Miguel Nicolau reactivou a sua Memória de Peixe, submersa desde 2016, e apresenta a sua visão total deste novo projecto em concerto na Culturgest, em Lisboa, no próximo dia 16. Ao lado do guitarrista e vocalista estarão Filipe Louro (baixo, electrónica e vozes) e Pedro Melo Alves (bateria, electrónica e vozes), novos lados de um criativo triângulo equilátero que se resolve agora com a edição de III, mui recomendável álbum de experiências e aventuras vertidas em peças-canções com diferentes graus de abstracção.
Em conversa com o Rimas e Batidas, Melo Alves e Nicolau, explicam como se regressa ao presente, como se pressente o futuro e como vai tudo isto funcionar num palco para onde convocam, além de imersivas imagens, o saxofonista Bernardo Tinoco e o quase-tudista João Hasselberg que deixará o baixo em casa para levar antes tralha electrónica significante. “Este concerto”, asseguram-nos, “vai dar, esperemos nós, e correndo tudo bem, este embalo todo. As pessoas não vão levar só um concerto de música, vão levar todo este universo que nós temos vindo a cozinhar e que um álbum não consegue nunca transmitir sozinho, por muito que isso seja sugestivo”. Tem tudo para dar certo.
Começo esta conversa contigo, Miguel. Para me explicares o porquê de, neste momento, este projeto, que estava como os bons campos antes de darem boas colheitas, em pouzio, de repente foi novamente lavrado, para manter aqui a metáfora agricultórica. Porquê interromper agora essa pausa e o que é que ditou este regresso de Memória de Peixe ao activo?
[Miguel Nicolau] Uma das grandes razões está aqui ao meu lado, chama-se Pedro Melo Alves e veio dar uma… O projecto Memória de Peixe nasceu com a premissa da liberdade criativa. Nasceu com uma forma de criar canções através de loops curtos em guitarra e bateria, mas na verdade está muito relacionada também com o crescimento musical e pessoal que as pessoas que compõem a banda acabam por ter. Houve várias fases de descoberta musical, com o Nuno Oliveira no início e com o Marco Franco no segundo disco, e acabou por fazer muito sentido. Ou seja, as vidas das pessoas… Aqui não há propriamente mal entendidos entre ninguém.
[Pedro Melo Alves] Pode criar-se aqui uma história de assassínios em série. Mata-se um baterista, mata-se outro baterista, pronto.
Eu iria dizer o contrário. Havia muito aquela ideia de começar uma banda para conhecer raparigas ou rapazes. No vosso caso é para conhecerem bateristas [risos].
[Miguel Nicolau] Exactamente (risos). São uns a seguir aos outros. Está a tornar-se uma teoria válida.
Mas voltando a ligar o botão da seriedade, tu dizias que faz tudo parte de um processo de crescimento artístico, não é?
[Miguel Nicolau] Sem dúvida. A grande premissa tem sido a partilha e a criação musical sem limites. Obviamente há uma base pop forte, mas também há uma presença grande do jazz, do hip hop, de muitas referências que têm encruzado o projeto e têm feito sentido, também a par das referências que nos acompanham num determinado período da nossa vida, em que decidimos explorar um determinado caminho. Tem muito a ver com este projecto ter essa premissa. Agora, como é óbvio, há aqui uma pessoa que está ao meu lado e eu volto a falar dessa pessoa, que eu não conhecia antes e que partilhamos uma data de referências e sobretudo espírito criativo de exploração de várias formas musicais, e fez-me muito sentido retomar o projecto numa altura em que o Marco Franco já tinha abandonado um pouco a sua carreira de baterista, foi por outra via. Eu, sinceramente, também achava que já tinha dito tudo o que tinha vontade e não encontrava motivos nem parceiros do ponto-de-vista composicional e do espírito do projecto, também por falta de informação minha, claramente. Fez muito sentido quando começámos a falar de música e da possibilidade de fazermos algo em conjunto. Eu creio que foi logo imediata a reação e a solução de “vamos lá experimentar, porque temos muitas coisas em comum e sobretudo esse espírito de exploração.” E estávamos a ouvir coisas às vezes até similares. Acho que é um universo que se cruza. Pessoalmente, estou muito, muito feliz por este encontro e espero que ele se mantenha para sempre.
Situem-me no tempo. Em que altura é que isso foi?
