Fazia Manga o seu caminho no mundo quando Mayra Andrade sentiu “uma espécie de revelação”, uma vontade inadiável de se reconectar com o seu repertório e de apresentá-lo com voz e violão, o seu lugar mais natural na música, num formato de intimidade com que nunca se tinha apresentado ao seu público. Dessa vontade nasceu reEncanto, uma digressão que se transformou em disco, e onde, sempre fiel ao seu instinto, Mayra embarca numa nova viagem pelas suas canções. Nessa jornada, reecantou-se com as histórias que elas traduzem e redescobriu a sua própria voz, agora registada ao vivo, num álbum de coração aberto, gravado à flor da pele, onde se revela mais livre que nunca.
reEncanto é um álbum onde a palavra se inscreve com intenção e sensibilidade no tempo presente, mas onde a doce inquietude da sua voz ecoa nas emoções daquela noite e daquele lugar. É um registo que vive tanto das memórias evocadas pelas músicas, quanto do lugar emocional onde a voz se torna matéria essencial, nutrida por silêncios e sussurros, narrando uma história que transcende as palavras. Nesse gesto de entrega nasce também uma certa tranquilidade que tanto se conecta à trajetória única da sua discografia, quanto ao instante presente — à Mayra daquele momento e daquele lugar, de pés descalços e seguros na terra.
Para essa segurança e liberdade muito terá contribuído Djodje Almeida, parceiro fundamental desta dança em forma de vínculo. Ao violão, Djodje soube criar um lugar de escuta atenta e sensível, onde a intimidade se transforma em comunhão. O palco, como releva a cantora, é um lugar de muita fragilidade, só compensada pela verdade que as canções transportam. Mas se a verdade abunda nestas canções, há nelas, também, um sabor amargo de atualidade. No entanto, a voz de Mayra, ainda que lúcida e consciente das agruras do mundo, nunca é tolhida pelo assombro, revela antes uma busca incansável pela luz, pelo amor e pela esperança. O seu reEncanto com a música é, antes como agora, uma luta vital e incessante pelo reencantamento do mundo.
Escutando a tua discografia, ao longo destes quase 20 anos, percebe-se que a palavra é algo a que dás muita importância. Queria começar justamente pela palavra que dá título a este disco: “reEncanto”. Neste álbum fazes uma retrospetiva da tua história discográfica, mas também do teu percurso artístico, desde que, aos 15 anos, te apresentaste na cidade da Praia. De que lugar veio esta necessidade de reencanto com estas canções e porquê esta palavra para assinalar este momento da tua vida pessoal e artística?
São várias perguntas nesta pergunta, ou pelo menos são várias as respostas que acabam por constituir um puzzle. Eu estava grávida da minha filha, ainda a fazer a turnê do Manga, quando senti uma necessidade muito grande de me conectar com o meu repertório, e sobretudo de me conectar com o público numa intimidade como ainda não o havia feito. Já tive vários discos, vários projetos, mas nunca me tinha apresentado com voz e violão, que é o meu estado mais natural na música. Foi uma espécie de revelação. “reEncanto” é reencantar-me com estas histórias, é redescobrir a minha voz e quem eu sou nestas canções. É redescobrir o que eu tenho a dizer para além das palavras. Eu sou a mesma pessoa, mas já não sou a mesma pessoa. O facto de ter estado grávida quando fiz este projeto foi como se houvesse, ainda, uma espécie de um “eu” maior em cima de mim. A gente sente de uma forma diferente, a profundidade das coisas é muito maior. Estamos no olho do furacão. É uma revolução tão grande, a gente fica tão sem chão, que, na verdade, é um privilégio poder cantar. É um privilégio poder cantar num momento tão cru, tão… Eu nem tenho palavras para falar desse momento.
Eu sinto que no teu trabalho, e neste álbum mais ainda, existe sempre uma relação entre um certo instinto de narração, mas também de observação de fora sobre ti mesma.
Sim, é mesmo assim que eu me sinto não só na música, mas na minha vida de uma forma geral. Eu estou sempre em alternância entre estar no olho do furacão, no meio daquele turbilhão da ação, onde és levada pelas tuas emoções, e estar numa espécie de voo de águia, em que vejo tudo de cima e digo: “Uau, que interessante, que transformador isto vai ser, quem é que tu vais ser quando isto tudo passar e te deixar os ensinamentos”. Nesse voo foi importante perceber a intemporalidade destas músicas.
