Se há coisa de que o universo entende é de confluências. No final da passada semana, nos dias 7 e 8 de Fevereiro, apresentou-se na Fundação de Serralves, no Porto, o espectáculo Duet Behavior de Meredith Monk com John Hollenbeck (um par de dias antes o duo tinha igualmente subido ao palco da Culturgest, em Lisboa). Esse espectáculo teve lugar menos de uma semana após a luminosa performance de Kaja Draksler com Mariana Dionísio, Sofia Sá e Vera Morais no encerramento da 15ª edição do Festival Porta-Jazz, no Rivoli. Ou seja, em seis dias, o universo fez confluir na Invicta dois incríveis momentos de criativo diálogo entre a voz humana e diferentes instrumentos — o piano, a bateria, o vibrafone e um conjunto de outras percussões no caso da prestação da dupla Monk/Hollenbeck; o piano, o vocoder e o trompete no concerto do Ensemble Mutante formado por Draksler/Dionísio/Sá/Morais com participação especial de Susana Santos Silva.
Houve múltiplos pontos de contacto entre ambas as performances e outros tantos pontos de divergência, é certo, mas em ambos a voz foi sublimada como um paradoxo que parece pertencer tanto ao passado arcano como ao mais distante futuro. Claro que, neste quadro, Meredith Monk é pioneira e mestre absoluta, uma artista completa com vasta obra realizada ao longo de mais de meio século, período dilatado em que procurou estudar a voz para lá dos cânones a ela associados. Ao invés, Mariana Dionísio, Sofia Sá e Vera Morais serão, certamente, discípulas, artistas que beneficiaram do território desbravado por Monk, do seu génio criativo, entendendo a sua obra e pensamento como base sólida sobre a qual é possível agora erguerem novos marcos. Sabemos bem que o olhar se estende mais longe quando nos sentamos nos ombros de gigantes.
O programa de Duet Behavior estava anunciado à partida: começou em “Wa-lie-oh” (do clássico Songs from the Hill, 1979), e seguiu depois por “Click Song # 1” (Volcano Songs, 1997), “Insect Descending” (também de Songs from the Hill), uma variação instrumental a cargo de John Hoenbeck de “Click Song # 1”, “Madwoman’s Vision” (de Book of Days, 1990) e ainda uma série de peças datadas já deste milénio — “Little Breath Motor” (2000), “May the Dark Ignorance of Sentient Beings be Dispelled” (2022), “Simple Sorrow” (2020), “Harp and Bow” (1968/2020) e “Happy Woman” (de Cellular Songs, 2017). Ou seja, Duet Behaviour é uma performance rigorosamente gizada, mas que, ainda assim, tem espaço para a livre improvisação. Há também uma componente que apesar de genuína não deixa de ter um lado performático e que passa pelas intervenções de Meredith Monk entre os temas, pelas histórias que conta, pela harmonia, paz e sabedoria que generosamente nos transmite. Faz tudo parte da performance, bem como a quase-dança que vai executando em cada peça, com amplos movimentos gestuais que sublinham que a voz — esta voz, sobretudo — está ligada a um corpo vivo e presente.
Houve um detalhe subtil neste espectáculo: o sound design a cargo de Eli Walker, que inteligentemente espacializou tanto a voz como as delicadas percussões de John Hollenbeck, criando um efeito imersivo que ajudou a imprimir uma atmosfera especial ao espetáculo (as luzes de Dan Stearns e o próprio guarda-roupa de threeASFOUR foram outros detalhes que concorreram para o efeito final).
Hollenbeck recorreu a um pequeno arsenal de instrumentos: a sua bateria foi “aumentada” em determinados momentos por pequenas percussões, tubos de PVC por onde soprava, etc., mas o momento em que usou um microfone para amplificar as vibrações dos pratos e das peles foi especialmente bem conseguido, servindo um original complemento textural à voz de Monk. Das lâminas do vibrafone, que percutiu ou fez vibrar com arco, também se soltaram cores sonoras que ajudaram a artista principal a colorir os seus vívidos quadros.
E sim, Meredith Monk é uma extraordinária pintora — além de actriz, contadora de histórias, bailarina e, claro, cantora. A sua vida — nasceu em 1942 em Nova Iorque — foi inteiramente devotada à arte e percebe-se bem que essa entrega sem reservas é a fonte da sua surpreendente energia. Há um ânimo na sua voz, corpo e sobretudo rosto que parece contrariar as décadas que conta. E ela usou todas as suas extraordinárias capacidades para, muito literalmente, nos transportar para outros lugares: para as colinas do Novo México onde escreveu as suas Songs from the Hill, por exemplo, conseguindo, com poucas palavras, imprimir as imagens dessa árida paisagem na nossa imaginação. Será que Meredith Monk se cruzou com Georgia O’Keefe, essa outra grande pintora, nessas colinas do Novo Mexico?
A dada altura, Monk quase pediu desculpas por algumas das suas peças — como “Little Breath Motor”, “May the Dark Ignorance…” e “Simple Sorrow” — se alinharem no que designou como “uma parte mais soturna do espectáculo”, secção em que abordou as semelhanças com o momento histórico, nos anos 80 do século passado, em que a SIDA surgiu como um flagelo e todas as calamidades que hoje temos que enfrentar. A artista mencionou o budismo, de que é dedicada seguidora, e ligou-se directamente ao sofrimento global, numa intervenção absolutamente comovente. No momento seguinte, John Hollnbeck — que já tinha usado uma cuíca — recorreu a um berimbau para acompanhar Meredith em berimbau de boca, com as palavras a serem dispensadas a favor das vibrações primordiais. Nem Hollenbeck, nem Monk são propriamente virtuosos desses instrumentos (como bem perceberá quem, no caso do berimbau, já assistiu a alguma sessão de capoeira ou, no de boca, quem o possa já ter ouvido usado no contexto dos blues, por exemplo), mas a verdade é que em momento algum do concerto se procurou algum tipo de complexidade virtuosística. Esta é música de filigrana, de simplicidade absoluta, de máxima fragilidade, mas que ainda assim retém capacidade de maravilhamento, como uma simples bolha de sabão quando capta a luz do sol um microssegundo antes de rebentar.
O espectáculo teve no seu momento final, “Happy Woman”, uma feliz participação do cantor Manuel Linhares, o autor de Suspenso, que estudou com Meredith Monk e a assiste nalguns workshops. O seu delicado sombreado à voz de Monk resultou num momento de profunda beleza harmónica, deixando a energia colectiva da sala completamente esgotada no máximo. No final, Monk, visivelmente comovida e feliz, ainda interretou mais duas peças, “Cat” e também “Gotham Lullaby”, o tema que abre o maravilhoso Dolmen Music (1981). “As canções de embalar”, disse-nos Meredith, “são as primeiras canções de sempre”. E no fim, voltou-se ao princípio. Porque o universo é um círculo.