[Pedro Melo Alves] Eu ia falar exactamente nisso. Ele fala nisto como se tivesse sido assim um encontro acidental, mas a verdade é que eu fui totalmente pescado [risos]. Ou seja, o Miguel escreve-me activamente para os nossos caminhos se cruzarem, porque tinha coisas em mente e porque viu alguma coisa no meu percurso que faria sentido para as coisas que ele tinha na cabeça. Isto de que estamos a falar, estava eu no Tremor de 2022. Meu Deus, portanto já foi há 3 anos [risos].
[Miguel Nicolau] Sim, está a correr bem.
[Pedro Melo Alves] Foi quando eu toquei com o The Rite of Trio lá naquele espaço maravilhoso, aquele restaurante.
Sim, sim, sim. Um restaurante em madeira por dentro, sítio fantástico…
[Pedro Melo Alves] Foi incrível! Pronto, estava eu precisamente nesse Tremor, a viver as aventuras que tinha naquela altura musicalmente em mãos, e o Miguel escreve-me para me conhecer e porque tinha assim umas coisas em mente. Portanto, isto não foi um acaso, foi uma acção, foi uma pesca totalmente consciente, activa e que fez todo sentido. Eu não sabia para o que é que estava a ser pescado, mas o Miguel viu algo ali e fez todo sentido. E para mim enquanto observante, ou seja, enquanto pessoa que estava de fora do processo de Memória de Peixe na década anterior, porque o projecto vai desde 2010, 2011… É muito interessante para mim aterrar nesta terceira fase do projecto e ver as outras de fora, ter ouvido na altura que elas iam saindo, porque elas correspondem mesmo a um crescimento de uma pessoa. Portanto, os três discos em causa são três fases do Miguel enquanto pessoa que cresce e que ouve música, que conhece pessoas e que ganha referências. Acho que se sente mesmo isso. Há uma linha de… Dá para perceber o que é que ele ouvia no primeiro álbum, as coisas que ele ouvia no segundo. E agora com o terceiro, quando eu aterro, nós estamos totalmente em sinergia, é como se ele já estava à procura das coisas que eu estou a ouvir e eu já estava à procura das coisas que ele estava a ouvir. Foi assim um daqueles belos encontros, na altura certa.
É a segunda vez que mencionam “as coisas que andamos a ouvir” como uma das razões para essa sintonia ter acontecido. Mas que coisas são essas?
[Pedro Melo Alves] Na altura, de coisas é que falámos? Eu falei muito daquele jazz mais moderno, mais centrado no beat ali da cena de Berlim. Falo do Petter Eldh, do Otis Sandsjö, do Christian Lillinger. Sei que lhe mostrei muitas coisas disso. Os Amok Amor, o Koma Saxo. Sei que nessa altura também estava a ouvir o disco de estreia do JD Beck e da DOMi, então isso também foi uma das coisas que andámos ali a falar.
[Miguel Nicolau] Exacto. Eu já os seguia no YouTube quando começaram a aparecer as homenagens ao MF DOOM. Eu adorei aqueles snippets. Então eu que gosto de loops e de coisinhas pequeninas, não sei, foi tipo: “Uau, isto é maravilhoso.” E isso contrasta de certa maneira com o disco. Eu adoro o disco, mas o disco são mais canções propriamente ditas do que aproveitamento desses snippets.
[Pedro Melo Alves] Sim, sim. Aliás, quando o disco sai, na verdade até foi meio que uma desilusão conjunta, porque tudo o que eles vinham a cozinhar até lá era mais interessante.
[Miguel Nicolau] Mas podes continuar, porque estavas a ir muito bem. As referências que tu me apresentaste eram coisas que eu muitas vezes não conhecia e complementavam a minha procura pessoal, a minha descoberta. Eu também gosto muito de música electrónica da Warp, sempre fui fã e sempre adorei. E de repente havia muitas coisas da exploração sónica que se cruzavam também com este mundo mais do beat e do hip hop. As coisas começaram a casar durante as explorações, em que começámos a ouvir. E nesse mundo sónico que começámos a formar, para além de referências também começámos a descobrir que havia um espírito também por detrás, que às vezes, mais do que as referências… Por detrás disso existe um espírito de como é que se aborda a criação, de como é que se aborda a vida, de como é que… Isso é algo que não se controla tão bem. Não sabemos para o que é que vamos quando mandamos mensagem a dizer “vamos lá ver o que é que isto dá.” E essa parte foi surpreendente e torna tudo possível. A forma como temos colaborado, como temos criado em conjunto, como temos pensado, pessoalmente era tudo aquilo que eu sempre sonhei em termos de um projecto. Tive-o em determinadas fases no passado, mas agora faz todo o sentido como uma plataforma de criação e de experimentos artísticos.
