Bispo, Zara G, Diogo Piçarra, Agir, SleepyThePrince, Gson, Teto, WIU e MC PH. Houve uma notória aposta em aproximar Brasil e Portugal, países que também representam e contam a história de Mizzy Miles.

Em entrevista ao Rimas e Batidas, o músico fala do processo de construção do disco, dos sonhos realizados, de como viu uma “cadeira vazia” e a quis transformar num trono com o seu nome, e dos muitos objectivos que ainda ambiciona concretizar.



Este álbum acaba por ser a consagração do percurso todo que tens vindo a fazer nos últimos anos?

É literalmente isso. Este álbum é a afirmação, é a prova, até para mim mesmo, que é possível e que aconteceu. Já não estamos a tentar, já não estamos na corrida, já não estamos atrás do desconhecido. Está aqui, fez-se luz, aconteceu.

Porquê Fim do Nada? Como escolheste o título?

O nome surgiu numa sessão que tive com o T-Rex, foi no dia em que fizemos o som “Fim do Nada”. No decorrer da sessão, disse-lhe: “Este vai ser o nome do meu álbum”. Ele até disse: “A sério, mano?” Basicamente, Fim do Nada é o momento em que o “nada” deixa de existir. É figurativo e representa o sucesso. O momento em que o “nada” deixa de existir, o momento em que atinges aquilo que querias, em que não ter, não ser ou não haver deixa de existir. Ultrapassaste o “nada”, agora tens o teu “tudo”. E isso pode ser qualquer coisa que tu desejes ou ambiciones fazer. Hoje em dia é real e palpável. A única maneira de desbloqueares o Fim do Nada é fazer acontecer. Por isso é que, na música “Fim do Nada”, temos uma barra no refrão que é a chave do som, em que o Rex diz “o importante é fazer acontecer, esse é o pin do Fim do Nada“. É correr atrás, não dormir, insistir, persistir, não desistir. É toda uma série de factores de motivação e ambição que te moldam e que te fazem ser quem és hoje e atingir os teus objectivos.

Mais uma vez, a concretização e a materialização do sonho.

Ya, mas pode ser qualquer coisa. Para mim, neste momento o Fim do Nada é “afirmei-me, provei a mim mesmo que é possível, vivo disto, vivo do meu sonho, atingi o nível que sempre desejei atingir, faço música boa, dou shows que estão lotados, posso dar uma vida melhor a mim mesmo e aos que me rodeiam”. Isso é o Fim do Nada, mas para muita gente pode ser tirar medicina, acabar o curso, ser capitão de equipa… É uma filosofia de motivação.

Como é que foi construir este alinhamento ao longo dos últimos anos? Foi fazer muitas sessões de estúdio, mais ou menos orgânicas, e logo se via o que saía dali? Também houve coisas mais planeadas? Já sabias que querias juntar certas pessoas? Como foi o processo?

Foram muito poucas as vezes em que já sabia quem é que queria juntar. Foi muito pela primeira coisa que disseste, de fazer várias sessões com um artista. Eu chegar com beats e com uma ideia na cabeça, com uma direcção que lhe quero passar, com um mood, uma cor ou uma textura, e transferir-lhe toda essa energia para se criar o som. Ao ser criada a base, tivesse um refrão ou também um verso, batíamos bolas sobre quem é que também ficava bem ali. Poderia haver umas quantas sugestões, mas no final do dia a decisão acaba por ser sempre da minha responsabilidade, cabe-me a mim completar essa peça do puzzle. E foi nisso que o projecto se baseou muito, no decorrer destes anos. Começou em 2020, mas numa altura em que eu ainda não sabia nada. Foi muito som a som. Um som desbloqueou o seguinte, que desbloqueou o seguinte, e por aí fora. Só em 2023, após ter lançado o “Fim do Nada”, é que senti que estava mesmo no momento de “OK, não temos mais músicas novas, preciso de fazer mais música”. Foi num momento em que já me podia dar ao luxo de ligar às pessoas e elas vão-me atender e dizer que estão comigo e ‘bora fazer acontecer. Entre Agosto de 2023 e Novembro de 2024, devo ter feito mais de 30 sons, com bué artistas diferentes, entre Portugal e Brasil.