O que é que achas que faz com que estas músicas tenham esta relação tão forte com o presente e não estejam apenas fixadas ao tempo e ao lugar em que foram criadas?
Eu acho que é a verdade. É a verdade do sentimento que nasceu com estas músicas. Não foram músicas feitas para seguir uma trend, ou porque comercialmente iriam funcionar. Eu acho que é esta verdade no sentimento que faz com que as músicas possam atravessar décadas. E as histórias, não é? Há músicas que, tristemente, são de uma atualidade muito grande. Quando eu falo com a minha consciência sobre não permanecer indiferente perante a injustiça, perante a violência, sobre poder agir como ser humano, fazer algo para que a gente possa viver num mundo com mais humanidade… Eu tenho sentido uma tristeza muito profunda quando canto algumas destas músicas. Magoa-me que sejam tanto de atualidade, e se calhar cada vez mais. Espero que daqui a uns anos já estejam ultrapassada e possam ser vistas como músicas de um tempo já remoto. Mas são histórias de vida, são histórias do quotidiano, são histórias muito reais, ou minhas, ou da minha observação da vida, e, portanto, acabam por não ter tempo.
No teu processo criativo costumas partir da base, o violão e a voz, à qual acrescentes camadas e um preenchimento que se vai construindo com os músicos com quem te cruzas. O processo artístico deste disco parece ter sido o oposto, já que partiste das canções já construídas, para as despires e voltares à base.
Não, não foi assim. O processo foi mesmo voltar às minhas cifras iniciais, ao momento em que eu peguei num violão e compus estas canções. O Djoje [Almeida] e eu fizemos primeiro um trabalho em que a ideia era voltar à origem, à simplicidade das canções iniciais. Só depois é que ele acrescentou a sua identidade.
Mas a memória das versões estúdio não está sempre lá? A forma como o Djodje Almeida conheceu estas músicas foi já no seu formato de álbuns. Essa memória, essa relação de alteridade, não está sempre presente?
Não, porque por mais que tenha overdubs ou outras pessoas a tocarem, a base de todos os meus discos, pelo menos até ao Manga, foi sempre o violão, inclusive na orquestração. Há muitas camadas, mas se tu retirares todas, a música funciona só ao violão. Para mim, a música tem de se sustentar com a voz e violão — ou, pelo menos, na forma como eu fiz música até agora, a música tem de se sustentar com a voz e violão. É sempre esse o pilar. O nosso processo foi mais do que olhar o trabalho já feito sobre as canções e desconstruir certas coisas que foram colocadas por outros. O trabalho foi mesmo voltar à génese, à base, e depois o Djodje, na execução, foi enriquecendo as músicas ao longo dos concertos.
Costumas falar de uma espécie de dança entre a voz e o violão e, curiosamente, tu e o Djodje conheceram-se num espetáculo de dança. Como se deu esse encontro?
Conhecemo-nos em Cabo Verde em 2020, e trabalhámos juntos na peça “Pantera”, da Clara Andermatt e do João Lucas. Na peça havia um momento de voz e violão, em que nós interpretávamos uma música do [Orlando] Pantera, a “Dispidida”, mas de uma forma algo destruturada, com uma certa distância no palco, e com muita improvisação, porque cada noite era diferente. Isso obrigou-nos a criar uma espécie de conexão wireless, que tinha de funcionar a cada noite. Quando me surgiu o desejo de fazer este reEncanto, a primeira pessoa em que pensei foi ele.
Tendo ele crescido com a tua música, o que é que sentes que ele trouxe a estas canções?
É interessante ouvi-lo falar porque ele diz que a minha música fez parte da sua educação musical e da sua formação como músico. O Djodje é uma pessoa que sempre viu a nobreza que é acompanhar uma cantora ou um cantor. Não é todo guitarrista que sabe acompanhar uma voz. Ele sabe fazê-lo porque sabe escutar.
Essa escuta nota-se muito no álbum e parece haver uma cumplicidade muito forte entre vocês.
