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Texto: Vítor Rua
Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 04/02/2025

Uma travessia lírica na criação contemporânea.

Miguel Azguime: O Poeta dos Ecos Infinitos

Texto: Vítor Rua
Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 04/02/2025

[Miguel Azguime: O Escultor de Silêncios e Ecos]

Miguel Azguime surge como uma presença singular no labirinto da música contemporânea, um artífice cuja obra é tanto um reflexo do tumulto interior quanto uma resposta a questões urgentes da criação artística. Nascido num tempo em que as fronteiras musicais se erguiam como muros sólidos, Azguime fez do seu ofício um acto contínuo de rebeldia, esculpindo entre o ruído e o silêncio uma linguagem que desconstrói o previsível e o reconstrói em formas inéditas.

Fundador do Miso Ensemble ao lado de Paula Azguime, Miguel começou por desenhar territórios sonoros com um duo de flauta e percussão, um gesto inaugural que ressoou como uma pedra lançada num lago de águas paradas. Mas este era apenas o início de um caminho sinuoso e intransigente, um prelúdio para a expansão que se seguiria — a expansão para o território da composição, da performance e do incessante impulso de abrir novas veredas na música contemporânea portuguesa e além-fronteiras. Miguel não se acomoda; a cada compasso, busca o inusitado, desafiando o que já se sabe, explorando a electrónica, o espectralismo e a música concreta, sempre com um martelo na mão para partir as fórmulas cristalizadas.

A sua obra é ancorada numa visão crítica e poética do mundo, onde a arte é uma resistência. Para Miguel, criar é um acto de insurgência contra o conformismo, um corte com a previsibilidade, uma celebração do inacabado. Seja liderando o Sond’Ar-te Electric Ensemble ou moldando o festival Música Viva, ele actua como um catalisador, abrindo portas onde antes havia apenas paredes, oferecendo espaços onde o som se torna líquido e inabarcável.

Na música de Azguime, não há um espaço que nos acolhe; há um emaranhado de ecos e reverberações que nos envolve e desafia. Os sons não são apenas notas — são palavras fragmentadas, imagens que se esbatem, ruídos que se tornam promessas de algo por vir. Miguel Azguime é um escultor do inaudito, um poeta que desenha a ausência, um construtor de pontes entre a solidão do silêncio e a multiplicidade do som. E o seu legado será sempre um reflexo móvel, uma obra viva que nos convida a escutar com o coração em suspenso e os ouvidos expostos ao desconhecido.

[O Princípio da Metamorfose]

Miguel Azguime não começou apenas; ele desdobrou-se em múltiplos inícios, como uma palavra que se repete até perder o seu som e se transformar em outra. No início, houve o Miso Ensemble, uma sopa de sons e silêncios, quente e inesperada, que servia os que tinham fome do novo. Era 1985, e Miguel e Paula Azguime, na dança fluida das suas improvisações, encontraram cúmplices que quebravam, com eles, as vidraças do convencional. O som não tinha paredes; escorria entre as mãos, preenchia o espaço e desfazia fronteiras. Entre a criação e a execução, entre o início e o fim, o Miso Ensemble habitava um estado líquido, onde tudo era possível, e nada estava ainda cristalizado.

[O Compositor-Criador e o Espaço dos Sons]

Mas os sons não se revelam apenas nos primeiros gestos. Nos anos 90, Miguel tornou-se outro, como um verbo que deixa de ser presente para se conjugar no futuro. Deixou a percussão, que fora uma extensão do seu corpo, mas não abandonou o ritmo. Tornou-se um compositor a tempo inteiro, mas continuou a subir ao palco, agora como um narrador que fala com sons e palavras, como um actor que esculpe o silêncio com gestos e ecos.

O que ele faz não é apenas música; é um espaço que dilata e contrai, que respira ao ritmo do que não está escrito. O festival Música Viva e outras iniciativas são provas da sua alquimia temporal, onde as horas se desdobram, os dias se contraem, e Miguel encontra, no impossível, o tempo necessário para construir. Entre as notas e os intervalos, ele move-se como um poeta que escreve com sons, transformando o fugaz em algo eterno, ou pelo menos, em algo que resiste.