E é uma percentagem alta daquilo que foi o resultado final do álbum?

É. Com todos os artistas que fiz música, fiz mais do que uma. Com o Slow J fiz umas três, com a Wet Bed Gang e o Teto tenho quatro, com o Ivandro tenho umas cinco, com o Van Zee tenho umas cinco também. Com cada artista com quem fiz música e a quem me liguei, fizemos sempre mais do que um som.



E depois foi um processo de escolha?

Sim, de filtragem, de debater o que é que realmente valia a pena, o que é que realmente condizia com o projecto. Foi muito por aí.

E lançaste singles, ao longo dos anos, que acabaram por não entrar no álbum. Também fruto do mesmo processo de selecção?

Sim, são sons que foram feitos numa fase da minha vida que já não me representava. Eles iam ficar bem na fotografia, iam pintar bem o quadro, mas não iam ter o valor necessário para a novidade que é um álbum de Mizzy Miles em 2025. Ter um som com cinco anos, que toda a gente já ouviu, que até já está meio esquecido… Na altura foi manifestado como um dos sons que iriam entrar no álbum, mas como se passaram quase cinco anos, já não fazia sentido, já não encaixava.

Há muitas faixas em que colaboras com outros na parte da composição do instrumental. Esses inputs dos teus colaboradores normalmente estavam na base do beat, quando apresentavas o instrumental ao rapper ou ao cantor, ou foram mais contributos de pós-produção?

Geralmente, foi mais pós-produção. A base que levei para os artistas [com contributos de outros] foi quando havia instrumentistas a fazer, seja um guitarrista ou um teclista. Porque gosto muito de trabalhar assim. Tenho quatro sons no álbum que são com o Rodrigo Correia, que para mim é um dos melhores guitarristas da nossa geração, e quando dei por mim a trabalhar mesmo no álbum, a fazer chamadas para os artistas para lhes dizer “família, isto está a acontecer, preciso de ti, quero fazer um som contigo assim”… Antes disso, tive sessões só com músicos, para garantir que tinha as vibes e os sabores certos a nível de sonoridade para fazer o beat. Ele foi uma das pessoas com quem mais trabalhei. Por exemplo, dava-lhe uma direcção de ideia, um BPM, os acordes e ele fazia a sua magia, fazia a cena tornar-se real. Dali crio o beat e levo ao artista. Fazemos a cena e, se eu depois sentir que falta algo, chego à pós-produção já com as vozes e chamo os meus producers, como o Di Cicilia ou o Ungari, que são os prodígios com quem trabalhei bastante no álbum, e queria dar-lhes oportunidade para estarem comigo nesta página, porque eles são realmente muito bons e têm um potencial absurdo. E entre os três percebíamos o que tínhamos de adicionar e onde. E dali levo tudo e faço o arranjo final. 

Na “Premium”, com o Agir, também cantas um verso. É algo que vais querer explorar mais para a frente, ou foi só uma experiência nesta faixa específica?

Quero conseguir dar uma mais de Kanye West ou de Timbaland nesse sentido. Consoante o à-vontade e o aval dos artistas convidados… Ouves um projecto do Timbaland, sabes que é de um producer, mas numa das faixas ele faz um refrão ou um verso. Não é ser eu a cantar o projecto inteiro, mas fazer uma voz aqui e ali. Até porque é algo que está muito em mim. No meu processo em estúdio com os rapazes, há sons do álbum em que as melodias do refrão são minhas, em que eu também escrevi… Eu vou sempre ao microfone dar ideias de flows, de métricas, o que quer que seja. O Agir sempre me disse “tu tens jeito para isto”, está-me sempre a incentivar para começar a cantar, e quando fizemos esse som ele disse-me “este verso vais ser tu a fazer”. Então, let’s go!



Também te queria perguntar sobre a presença do Brasil neste álbum. Tens várias colaborações com artistas brasileiros e tu próprio estiveste lá a actuar nos últimos anos, em tour com o Teto, e a tua própria história tanto passa pelo Brasil como por Portugal. O objectivo foi representar a tua história e, ao mesmo tempo, aproximar os dois países com artistas dos dois lados do oceano?