Eu vi o Djodje a desconstruir-se, a ganhar ferramentas na peça “Pantera”, e foi com essas ferramentas que ele chegou aqui, ganhando em maturidade e em potência de uma forma exponencial. Em dois anos, o homem que chegou à minha casa com o violão para fazer o primeiro ensaio, e quem ele é agora, são dois estágios muito diferentes do processo dele. É uma pessoa muito séria, muito comprometida com a música, muito comprometida com o meu olhar, com a minha necessidade, com o meu sentir, sabes? É aquela pessoa que respeita muito a minha intuição na música e que me vê mesmo como uma música.
Está mesmo a escutar-te e não a cumprir mais uma “encomenda”.
Não, de todo. Ele está ao serviço da música. Este é um projeto de coração para ele, eu acho que isso se ouve. Ele foi, e continua a ser, um suporte muito grande. Estar em palco é um momento de muita entrega e às vezes de muita fragilidade. A vida acontece, às vezes chegamos ao palco magoados ou debilitados com alguma situação da vida. Nós somos o pilar um do outro. A energia criativa, o Espírito criativo, com “E” maiúsculo, está muito presente entre nós quando isto acontece. Às vezes, quando tocamos, há improviso e eu vou a sítios onde nunca tinha ido e que não estavam combinados. Ele diz que, nesses momentos, parece que a mão dele na guitarra vai atrás sem ele saber o que está a fazer. Nós temos esse tipo de alquimia a acontecer.
E nessa dança sentes que estas canções tinham coisas novas para te revelar? Será que as canções podem ter várias vidas dentro delas?
Eu acredito que sim e lembro-me de no primeiro ensaio me emocionar a cantar muitas destas canções. Eu gravo as músicas, canto nos concertos, e quando passo para o projeto seguinte, nunca mais as ouço. Algumas destas músicas eu não cantava há 15 anos ou mais. Reencontrar certas músicas foi um sentimento de gratidão muito grande. Foi perceber que eu fiz algo aos 17, 18 ou 23 anos, algo que cresceu, mas que se sustenta, e que está aqui de pé, com toda a honra. É muito gratificante. É como se a Mayra de hoje desse um abraço à Mayra de ontem e lhe dissesse: “Que bonito o que tu fizeste, obrigado.”
Que Mayra reencontraste neste novo olhar sobre as canções? Encontraste uma Mayra muito diferente?
Diferente sim, porque a vida aconteceu. Mas acho que não é descobrir uma nova Mayra, foi mais redescobrir a obra que outras Mayras criaram, como numa passagem de estafeta, em que pego nestas músicas e digo: “Obrigado por terem criado isto e terem trazido isto até aqui. Agora, daqui para frente, levo eu”. Foi redescobrir a minha voz, redescobrir quem eu sou nestas músicas que, no fundo, nasceram de outras Mayras. Para mim, é um fechar de um ciclo.
Quando ouvi o disco senti que existia uma espécie uma dupla narrativa, em que tanto podemos escutar as músicas a partir da palavra, como a partir dos teus sussurros e silêncios. Sentes que este álbum também conta uma história que está para lá das palavras cantadas?
Completamente e fico muito com contente com esta pergunta e observação. Eu sinto que, para além da palavra, da melodia cantada, e dos acordes tocados, existe uma outra camada neste álbum, que tem a ver com o facto ter estado grávida, ou recém parida. É um lugar em que uma pessoa está completamente à flor da pele, é uma coisa que não se conta. Estar em palco já é estar conectada a uma sensibilidade muito extrema. Estar em palco no estado em que eu estava é aterrador no melhor dos sentidos, é muito profundo. Quem me conhece bem sabe que as histórias que eu estou a contar para além das palavras — ou seja, aquilo que eu estava a viver naquele momento — está muito presente neste disco. Talvez este seja o disco onde quem não me conhece, me pode conhecer melhor. Eu sou uma artista de palco, que dou tudo e mais qualquer coisa hoje, e amanhã tenho a liberdade de dar algo completamente diferente.
Sim, já vi vários concertos teus e é sempre uma experiência única e particular.
Sim, sinto essa liberdade em palco, mas não sei ainda como fazer isso em estúdio. É uma liberdade que tenho de conquistar. É um desapego, uma aceitação de que aquilo que for naquele dia, vai ser assim para a eternidade. Ainda não sei fazer isso em estúdio, mas sei muito bem fazer isso em palco. É por isso que digo que quem me quer conhecer melhor, como artista, é através deste disco. Este disco é como um testamento à data daquele dia, daquela noite particular, sobre quem eu era até àquele momento.