Pedro, tu tens andado, e eu julgo não estar assim tão distraído quanto isso, muito arredado deste território do, à falta de melhor termo, groove mais repetitivo. Essa foi também uma das razões porque de repente te pareceu uma boa ideia ingressar em Memória de Peixe?
[Pedro Melo Alves] Sem dúvida. O Miguel já estava muito mais dentro desta música que está em Memória de Peixe. Para mim é uma aventura nova, é um domínio que eu não tinha tido muitas oportunidades de procurar. Eu estava a vir de uma cena mais experimental, mais desconstruída, mais fragmentada da ideia de ritmo, da ideia de pulsação, da ideia de bateria que cria universos rítmicos e métricas. Mas estávamos os dois em linha de tal encontro, porque os dois nos encontramos e meio que temos um um relógio interno do ponto-de-vista rítmico que é mesmo muito síncrono. Já tivemos várias sessões de improvisação ao longo destes anos que são prova disso e foi até uma coisa que também comentaram agora nestes concertos de Dezembro, os nossos primeiros desta fase de Memória de Peixe. E quando estou a falar disto nem sequer estou a falar de coisas muito lineares, estou a falar mesmo até de uma ideia distendida de grooves que têm uma forma linear de se instalar, mas depois a forma final, até vindo da ideia de samplagem do hip hop, de torcer um knob que expande ou comprime…
O efeito J Dilla, não é?
[Pedro Melo Alves] Exactamente, exactamente. Mas é a versão analógica disso, não é?
Claro, claro.
[Pedro Melo Alves] É a versão Chris Dave, de chegar exactamente na cena do sample. E pronto, nós temos isso, mas isso é muito pessoal, o como é que comprimes, como é que fragmentas, como é que crias um desequilíbrio dentro de um equilíbrio maior, não é? Há esta cena micro totalmente fragmentada, mas que está a criar uma linearidade, um pulso e um engagement físico mais macro. Isto depois é muito pessoal e há muitas formas de o fazer, tu também segues o trabalho do Mané que, por exemplo, tem uma procura mais analítica destas formas pessoais de trabalhar as oscilações. Nós temos organicamente, sempre precisar falar grande coisa, um encontro desta forma de trabalhar a fragmentação rítmica, mas ainda assim em torno de um beat, em torno de uma expressão funcional do beat. Para mim foi de facto uma oportunidade que não tinha tido em quase nenhum projecto e que me deu muita pica, primeiro de explorar, mas depois não só explorar, mas explorar com tanto retorno, com tanto feedback criativo.
[Miguel Nicolau] É fixe ver-te a concretizar essa ideia em palavras, por facto. Estas coisas às vezes são quase holísticas [risos]. Acabam por ser difíceis de explicar. E esta questão dos tempos internos é muito interessante. Até pegando nos conceitos que eu descobri um bocadinho através de mergulhar no teu universo, nas coisas que mostraste… Dentro de um espaço temporal, dentro de uma ideia de tempo, haver esta oscilação, este knob que não é bem uma coisa nem a outra, que o hip hop e o sampling sempre permitiram, de não ser bem exactamente aquele tempo. Eu venho do loop de guitarra, do loop que não é quantizado. O pé que toca no loop, é o loop que fica. O erro que acontece, fica, e eu adoro isso. Eu já venho de uma certa lógica de sampling, apesar de não ser exactamente o mesmo mundo, mas vem da mesma ferramenta. E essa ferramenta pode estar ao serviço da linguagem que nós quisermos. A questão é essa. Isso é que é realmente liberdade musical e criativa. É por-mos as nossas cabeças a funcionar dentro de um conceito. E aqui entra também o nosso espaço, fica ainda mais interligado, até mesmo coisas que saem fora da questão musical. Do tipo: “Esta música é sobre um pássaro que voa tão alto, tão alto, tão alto, que expandiu os horizontes daquilo que é real.” Ou seja, há certas linhas pictóricas pelas quais nos regemos para este disco, que vêm também de coisas cinematográficas, estéticas, sei lá, que nos ajudaram a compor em conjunto. Tudo isto foi muito instintivo e instantâneo, o que é raríssimo, no meu caso, existir esta comunicação. Sempre gostei de pegar ideias composicionais e pensá-las de uma forma não convencional, de uma forma não musical até. Podemos começar pelo conceito, podemos começar por uma imagem, e de repente estamos a partilhar coisas que são muito imediatas, são muito rápidas, são muito fáceis e que potenciam aquilo que queremos dizer.