Tal e qual. A minha missão maior é encurtar esta distância que existe entre nós. A música que se faz lá é completamente exportada para cá, mas a nossa não o é de todo. E eu sinto que tem esse potencial e também estou aqui para tentar ser esse veículo que vai conseguir cada vez mais meter a tuga e os artistas da tuga lá também. Mas não é um trabalho fácil. É um país muito grande, temos a mesma língua mas culturalmente não temos nada a ver, e também existe a barreira linguística do sotaque. Eles não entendem rigorosamente nada do sotaque de português de Portugal, a não ser que fales muito pausadamente. Se alguém do Brasil ouvir um som como o “Champions League”, esquece, é tipo chinês, não entendem nada mesmo. Isto para também dizer que, sim, a presença dos brasileiros no álbum também é muito importante para pintar essa parte da minha história; era suposto ter mais ainda, mas acabou por não dar em termos de timings e logística. Mas é o próximo passo.

E, apesar de haver estes elementos que nos distanciam, conseguiste convencer vários artistas brasileiros até a colaborarem em músicas com artistas portugueses. Também concretizaste isso. 

Fico muito feliz com isso. Há collabs aqui, e talvez a principal seja a do Slow J com o Teto, que se não fosse através de mim não iriam acontecer. É muito bom e gratificante sentir isso. E eu conseguir trazer essas possibilidades para o álbum deixa-me bué feliz, sentir que realmente consigo unir pessoas que não iriam fazer um som juntas num dia normal. Ou a maneira como juntei o SleepyThePrince com o Diogo Piçarra, por exemplo; ou até o MC PH com a Nenny; o Ivandro com o WIU. São sons incríveis que acho que o pessoal vai gostar e estou muito feliz, e de coração cheio, por ter conseguido fazer esses sons acontecerem. 

Este é um grande álbum de produtor, com essa marca e selo. Apesar de, obviamente, já existirem discos anteriores feitos por produtores, sentes que também é algo que faltava explorar desta forma na cultura hip hop em Portugal?

Sem dúvida, completamente. O meu maior combustível foi esse, desde o dia 1. Enquanto artista, enquanto pessoa a encontrar o meu lugar, sentia que esta cadeira estava vazia. Enquanto ainda era um mero estudante do jogo, estava na bancada a olhar e perguntava-me: “Como é que esta pessoa não existe? Onde é que está o nosso Metro Boomin, o nosso DJ Khaled, o nosso Mustard? Aquele gajo que é um mediador de jogo, que produz música com os melhores do game, que faz um álbum, que é um produtor que também é um artista, que faz shows, que tem uma personalidade vincada na cultura e é um pilar.” Ao ver que esse lugar não estava a ser preenchido por ninguém, também foi a minha maior motivação para dizer que ia ser o primeiro gajo a fazer isso acontecer neste level, desta forma, com esta visão, sem limites, sem meter à partida o telhado de “estamos em Portugal, isso é impossível”. Não, eu vou provar que esta merda é possível e que podes ser esta pessoa, que consegues brilhar desta forma e deixar este legado. E não tens a noção do quão feliz e realizado estou agora com o lançamento do álbum. Não dá para pôr em palavras o quão feliz estou. E nunca desmerecendo quem já o fez primeiro, há casos como o do Beatoven, que lançou o seu álbum há uns anos. 

Claro que já existiram outros álbuns de produtores, mas não com esta dimensão e com o posicionamento do produtor enquanto artista, desta forma.

Exactamente. Trabalhei bué para estar aqui e para conseguir criar esta marca e este selo artístico de qualidade. De entrar numa sala e nunca me verem como inferior — “ah, este é o producer“. Não, mano. Eu entro na sala de peito cheio, eu sou artista mesmo. E foi esse posicionamento que sempre procurei ter, e foi com essa atenção que sempre procurei construir a minha marca. Mano, não sou just a regular producer. You’re gonna recognize me as I am. I’m this guy.

Encontraste obstáculos no caminho por seres produtor?

