Músico, escritor, dramaturgo, pensador e ex-ministro da Cultura, Mário Lúcio é uma das grandes referências intelectuais e artísticas de Cabo Verde. Aos 61 anos, lançou no final de Janeiro um novo álbum, Independance — que assinala os 50 anos da independência de Cabo Verde, que se comemoram este ano.
Ao mesmo tempo, e como o título do disco deixa a entender, este é um trabalho dançável. Embora Mário Lúcio esteja mais conotado com uma música poética e tranquila, que pede mais contemplação e menos agitação, desta vez recuperou as suas raízes das festas de baile — onde começou o seu percurso como músico, muito jovem — para um disco celebratório e de dança, que é festivo mas também politizado.
Até porque estas músicas e danças eram reprimidas pelo Estado Novo até à revolução do 25 de Abril de 1974, que abriu caminho para as independências dos PALOP e, no caso de Cabo Verde, para o contacto com a cultura e música da África continental, algo que estava vedado e era muito distante para a nação insular.
No sábado, 8 de Março, Mário Lúcio leva Independance ao palco do B.Leza, casa mítica das músicas africanas lusófonas (e sobretudo a cabo-verdiana) em Lisboa — que este ano também comemora um aniversário redondo, de 30 anos de história. O artista vem acompanhado da sua Pan African Band para fazer a festa e celebrar a liberdade. Os bilhetes estão à venda por 20€. O Rimas e Batidas entrevistou-o para antecipar a performance, reflectir sobre o disco e, sobretudo, sobre a independência de Cabo Verde.
Quando e como é que começou a desenvolver este novo álbum? Já tinha a ideia de assinalar os 50 anos da independência de Cabo Verde com um disco?
Por acaso nunca pensei nisso, mas também nunca pensei nos meus romances. Eles chegam-me. Mas sempre senti, isso sim, que deveria escrever alguma coisa sobre o campo de concentração do Tarrafal, sobre Amílcar Cabral… Mas são sentimentos que têm muito mais a ver com a memória pessoal. Em relação a este disco, o que eu pensei, já há muitos anos, é que queria fazer um disco dançante, como eu tocava nos bailes. Mas nunca pensei que se ia chamar Independance. Aliás, os títulos vêm sempre depois. E fui trabalhando noutras coisas. De repente, um dia descem-me estas músicas todas de uma assentada e é quando percebo que tenho material para um disco dançante. Primeiramente, pensei numa coisa estilo Renaissance, algo que juntasse Cabo Verde a África, que é algo recente, só tem 50 anos — no sentido de nós descobrirmos a música e a cultura africana. E o disco depois tem o lado político que todo o homem tem. Não da política, mas da sua relação com a sociedade, com os movimentos sociais, o seu compromisso.
Outra questão muito interessante neste trabalho, que está presente e também é simbólica, tem a ver com as danças e as músicas proibidas até à independência ou até ao 25 de Abril de 1974, supondo que foi um processo gradual. O Mário também queria assinalá-lo com este disco?
Sim, eu lembro-me, quando era criança, que a única dança que nós víamos era o batuku. É uma dança só feita por mulheres, organizavam-se sessões — por ocasião dos casamentos — e tinha que ser assim nas periferias. Não havia nenhuma actividade cultural em que as músicas tradicionais fossem chamadas, a não ser pelos clubes nocturnos, e eram as músicas urbanas. Mas as músicas rurais não eram permitidas.
Tinham de ser feitas e tocadas às escondidas.
Sim, sim. O funaná, por exemplo, era deliberadamente proibido. Porque é uma música muito libertadora — é até libertina na sua forma de celebrar. A tabanka, em si, já é um género comunitário e de muita afirmação identitária. Também é um género irónico e que fazia troça, digamos, da sociedade colonial, da elite que esses homens e mulheres protegeram. Então, de repente conhecemos a música da África continental. As primeiras músicas que chegaram, em 1973 ou 1974, foram os discos de rebita de Angola. E só mais tarde é que nos chega música dos Camarões, da Guiné-Conacri, da Guiné-Bissau, da Nigéria e do Gana. Então, a rapaziada começou a inventar, porque esta era uma música vibrante, que mexe com as pessoas, mas nós não tínhamos referência sobre como é que se dançava. Tanto que em Cabo Verde dançamos essas músicas, como a rumba congolesa ou o soukous, de forma diferente de como se dança no continente. Tivemos que inventar essas danças. Mas para nós era uma libertação, cada um podia dançar como quisesse. Até que os grupos musicais começaram também a copiar essas músicas, fazíamos bailes de conjunto, e as moças e os moços dançavam colados como dançamos a morna, a koladera e o funaná.