[Labirintos de Liberdade]

Seguindo os passos de Constança Capdeville, Miguel rejeitou formas gastas, preferindo lançar-se em direcções inesperadas, como um eco que encontra novas paredes para ressoar. Nos trilhos do experimental, ele dança com os mais inquietos compositores, desafiando tempos e gerações com música que, como um fio de seda emaranhado, liga, dobra e desvenda. À frente do Sond’Ar-te Electric Ensemble, Miguel traça caminhos que não são mapas, mas interrogações. O som, na sua condução, não pertence a ninguém; é uma casa aberta para quem ousa entrar. Assim, ele atravessa o tempo, rompendo estruturas petrificadas e desenhando novos labirintos sonoros.

[O Criador de Reflexos]

Miguel Azguime é, por definição, um criador de reflexos. Ele olha para o mundo não como uma superfície lisa, mas como uma poça que espelha a luz e a distorce. As ameaças à liberdade da arte — o mercado, a uniformidade, a mediocridade — são sombras que ele combate com som e silêncio. Para Miguel, as ideias achatadas são folhas mortas que precisam ser varridas por ventos de invenção. Cada composição sua é uma vitória contra o vazio, uma reconfiguração de tudo o que parecia estático. Ele cria como quem desmonta, desmonta como quem cria, e no processo, a arte permanece livre.

[Sons que Tocam o Silêncio]

As composições de Miguel são mais do que sons; são gestos que tocam o silêncio e o fazem vibrar. Há nelas uma arqueologia do inaudito, uma busca por aquilo que se esconde em camadas tão fundas que quase não existe. Cada nota, cada intervalo, parece escavar não apenas a matéria sónica, mas o tempo em si. Nas suas obras, ouvimos tanto a liberdade desmesurada de Beethoven quanto o surrealismo de poetas que, como Mário Dionísio, reviram reinos de cabeça para baixo. Para Miguel, a música é um estado de transformação contínua, uma passagem onde o presente arde e o futuro emerge.

[O Reino de Pormenores]

Nas composições de Miguel, há um reino que nunca é igual a si mesmo — um reino de pormenores, onde o som se desfaz e se refaz. Aqui, as convenções são esquecidas, e a criação nasce despida de expectativas. Cada obra é um caminho deixado por uma chama que nunca se extingue. O som é o que o conduz, mas o destino é sempre um mistério. Na sua delicadeza feroz, na sua ferocidade delicada, Miguel mantém uma batalha poética contra os ruídos do presente. Ele não segue tendências; ele molda possibilidades, criando música para o agora, mas com ecos que habitam o sempre.

[Forja de Silêncios]

Se há algo que define a obra de Miguel Azguime, é o fogo que arde nos silêncios entre os sons. Este fogo não queima por destruição, mas por criação. Ele transforma o efémero em matéria duradoura, forjando notas e gestos no calor da invenção. O processo é alquímico, transmutando ausência em presença, silêncio em forma. Cada composição é um reflexo do mundo que ele refaz, uma janela que se abre para o desconhecido. Miguel não recria o que já foi, mas reinventa o que ainda não é, oferecendo-nos um vislumbre de uma arte livre, indomada e em perpétua expansão.

[A Chama Inextinguível da Criação]

Ao contemplar a vasta obra de Miguel Azguime, percebemos uma trajectória marcada pela busca incessante da liberdade criativa, uma chama que arde sem se consumir. Ele não é apenas um compositor; é um artesão de sons, um esculpidor de paisagens acústicas que nos transportam para territórios de vibração e poesia, onde a música não apenas se ouve, mas se experimenta em cada nervo, em cada intervalo entre o que é dito e o que permanece em silêncio.