Muitos, muitos, em tudo. Travei batalhas absurdas para conseguir fazer isto acontecer. E engoli sapos do tamanho do mundo. E nunca me priorizei, sempre priorizei o interesse maior. Várias vezes me lesei a mim mesmo, no ego e no orgulho, porque sabia que isto não é sobre mim. É sobre a música e a meta final. A missão é muito maior do que isso e esse sempre foi o meu foco. Num momento fulcral de ter que tomar decisões, em que me tiram o tapete à última da hora, uma decisão que vai completamente contra aquilo que eu tinha idealizado… Eu poderia escrever um livro sobre isto. E uma das coisas que mais aprendi a ter durante o processo foi inteligência emocional para lidar com egos, situações de frustração, negociações num momento em que claramente a cena não está a ir para o caminho que eu quero mas vou manobrar a coisa de outra forma… Foi um puzzle.



Estiveste a construir este caminho com este grande objectivo de lançares o álbum. Mas, conhecendo o teu percurso, a tua ambição é notória e já estás certamente a pensar noutras coisas. Quais é que imaginas que sejam os teus próximos passos depois deste álbum, para os próximos meses e para este ano?

Além da tour do álbum que vamos ter este ano, vai haver um concerto em nome próprio, numa sala que ainda não vamos revelar mas que será anunciada em breve. E, algures durante este ano, vou passar umas temporadas ao Brasil e gostava de lançar um projecto totalmente brasileiro. Fazer a mesma coisa só que lá, e numa escala mais pequena, um pequeno EP para começar, para não ir já com a sede ao pote. Entrar devagarinho num mercado que é ultra megalómano. No outro dia perguntei ao ChatGPT quantas vezes é que o Brasil é maior do que Portugal e ele respondeu-me 92 vezes. Ou seja, é 92 vezes mais difícil. Esse é o ultimate goal. E gostava muito de me conseguir internacionalizar, esse é o goal mais delulu que eu tenho. 

E dizes isso além do Brasil.

Sim, sinto que um próximo passo poderá ser explorar a Europa, perceber o que se passa em Espanha, em França, em Inglaterra, em Itália… Há artistas absurdamente incríveis, culturas incríveis, música incrível e eu acredito que é possível. Acredito que sou essa pessoa, que consigo chegar lá, com a estratégia, a ambição e a humildade certa. Se consegui provar que este álbum foi possível acontecer, dá para fazer acontecer o que quer que seja. Basta ser bem planeado e ir com a índole certa para as coisas. Um bom coração e uma boa energia são a base de tudo. Porque, se não for assim, as coisas não acontecem. Tenho pessoas neste projecto que sei que estão comigo não só pelo projecto em si, mas pela relação de amizade que criámos. O processo do álbum deu-me pessoas que hoje são mesmo minhas amigas. Eu já era fã delas, mas tornei-me ainda maior depois de as ter conhecido e de ter partilhado momentos em estúdio, conversas de horas e horas em que largámos um pouco da nossa vulnerabilidade. We sit down, we break bread, partilhamos experiências e é isso que fortalece o laço. E quanto maior o laço, melhor é a música que vamos fazer, maior é a sensibilidade e a compreensão. Isto é romântico, mesmo. Tenho mais de 18 artistas no álbum, tive o prazer de ter sessões com todos, de ter vivido momentos com todos, seja em estúdio, jantares, saídas à noite, de termos partilhado o mesmo palco no mesmo dia de festival, de ter estado com os artistas brasileiros cá e lá, de ter almoçado em casa deles… É mais profundo do que só a música. E tudo o que vivi graças a este processo são coisas que vou carregar comigo no coração para sempre e é por isso que este álbum para mim é tão especial. Não é só o álbum, não é só a música, é tudo o que vivi com o processo.

É um disco que também acompanhou e representa a transformação da tua própria vida.

Exactamente. E eu perceber que todas essas vivências, que todas as pessoas que deram um pouco de si estão a mudar a minha vida por completo e já a têm vindo a mudar. O tamanho da minha gratidão é imensurável. E é o que procuro ser sempre, grato. Nada disto é por acaso, lutei por tudo aquilo que conquistei, e ver que as pessoas me deram um pouco do seu tempo para que pudéssemos ter pintado este quadro… Não dá para pôr em palavras. A gratidão é infinita.


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