E sente que essa aproximação à África continental, a todos esses países e culturas que estavam afastados, moldou culturalmente Cabo Verde ao longo das últimas décadas?
Completamente. Em termos culturais, em termos identitários e artísticos… Nós só tínhamos o conhecimento de uma parte da nossa cultura. Cabo Verde estava virado para a Europa, era toda a nossa referência. E isso foi feito de propósito. Porque olhar para o Brasil era olhar para um país independente, olhar para África era olhar para vários países independentes nos anos 50 e 60… Estávamos voltados sobre o nosso umbigo e com uma única referência: Portugal. Isso fez com que tudo fosse, de certo modo, imitado. Tudo muda com o contacto com o continente e também com as Américas. No caso da música, até 1975, olhemos para a discografia cabo-verdiana: nós tínhamos muita boa música instrumental, felizmente, dividida em duas partes. A primeira eram as mornas tradicionais, as koladeras tradicionais. E depois tínhamos música tocada mais ao estilo da cumbia, música latino-americana que era uma influência que nós recebíamos. Tínhamos a emigração, que trazia sempre alguns discos, e preferiam trazer discos que eram permitidos. Esse contacto com a música africana não acontecia abertamente. Não havia guitarra eléctrica, não havia percussão, não havia polifonia… Mas havia a energia, estava lá. Quando eu comecei a tocar no grupo Abel Djassi, todos os grupos tinham sempre três ou quatro guitarras. Havia o baixo, um fazia de guitarra solo, outro fazia o ritmo e havia um contra-solo, que é muito comum nas músicas continentais africanas. Isso influenciou muito a música cabo-verdiana dos anos 80, música muito rica — caso do grupo Bulimundo, que também tocava com três guitarras e chegou a tocar com quatro —, e influenciou a música de Cabo Verde até hoje. Porque nós só tínhamos a versão acústica da nossa própria música e, de repente, havia uma versão dançante. Era música tradicional de Cabo Verde mas com a toada e o propósito dançante das músicas continentais.
E a electricidade dos instrumentais, com as guitarras e mais tarde os sintetizadores, também moldou muito a música de Cabo Verde daí em diante.
Sim, nós procurámos sempre referências. Cabo Verde é um país com a sua génese no século XV. E quando procuramos as nossas referências, e isso hoje é muito assumido e escrevi-o no Manifesto a Crioulização, olhamos para a nossa síntese e para as partes que trouxeram esses ingredientes. Temos uma grande influência da música europeia e da música africana. Mais tarde, temos uma confluência com as músicas americanas, que também sofreram o mesmo processo. A música do início do século XX, mesmo as que foram gravadas nos Estados Unidos, tem sempre muitas cordas. O banjo, o violino, o cavaquinho, o violão, o piano, o contrabaixo… E os instrumentos de sopro como a flauta ou o saxofone. O máximo que se ouvia de percussão era um chocalho. Isto durante muitas décadas. Depois, quando começámos a olhar para o continente africano, a primeira coisa que identificámos foram as guitarras eléctricas. Mais tarde, chegam os sintetizadores, que vêm completamente da influência das Antilhas. Quando se inventam as máquinas como as Farfisa, foram músicas antilhanas que absorveram esses instrumentos. Por exemplo, Guadalupe e o Haiti tornaram-se grandes referências para a música de Cabo Verde, para a nossa koladera — e hoje em dia fala-se muito do zouk. O uso dos saxofones, dos sintetizadores, isso veio das Antilhas.
E, depois, sendo a diáspora cabo-verdiana tão vasta e estando tão espalhada pelo mundo, dos Países Baixos aos EUA, ela consome a música tradicional de Cabo Verde, faz versões diferentes dessa música e funde-a com outras coisas; por sua vez isso inspira o que se está a fazer em Cabo Verde; e é um ciclo em constante movimento.