Se calhar será também essa a diferença. Um concerto é uma algo que acontece, que é único e efêmero, para quem vive aquele momento e com aquela intensidade. Um disco é algo que fica cristalizado e que viaja pelo tempo naquela forma em que foi registado.
Sim. E num disco a gente vai, retorna, e quando está a gravar tem a opção de mudar coisas. Num concerto isso não acontece. Eu costumo dizer que os meus discos são retratos muito fiéis de quem eu era naquele momento, mas se há um disco que é isso, de quem eu era naquele instante, é este reEncanto.
Como é que pensaste a organização do concerto e do álbum? Passaste pelos teus quatro álbuns, mas imagino que tenhas procurado construir uma narrativa para que o concerto contasse uma história e fizesse uma viagem emocional.
Eu comecei com um bolo maior de canções e fui percebendo, também com a experiência do que é construir um concerto, que as músicas são como um jogo de xadrez. A música desempenha um papel importante na curva emocional do espetáculo. Sendo um espetáculo de voz e violão, era importante que houvesse uma certa diversidade de ritmos e de cores emocionais nas músicas. Há músicas que podem ter ritmos diferentes, mas que pela sequência harmónica, acabam por ter uma cor similar, e inconscientemente, estamos a bater na mesma tecla emocional da pessoa. A ideia foi criar como que um desenho de uma curva, com as músicas a preencher essa curva, para que fosse uma viagem emocional realmente conjunta.
Um concerto também vive muito da relação de comunicação com o público. Qual foi o público deste concerto? Era sobretudo público inglês ou havia público da diáspora cabo-verdiana?
O meu público é muito misturado. É óbvio que havia cabo-verdianos na sala, mas era um público mainly inglês, com tudo o que isso significa também em termos da diáspora anglófona africana. Londres é uma cidade mega cosmopolita e o meu público é completamente misto em termos de background cultural ou de faixa etária. Nós queríamos gravar este concerto da tour, primeiro, porque foram dois concertos que ficaram sold out com meses de antecedência, e, portanto, havia uma expectativa do público. Depois, porque eu sei que o público de Londres é incrível e sempre tive uma experiência muito boa. E finalmente porque a acústica da Union Chapel é conhecida e reconhecida. reEncanto, gravado numa igreja, acusticamente, era exatamente o que nós precisávamos. E acho que também era simbólico. Eu cheguei ao ensaio e senti… É como se o universo me tivesse dito: “Aqui tu estás protegida, aqui tu estás segura, aconteça o que acontecer aqui, vai valer”. Nós podíamos ter gravado aquele concerto e não ter dado um disco, a magia podia não ter acontecido, mas acho que aconteceu.
Pensando na história e na atualidade da música cabo-verdiana, há grupos com quem cresceste, como Os Tubarões, Bulimundo, Finaçon ou a Voz de Cabo Verde, que foram revolucionários no seu tempo, mas cuja projeção internacional foi muito dificultada pela dupla condição periférica de Cabo Verde, não só como arquipélago, mas também como país colonizado por um país da periferia europeia como Portugal. Atualmente a situação é um pouco diferente e as possibilidades de internacionalização da música de Cabo Verde estão, de certa forma, mais expandidas. Como olhas para esse potencial quando, ao mesmo tempo, persistem muitos problemas estruturais relacionados com as estruturas de profissionalização dos músicos que continuam a ser bastante frágeis?