Azguime não se limita ao papel de criador. Em cada composição sua, há uma revolta suave contra o previsível, como se cada som fosse um pedaço de tempo arrancado ao conformismo. A sua obra é uma tapeçaria de nuances, onde tradição e inovação se entrelaçam como fios de uma trama que nunca se repete. Ele move-se entre o eléctrico e o acústico, entre a palavra que se insinua e o silêncio que a circunda, entre o tangível do concreto e o etéreo do abstrato, sempre em um jogo de presença e ausência.

[Análise Musicológica Poética: “Melancholia” de Miguel Azguime]

Em “Melancholia”, Miguel Azguime desenha o tempo como quem dobra o papel para criar sombras e luzes. O violino de Vítor Vieira, o violoncelo de Filipe Quaresma, o piano de Elsa Silva — são fios. Fios tensos, soltos, tecidos que falam numa linguagem que não é feita de palavras, mas de pausas, de ressonâncias entre aquilo que se ouve e aquilo que escapa. No diálogo desses três instrumentos, há uma melancolia que não pesa, mas desliza. Uma melancolia que dança, como a luz que se demora nas cortinas antes de desaparecer.

O violino é uma linha frágil, quase imperceptível. Ele corta o ar, desenha espaços, como se escrevesse um poema que nunca se conclui. Entre uma nota e outra, há um vazio que respira. O toque de Vítor Vieira tem doçura e tem amargura; é um toque que não afirma, mas insinua, como quem chama algo que nunca chega. O som vibra na iminência do silêncio, e é nessa iminência que ele se torna poderoso.

Filipe Quaresma, com o violoncelo, faz vibrar profundidades sem fundo. Não é apenas a madeira e as cordas que ele toca, mas algo além, algo que está escondido. Cada arco é uma pergunta, cada som é uma voz que ecoa, e o eco não traz respostas, apenas mais perguntas. No sussurrar do violoncelo, há o peso da terra e a leveza de um desejo que não cessa. É um som que se ergue e se deita, que dói e acaricia ao mesmo tempo.

O piano de Elsa Silva é um mapa sem legendas. Não um mapa comum, mas um mapa que se revela aos poucos, como uma dobra que esconde e mostra. Os acordes surgem e desaparecem, criando caminhos que não levam a lugar algum, mas que nos fazem andar. Cada pausa, cada silêncio entre as teclas, é um abismo que convida à queda. E cada som, uma corda que nos sustém. O piano, às vezes, é um enigma, outras vezes é uma resposta que já esquecemos. E entre essas possibilidades, ele constrói um espaço que se transforma.

“Melancholia” não é somente uma composição; é uma construção onde o som e o silêncio se encontram e se afastam. Cada nota, cada gesto, é uma tentativa de alcançar o inalcançável, de tocar algo que nunca está completamente presente. Miguel Azguime, aqui, não cria unicamente música; ele inventa um espaço onde o som se desfaz e refaz, onde o tempo não é medido, mas sentido.

Há na obra uma tristeza que não se sabe de onde vem, uma saudade que não se sabe do quê. E é essa incerteza, esse estar entre o que é e o que não é, que a torna tão profundamente humana. “Melancholia” não é sobre passado nem futuro; é sobre o agora que se dissolve, sobre o instante que existe apenas para desaparecer.

E quando a música termina, o som ainda permanece. Ele ecoa dentro de nós, como uma lembrança de algo que nunca vivemos, mas que reconhecemos, inexplicavelmente, como parte de nós.

[Coda Final: O Fogo e a Palavra]

Miguel Azguime não é só um músico, mas uma chama — uma chama que ilumina o escuro, que arde e transforma o efémero em algo que resiste ao tempo. O som, nas suas mãos, não é apenas matéria, mas memória e antecipação, um reflexo do mundo tal como é e tal como poderia ser. Na sua música, o futuro não é um destino, mas um espaço que se abre, um som que se insinua, um gesto que se desenha no ar.

E assim, Miguel Azguime permanece, não como um monumento fixo, mas como um fluxo constante, uma dança que nunca se repete, uma chama que nunca se apaga.


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