[Pedro Melo Alves] Eu acho que desde os primeiros encontros que muita da conversa e da partilha de referências até são mais de cinema, curiosamente. Mas fazem todo sentido agora, vendo o produto final, que é todo ele uma criação muito cinematográfica, enquanto álbum, enquanto experiência musical. Portanto faz muito sentido agora voltar a esse início e ver que está lá desde sempre.
A que realizadores é que vão então enviar o álbum?
[Miguel Nicolau] Alguns deles já cá não estão. Isso até pode ser uma coisa gira. Nós estamos a preparar um espectáculo para dia 16 de Abril na Culturgest, em que são precisamente fragmentos… Ou seja, há uma máquina do tempo que envia e recebe fragmentos temporais. Lá está novamente a ideia do sampler. Se calhar até podíamos mandar aos nossos heróis. Ao Tarkovsky, por exemplo. A ideia do tempo do Tarkovsky foi uma coisa que, pessoalmente, mudou a forma como vejo a música. De repente, no espaço composicional, de que ele até fala na tela, o tempo é uma ferramenta para moldar a história. Claro que isto é óbvio, acontece sempre, mas a forma como ele o faz… Estou-me a lembrar do Stalker, quando há a cena de saída da zona, da viagem de comboio, o tempo que essa viagem de comboio dura até chegarmos lá, essa ferramenta de usar o tempo como uma ferramenta composicional… Na música também.
E que belas bandas sonoras tinha o Tarkovsky, que eram do Artemyev, o compositor com quem ele mais trabalhava. Vocês tem feito uma data de coisas invulgares e uma delas terá sido a digressão que fizeram antes do disco estar disponível. Não será a primeira vez que isso acontece, mas não é assim tão vulgar quanto isso. Quando vocês partiram para essa série de espectáculos, o disco já estava completamente finalizado ou ainda não?
[Pedro Melo Alves] Sim, sim. Aliás, nós aí apresentámos o disco, mas também… A verdadeira função dessa digressão foi voltar a pôr a banda no espectro da matéria viva, sair do limbo…
Anunciar ao mundo que estavam vivos, é isso?
[Pedro Melo Alves] Exactamente, sim. Foi voltar a pôr o nome um bocadinho no cenário. Ainda por cima esta banda é um desafio ao nível da gestão do público, porque cada álbum meio que adereça circuitos bastante diferentes, embora haja uma linha mais ou menos como condutora, mas vão sendo públicos diferentes. Estar parado durante 5 ou 6 anos, é preciso uma gestão de perceber quem é que ainda segue, o que é a realidade, quem é que ainda quer saber, com quem é que queremos criar novas relações, se queremos ir aos mesmos circuitos, se queremos renovar as relações antigas mas também queremos criar novas. Então esta pré-digressão, este pré-lançamento de álbum foi mais nesse sentido, de renascer das cinzas e voltar a conectar-nos com o circuito português e com as rádios e com quem é que nos possa ainda querer ouvir, porque a verdade é que agora o disco ao sair vai contar a sua própria história e vai se ligar com quem tiver de ligar.
Falem-me da parte de criação. A criação foi simultânea com a gravação? Houve um período de pré-produção em que tudo ficou definido e depois foi uma questão de fixá-lo em estúdio? Como é que a coisa aconteceu?
[Pedro Melo Alves] Foi acontecendo [risos].
[Miguel Nicolau] É uma história muito sinuosa e muito boa.
[Pedro Melo Alves] E rica. Muito rica [risos].