Sim, Cabo Verde é bastante especial nisso. Nós alimentamos a diáspora, a diáspora alimenta-se de nós, mas ao mesmo tempo a diáspora traz o seu contacto com outras diásporas. E a música das Antilhas chegou-nos através de Dakar. Porque a música senegalesa também utilizava sintetizadores. E a Martinica começou o seu contacto com a Europa e trouxeram-nos esses instrumentos. Depois, o que é que vemos hoje? Nós, cabo-verdianos, temos essa facilidade de termos uma cultura aberta. É uma grande honra e privilégio, porque não estamos condicionados por normas tradicionais fixas. Isso permite que tenhamos, hoje, uma geração fantástica e cada um a fazer as suas experimentações para seu lado. E, quando falo de independência, estamos a falar de um processo longo. E às vezes é muito mais difícil o processo de independência do que a própria independência. E quando se diz que ela não engloba Portugal, isso não é verdade. É numa troca mútua, às vezes conflituosa, às vezes não. É um processo de afirmação cultural, de começar a dizer “sou metade português” para dizer “já não sou essa metade, sou cabo-verdiano”. Tudo isso está escrito, como é que se foi conformando uma identidade. E a maior riqueza é não termos excluído nenhuma parte. Isso tem reflexo, hoje em dia, na nossa forma de ser, na nossa maneira de aceitar o outro. É um dos traços da qualidade da nossa democracia.
A famosa morabeza, também.
Sim, é verdade [risos].
Há pouco mencionava como Cabo Verde tinha como referência Portugal, antes da independência, e de como estava de costas voltadas para África. E, lá está, um processo de independência é inevitavelmente sempre mais longo do que um acontecimento específico numa data concreta. É um processo de descolonização mental da própria sociedade. Sente que é algo contínuo, que se mantém 50 anos depois?
Sim, e vai continuar, porque a independência tem o seu lado mais conhecido que é o lado político. Mas, evidentemente, a independência é um acto de cultura. Eu não vejo nenhum povo a ser independente se culturalmente depende de outro. E nem é a dependência por opressão, é a dependência afectiva. São tão iguais que, bem, vamos conviver, cada um com a sua autonomia, mas não há necessidade de estarmos separados porque isto até atrapalha. E já tivemos casos desses, de lugares que se tornaram independentes e depois voltaram a unir-se, porque no fundo eram o mesmo povo. Tal como também já tivemos povos juntados à força e depois não existiam elementos identitários comuns para constituir uma nação. Em África agora seria muito pior voltar atrás, mas isto também foi uma fonte de conflitos. Porque se juntaram, sob o nome do mesmo país e com uma mesma bandeira, nações que até já estiveram em conflito. É assim a transformação. No nosso caso, o nosso processo de independência não está separado do processo colonial, evidentemente, mas principalmente do processo de resistência, da luta anticolonial. E antes da luta anticolonial houve a luta antifascista. E essa luta teve o seu foco principalmente nos portugueses. Isso está documentado, o meu livro O Diabo Foi Meu Padeiro fala exactamente disso, e eu digo que também sou livre graças a esses 32 portugueses que morreram aqui na minha terra, no Tarrafal, e que morreram por mim. Porque eram antifascistas, eram pelos direitos humanos. No meio disso foi crescendo uma mentalidade política, da autonomia. O Amílcar Cabral estudou em Lisboa, conviveu com muitos desses indivíduos, e houve muita troca entre os resistentes portugueses e os resistentes cabo-verdianos e das outras antigas colónias. Não é só um processo de oposição, é um processo de desgarra. Ao mesmo tempo que se vai consolidando a identidade de um lado e se confronta o outro lado, vai-se criando um processo de independência afectiva e cultural. O que quero ressalvar é que, na verdade, dentro deste processo não houve uma dicotomia entre portugueses e cabo-verdianos. Essa diferença, para as pessoas atentas e numa análise séria, foi entre regimes. Tenho falado muito disso para não se pôr os povos ou as pessoas em conflito por causa das suas naturalidades ou nacionalidades. Os chamados Descobrimentos foram uma epopeia e uma empreitada de um regime, a monarquia. A ditadura foi uma empreitada de outro regime, assim como a democracia foi uma empreitada de outro regime. São os regimes que fazem estas coisas e os povos, muitas vezes, são mobilizados para essa tarefa do regime. E só se dá o inverso quando o povo resiste, e aí o povo gera líderes para a criação de um novo regime.