E com muita precariedade. Os artistas cabo-verdianos não têm um mercado que os sustente. Eu acho que acabamos por ser muito órfãos. Nós temos de conquistar o mundo para sobreviver, cantando num idioma que ninguém entende. Não é como um artista brasileiro, americano, nigeriano ou sul-africano, que não precisaria sequer de sair das suas fronteiras para viver da música, para ter um mercado de milhões de pessoas. Nós não temos esse mercado e o pequeno mercado que temos não é muito organizado. Vem-se trabalhado há uns anos para cá nessa organização, mas não existe força de mercado. Para o artista cabo-verdiano é uma sina. Acaba por ser um destino cruel nós termos de sair de Cabo Verde, vivermos longe da nossa família, do nosso berço, da nossa origem, do que nos alimenta. No meu caso, há muita coisa que me alimenta, Cabo Verde é uma grande parte, mas não só. Mas para a maior parte dos artistas, tu tens que literalmente abraçar a vida de imigrante para viveres da tua música. E a indústria cabo-verdiana acaba por estar toda muita organizada em guetos. Não conheço muitos artistas que não trabalhem com produtores cabo-verdianos, por exemplo. O José da Silva, que internacionalizou a carreira da Cesária Évora, acabou por ser o produtor que assinou imensos artistas cabo-verdianos, mas acho que a internacionalização passa também por quebrarmos essas barreiras e acreditarmos que a nossa música tem potencial para ser trabalhada noutros mercados. Eu acho que sou um exemplo disso. Assinei com a Sony França, faço concertos no mundo todo, e graças às novas tecnologias e às plataformas, que pagam muito mal aos músicos, a minha música e de outros acaba por estar à distância de um clique. As possibilidades são infinitamente maiores do que no tempo da Voz de Cabo Verde, mas ao mesmo tempo teríamos de ter de trabalhar a música de Cabo Verde como um produto de exportação.
Vieste para Lisboa em 2015, num momento em que a cidade vivia uma vibração musical e cultural muito forte, muito reflexo da imigração e das diásporas. No entanto, a cidade tem sofrido muitas transformações relacionadas com os próprios processos de gentrificação e turistificação. Mesmo ao nível dos espaços da música ao vivo, enquanto há uns anos havia várias salas e espaços onde podias ouvir música negra e africana, hoje praticamente só existe o B.Leza e muitas salas e clubes têm vindo a fechar. Como é que olhas para a situação de Lisboa hoje?
Eu continuo a gostar de Lisboa porque vivi muitos anos em Paris, que é uma cidade muito dura, com um clima muito chato, com uma dinâmica muito stressante. Lisboa, apesar de tudo, é uma pequena cidade, com um clima bom, perto de todas as capitais. O que me trouxe a Lisboa continua a manter-me em Lisboa, mas é claro que eu noto uma diferença muito grande. Quando cheguei, Lisboa estava com uma dinâmica e ainda com uma genuinidade e um encanto que acho que acabou por trai-la. O turismo é como a música na carreira de um artista. Podes perder-te num caminho aparentemente mais apelativo, mais fácil, de income mais rápido, ou podes tentar construir algo a longo prazo e que não desvirtue a tua identidade. Basta ver a dificuldade de alugar uma casa hoje em Lisboa. Está uma coisa de loucos. Os preços aumentaram imensamente, está-se a tornar proibitivo, e o nível de vida das pessoas cá não tem aumentado muito. Sinto que as pessoas, principalmente as que são de cá, estão amarguradas com essa coisa do turismo, como esta nova cara, com esta viragem que Lisboa tomou.
Na música “Bom Bom”, com o Batida, cantas que “ubuntu é junto”. Apesar de ter uma letra dura, é uma música que também procura um sentido de esperança. Sentes que o reEncanto deste disco pode ser uma forma de reencantamento com o mundo quando tudo convida ao pessimismo? Precisamos também de nos reencantar com o mundo em que vivemos?
Nós estamos a viver um momento trágico e eu não vou desenvolver muito sobre isso porque acho que nós estamos a precisar de outra coisa. Estamos mesmo a precisar de reforçar a esperança e eu quero acreditar que o reEncanto pode ser um canal. É um canal que vai estar à disposição das pessoas para elas se conectarem com o seu sentimento, com as suas emoções mais reais, mais profundas. O que acontece quando estás na sala, aquilo que tu vês, é que as pessoas são tocadas e unem-se.
Há uma comunhão.
Há uma comunhão e é isso que acho que precisamos. De certa forma, acho que reEncanto chegou no momento certo. É aquela música e aquele disco que convida à comunhão. Nós precisamos unir-nos, e precisamos unir-nos em amor. Não amor no sentido clichê, mas amor no sentido: nós somos amor, viemos ao mundo para amar, para nos amar e amarmos os outros. Acho que a frequência das músicas tem uma responsabilidade muito grande no que ela desperta no ser humano, e neste sentido eu acredito que sim, reEncanto é uma música que veio para cumprir essa sua função neste preciso momento.