[Miguel Nicolau] Há aqui participação de várias pessoas muito interessantes no processo de composição deste disco. Esta banda, antes de ter a formação que tem agora, contava com o Norberto Lobo no baixo. Ele teve muito input numa fase embrionária do processo. Há que dizer que há temas que já vinham de uma exploração minha e outros que nasceram em conjunto, e há o envolvimento muito importante do Norberto Lobo a determinada altura, em jams de descoberta da linguagem, de muitas coisas que foram aparecendo. Do Marco Franco, que também esteve presente numa jam da “03:13”. Essa música nasceu de uma jam que foi no meu dia de anos. “Olha, antes de irmos para o jantar, vamos tocar aqui um bocadinho.” E de repente sai aquele riff. É óbvio que depois acaba por ganhar uma forma completamente diferente. E claro que a maior parte da criação foi feita entre mim e o Pedro. Há um tema que é um medley do disco todo, uma composição clássica, é um medley das canções todas do disco, foi o Pedro que compôs, com quarteto de cordas… Acho que tu podes falar melhor disso do que eu.
[Pedro Melo Alves] Quer dizer, a composição tinha quarteto de cordas, tinha harpa, sopros, várias flautas, clarinetes… Foi uma espécie de ensemble de música de câmara com uma composição a passar por execertos, fragmentos do álbum todo. Um medley final. Ocupa precisamente a posição final do disco para servir como um outro, como quem chega e relembra a viagem toda que acabou de acontecer.
[Miguel Nicolau] Há inputs aqui muito importantes e variados. Uma das coisas que está por trás, pelo menos, da minha exploração em termos de guitarra aqui nesta música, é que existe um pedal que eu descubro a determinada altura, já no final de 2017, creio eu. É um pedal que basicamente transforma a guitarra e a rearmoniza e dá uma data de possibilidades, tornando-a num instrumento totalmente diferente, mesmo em termos da afinação. Portanto eu próprio tenho dificuldade em perceber qual é que é o setting que estou a usar porque cada música tem uma afinação diferente, acaba por ter um sistema harmónico diferente, só que acaba por ser muito rica em termos da expressividade. A forma como esse pedal reage, os glitches que faz, é mesmo como se fosse um encontro entre uma inteligência artificial esquisita e a potencialidade da expressividade humana. Eu acho que isso também acabou por moldar esteticamente um bocadinho. Nós queríamos uma coisa expressiva, mas electrónica. Por sua vez, começámos a moldar todo o universo imagético do projecto também à volta disso, com o videoclipe da “Good Morning”, do viajante espaço-temporal que também traz uma caixa para avisar a humanidade que eventualmente podemos estar on the verge de acontecer algo que… Bem, a realidade em si é um documentário neste momento, já não é distopia, não é?
Não há nada que há cinco anos pudéssemos imaginar que se compare sequer com o que estamos a ter de lidar agora, não é?
[Miguel Nicolau] É exatamente isso. Mas eu acho que isto foi tudo um crescendo, não há uma… Como é que nasceu o disco? O disco nasceu disto tudo, nasceu desta vontade de explorar, da vontade de falar sobre estas coisas, portanto já conseguimos perceber que há paralelismos aqui entre muita coisa que nos preocupa enquanto pessoas, enquanto artistas e que confluiu de uma maneira muito rica.
[Pedro Melo Alves] Convém dizer também que depois dessa primeira versão com o Norberto, que acabou por seguir outros caminhos, junta-se aquele que já é meu parceiro em The Rite of Trio. É engraçado, porque Memória de Peixe torna-se um trio ao terceiro álbum, com a adição do baixista. Temos o Filipe Louro a assumir a pasta e aí já estamos em 2023, portanto já tínhamos um ano desta exploração, a cozinhar todo este universo musical, conceptual e imagético. Quando o Filipe entra, ele dá um contributo muito forte para tudo aquilo que o álbum se tornou ao nível de… Ou seja, é quando, de certa forma, tudo aquilo que nós estávamos a cozinhar, todo aquele caldo se começa a refinar, se começa a apurar e se começa a filtrar. O Filipe entra exactamente nessa fase em que estamos a arrumar a casa da composição das músicas, do que é que é o álbum, é nessa altura também que é composto o medley. Quando o Filipe chega é na fase do início do amadurecimento deste álbum, que por sua vez também ainda dura o ano de 2023 e parte de 2024.
[Miguel Nicolau] O Filipe teve uma contribuição importantíssima.