Sei que era novo, mas que memórias é que tem da altura da independência e do pós-revolução do 25 de Abril?
Lembro-me perfeitamente, fui uma criança precoce e perguntava muito. Toda a maneira que tenho hoje de ver as coisas tem muito a ver com esse relacionamento que eu tive com essas duas etapas. Vivi a época colonial, onde não percebia a lógica mas era visível: via os militares nas ruas, as pessoas tinham medo e via-se as diferenças sociais, uma elite no centro da cidade e todo o povo relegado à miséria. E a falta de liberdade e expressão. Por qualquer reclamação, o indivíduo era preso. Nós vivíamos isso e, enquanto criança, eu achava que era assim que devia ser.
Porque era o normal.
Sim. E lembro-me do dia em que fizeram uma exposição de fotografia… Foi a primeira vez que vimos negros nas fotografias. Quando digo “negros”, falo de nós próprios. Não tínhamos fotografias de nós nos lugares públicos. Isso foi motivo de muita risada, mas percebemos que alguma coisa estava a acontecer. Como é que aquelas fotografias foram ali parar? Significava que já havia liberdade, que havia uma mudança. E havia música por todos os lados — e músicas diferentes, com sonoridades diferentes, em línguas que nós não conhecíamos. Parecia que uma porta do mundo se tinha aberto, havia um outro mundo que estava escondido atrás dessa porta, é a imagem que tenho. E quando entrámos não fomos estranhados.
E a ligação à música vem mesmo desde criança?
Sim, eu era muito apegado ao mundo abstracto, da parte criativa e não só. O meu mundo era mais nas nuvens. Tinha a percepção da estética da natureza, e daí dizerem que eu era uma criança diferente e vaticinaram a minha morte várias vezes porque ninguém sabia lidar com isso. Uma criança não podia saber tanto nem ter essas percepções. E quase que escreviam a história da minha vida: “tu vais ser isto”, “vais ser sargento”, “vais ser político”, “isto se não morreres depois de amanhã”… Foi tendo essa conotação. E tudo o que era música chamava a minha atenção. Acordeões, a gaita, o funaná… Eu ia para a rua e ficava a ouvir aquilo. Ia para as sessões de batuku à noite, para poder ver as batukadeiras. Havia uma grande curiosidade. E depois eu tocava em cima da mala da minha avó, o que era curioso, porque eu não tocava percussão, mas teclados. Quer dizer, nem sei de onde é que isto veio, mas fingia que tocava um piano em cima da mala da minha avó. Eu nunca tinha visto um piano, mas talvez estivesse a inverter a posição do acordeão e não sabia. E cantava e tocava durante o dia todo. Até que fiz um primeiro grupo musical, com os meus irmãos, todos maiores. Eu era o guitarrista e cantor, havia um que era baterista, outro irmão tocava o violão… Que era feito com pedaços de madeira e de nylon de pescar. Mas havia esse chamamento. O grande momento da minha vida foi quando reuni um grupo de crianças e um rapaz que também se chamava Mário tinha construído um tambor. Fomos tocar para a rua e eu cantava e recitava poemas. Foi ali que realmente viram que eu tinha um dom, e coincidiu com a época da transição. Então participei muito, ia aos lugares cantar para explicar às pessoas o que viria a ser a independência. Eu tinha 10 anos e ainda há muita coisa gravada em mim daquele tempo. E logo que pude fazer um grupo musical mais a sério, fi-lo. Depois nunca mais deixei a música, mesmo quando fui estudar no liceu. Depois também fui estudar para Cuba, tive outro grupo musical, regressei como advogado e simultaneamente fiz música com o grupo Simentera durante 13 anos. Depois deixei a advocacia e os Simenteira e enveredei por uma carreira a solo, pois precisava de consolidar a minha base e também fazer mais seguro o caminho.
Tendo em conta tudo o que já fez, e este álbum que está agora concretizado, o que é que sente que lhe falta fazer?