[Pedro Melo Alves] Ele grava o álbum connosco, depois entramos nesta fase da recta final, finalizar o álbum e tudo o que isso significa, desde a gravação para à produção toda, os arranjos todos, as vozes todas, os tecladinhos todos, tudo. O Filipe chega ao ponto de ser também o actor principal no vídeo da “Good Morning”, como astronauta.
[Miguel Nicolau] É uma equipa multitásca (risos).
[Pedro Melo Alves] Temos a Ângela Bismarck, que é a nossa engenheira de luzes, a nossa designer de luz. De repente, é também a directora de fotografia e operadora de câmara. É a mesma equipa que de um momento passa para o outro lado, passa da equipa musical para uma equipa de produção audiovisual.
[Miguel Nicolau] E mesmo a equipa musical é uma equipa incrível. Temos o Pedro Ferreira de YAKUZA, que é grande produtor e misturador, ele também misturou este disco. O Nuno Monteiro também está connosco há muito tempo. Ou seja, foi tudo uma confluência. Eu tenho o meu trabalho enquanto produtor musical também, lido com as minhas coisas e sei o quão difícil é nós criarmos condições para que a música possa prosperar de uma forma criativa e de uma forma sem limites, sem deixar que as condicionantes e os factores externos nos moldem a nossa criação artística. Acho que muitas vezes estamos nesta imposição constante. E acho que esta equipa, a forma como nós criámos isto e como tudo ocorreu, é muito feliz, é mesmo muito feliz.
O universo sabe o que faz. Às vezes.
[Miguel Nicolau] Às vezes, certamente [risos].
Este espectáculo na Culturgest de que me falaram agora, vai ser então diferente daqueles que vocês apresentaram antes, não é?
[Pedro Melo Alves] Exactamente. O disco sai a 21 de Março e o concerto é a 16 de Abril, é o nosso concerto de lançamento deste universo todo. Portanto, é a primeira vez que esta dimensão toda extra-musical — que o Miguel já esteve a descrever e que vai estando expressa, por exemplo, na produção dos videoclipes — vai ter a sua expressão total. Portanto, o que se está a preparar para a Culturgest é uma espécie de cine-concerto, como já estávamos a chamar-lhe hoje. Há um concerto diferente dos outros concertos, que têm um espírito mais clube, de tocar e agarrar a energia, todos próximos, banda próxima. Aqui nós vamos contextualizar um pouco a origem destas composições todas. O concerto em si vai levar o público numa viagem com recurso a cenografia, a vídeo e ao desenho de luz que já existia. Vamos criar um espectáculo já mais imersivo, mais multimédia, até para aproveitar o belíssimo Dolby Atmos que a Culturgest agora tem, para contextualizar o que é que estas canções são, de onde é que elas vêm, qual é o contexto conceptual, quais são estas coisas do passado e estas mensagens de interferências. Mostramos não só de onde é que veio cada composição, mas também o que é que queremos lançar enquanto mensagem com cada um dos temas. Este concerto vai dar, esperemos nós, e correndo tudo bem, este embalo todo. As pessoas não vão levar só um concerto de música, vão levar todo este universo que nós temos vindo a cozinhar e que um álbum não consegue nunca transmitir sozinho, por muito que isso seja sugestivo.
Vai circular esse concerto depois? Essa é a ideia? Já há outras datas agendadas?
[Miguel Nicolau] Tivemos hoje a confirmação do Paredes de Coura, estamos lá dia 15, mas não levamos esse…
Isso é um espectáculo que requer sala e Dolby Atmos?
[Pedro Melo Alves] Exacto.
[Miguel Nicolau] E nem sequer estamos a pensar na continuidade. Mas se ela existir, óptimo. Agora só estamos focados em criar a melhor experiência para nós próprios e para o público. Estamos muito entusiasmados com isso. Se correr bem, logo se vê como acaba a história. É jogo a jogo [risos].
[Pedro Melo Alves] É o que dizia há bocado sobre a digressão de Dezembro. Este é o ano em que Memória de Peixe se mostra pronto para voos maiores. Uma repetição deste espectáculo na Culturgest, pelo tempo que as coisas demoram, como tu sabes, se calhar só lá para 2026. O plano agora é lançar o álbum e entregar a mensagem de que nós nos encontramos efectivamente disponíveis. E temos toda a certeza que as oportunidades vão fazer ricochete e voltam.