Falta-me consolidar a minha paz interior, basicamente. É a única coisa que me falta. Aprender a envelhecer… Já comecei há alguns anos, como sempre fui precoce. Pelo menos há 25 anos que medito diariamente, e uma das coisas é a aceitação, perceber que o envelhecimento é um caminho bom porque não há volta atrás. Então aprendemos a envelhecer com felicidade, com gratidão e também a fazer desse campo um acumular de sabedorias. Para que possamos ser felizes e tranquilos, para podermos guardar aquilo que já conquistámos — não em termos materiais, mas em termos espirituais — e guardar para quê? Para que, até ao último dia, possamos ser uma referência para as novas gerações. Para que, quando escutem uma música ou vejam uma rua com o nosso nome, os mortos não têm vaidade portanto isso só servirá se as crianças virem naquilo um exemplo a seguir. O resto é circunstancial. Sai um livro, sai um disco, mas isso são actividades que fazem parte desses processos.
E hoje, 50 anos depois da independência, como já disse é um processo contínuo e lato, mas como é que olha hoje para Cabo Verde? É um país e uma sociedade que o deixam feliz e realizado? Ou sente que ainda há muita coisa para fazer?
Felizmente, deixa-me realizado. Diria até totalmente. Porque o total é também ter a capacidade crítica de ver algumas direcções com que nós não concordamos. E que achamos que até podem pôr em causa a arte das conquistas que tivemos. A independência de Cabo Verde valeu — e isso honra os mortos — porque houve muito progresso humano. Cabo Verde tinha 75% de população analfabeta, hoje tem acima de 90% de população alfabetizada. Cabo Verde não tinha nenhuma universidade nem escola superior, hoje tem 11 universidades. O PIB per capita era de 250 dólares, hoje está em 4 mil e tal dólares. Mesmo em termos de saúde, de educação… Basta olhar para a qualidade da nossa democracia, porque ela é o reflexo da gestão da independência. E se vejo no nosso continente, em África, essas ditaduras arrasadoras que surgem, tem a ver com uma má gestão da independência. E isso significa ter a noção de que as conquistas são para melhoria da qualidade de vida das pessoas, para que elas sejam livres e felizes. Enquanto não soubermos — e ninguém sabe — qual é o sentido da vida, pelo menos sabemos que a vida serve para essas duas coisas: ser livre e feliz. E não é justo que venham os ditadores e os militares proibir e impor regras que vão contra os direitos humanos básicos… Eu diria que Cabo Verde até é um exemplo. Todos os dias faço uma contemplação sobre isso. Os serviços públicos funcionam, com as suas dificuldades, mas dão resposta. É um país com muitas dificuldades económicas, em termos de recursos, mas a independência permitiu — vendo as coisas de uma forma mais holística — que no quadro das nações entrasse mais uma para enaltecer o feito de ser nação. Cabo Verde é um país com várias autarquias. A gestão descentralizada não era muito boa, hoje em dia com as autarquias é um exemplo. As autarquias são cidades e ser cidade significa ter um conjunto de serviços públicos de qualidade a funcionar. Agora, o mundo tem guinadas. Acho que o próprio ser humano está numa etapa de involução. Estamos com o nosso pior lado, não sei se isso se despoletou durante a pandemia, mas é cíclico. E Cabo Verde não foge. Os seres humanos também estão piores e são eles que vão para a política, uns salvam-se e outros não, e o país tem tendência a por vezes ganhar, por vezes perder. Cabo Verde felizmente tem ganho mais do que tem perdido, mas as perdas acumulam-se e temos de ter muito cuidado para que os cabos da balança não se invertam.
O que é que pode dizer para antecipar o concerto de apresentação do novo álbum em Lisboa? Imagino que seja uma celebração com a diáspora cabo-verdiana presente em Portugal e os portugueses com uma ligação cultural forte a Cabo Verde.
Tal como aconteceu em Paris, vão ver-me como nunca viram. Eu achei muito engraçado, em Paris, quando as pessoas entraram na sala e não havia uma única cadeira, estavam todos em pé, e quando começámos a tocar estava toda a gente feliz a pular — e também a admirar. Porque normalmente têm-me como um músico mais prosador, mais poético, mais da balada e de repente aparece um músico do soukous, dos bailes, a tocar guitarra congolesa e a divertir-se muito. E vai ser assim, vai ser um concerto para dançar, para passar energia e também convidar as pessoas a ouvirem como é que era a nossa música há 50 anos — são essas músicas, com essa sonoridade, que eu vou tocar. Por isso vai ser um concerto muito bonito e proveitoso, para sacudir a poeira, beber um copo, abraçar os amigos e, ao mesmo tempo, ouvir uma nova fase da música de Cabo Verde.