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Fotografia: Miguel Moreno
Publicado a: 17/03/2025

Alertar para os perigos do fascismo através da celebração.

Mão Morta no Teatro Municipal da Covilhã: viva a Liberdade!

Fotografia: Miguel Moreno
Publicado a: 17/03/2025

Em tempos, após tomar o pulso de uma sala como o Rock Rendez Vous, Adolfo Luxúria Canibal achou boa ideia puxar de uma navalha e mostrar o sangue quente que lhe corria nas veias, forma eficaz de controlar a turba e obrigá-la a concentrar-se na performance, na intensidade de um colectivo que, nessa altura, se entregava às canções com crença plena de que aquilo que fazia era urgente, importante e necessário. Nada mudou nestes quase 40 anos de Mão Morta, tirando a faca a rasgar a pele da perna: esta banda, mesmo com diferenças na formação significativas, continua a exigir atenção plena à performance e continua a entregar-se à sua arte com a convicção absoluta de que o que faz continua a ser urgente, importante e necessário.

A digressão em torno de Viva La Muerte! chegou no passado sábado, 15 de Março, ao Teatro Municipal da Covilhã (TMC) depois da estreia no Theatro Circo, Braga, em Janeiro último, e de passagens posteriores por Faro (Teatro das Figuras), Ourém (Teatro Municipal), Lisboa (Culturgest), Guimarães (Centro Cultural Vila For) e Aveiro (Teatro Aveirense). Presenciámos, portanto, um espectáculo já relativamente bem rodado que se apresentou sem mácula, sem falhas ou quaisquer adornos supérfluos. E numa sala renovada em anos recentes que oferece excelentes condições para este tipo de espectáculo.

O lado visual, em primeiro lugar: diz-nos a preciosa folha de sala disponibilizada pelo TMC (hábito em vias de extinção, facto que naturalmente se lamenta, sobretudo em espectáculos desta natureza) que o grupo se apresentou com figurinos desenhados por Helena Guerreiro, costurados por Hari Machibari, e com projecção de material vídeo com assinatura de Joana Domingues e produção a cargo do Canal 180. O cuidado desenho de luz é da responsabilidade de Fred Rompante, que também operou na ocasião. Ora, importa sublinhar que tudo isto — os figurinos, a luz, o vídeo e, já agora, a disposição dos músicos em palco — não são meros pormenores que desmereçam atenção. São, ao invés, contributos decisivos para a elevada qualidade do espectáculo apresentado que se percebe ter sido cuidadosamente pensado.

A roupa, em segundo lugar: a banda e o coro apresentaram-se com uma espécie de uniformes em neutro cinza, algures entre a colecção primavera-verão 1975 da Coreia da Norte e algo que pudesse ser desenhado por um qualquer jovem criador japonês ao serviço de uma das casas de alta-costura parisiense para a próxima temporada. Há ironia na escolha de vestimentas, claro, mas também uma nada velada e certeiramente mordaz crítica à uniformização de pensamentos de que a indústria da moda é também veículo, por muito que a ilusão capitalista nos faça pensar que somos diferentes quando optamos por uma marca em detrimento de outra (não serão todas o mesmo?). A liberdade individual, parecem dizer-nos os Mão Morta, é uma ilusão, um truque bem montando. De resto, a luz e a mise-en-scène concorrem para a ideia de um comício disfarçado de concerto (ou vice-versa), com eficácia absoluta.

O som, logo depois: seis vozes — a de Adolfo e as do coro formado por Fernando Pinheiro (que o dirigiu), Jorge Barata, Lucas Lopes, Paulo Santos Silva e Tiago Regueiras (a que se juntam ainda, nalguns momentos, a dos músicos) —, mais bateria, baixo (eléctrico e acústico), duas guitarras e teclados são suficientes para criar um som cheio, pleno de nuances harmónicas a que o desenho de som de frente de Nuno Couto fez plena justiça (e, já agora, pelo conforto em palco percebeu-se que o entrosamento também muito deverá ao som que a banda aí escuta, da responsabilidade de Mário Seco). E isso é importante: quem se instalou na plateia (ou no balcão) conhecendo bem o álbum Viva La Muerte! (e pelo menos um fã mais, digamos, sonoro, fez questão de mostrar a toda a gente que conhecia de cor as letras) precisava de um som límpido para ter uma experiência plena. Os textos são importantes, a participação do coro é importante, mas a base musical — que parece existir num triângulo estético em que os vértices poderiam ser o art-rock dos Swans ou Robert Wyatt (ou ambos…), o cantautorismo escola José Mário Branco (óbvio…) e algum jazz (não tão óbvio…) — é igualmente crucial para o espectáculo e essa foi debitada por um colectivo mais do que entrosado, que conseguiu, sem alguma vez ser expansivo ou maximal, não tocar uma nota fora do sítio e servir sempre as canções. Destaque para o trabalho de bateria de Miguel Pedro e para os arremedos pianísticos de António Rafael, que brilharam de forma discreta. Vasco Vaz (guitarra), Ruca Lacerda (sobretudo guitarra, mas também bateria quando Pedro abandonou o kit e foi para as electrónicas) e Rui Leal (no baixo eléctrico e contrabaixo que tocou com arco criando um drone acústico de imersiva beleza) são as outras peças decisivas.

Adolfo, que não se feriu mas não deixou de mostrar que o sangue lhe corre nas veias e continua a irrigar-lhe as goelas, é um performer dotado que, mais uma vez, encarou aquela espécie de púlpito ou palanque em que se posicionou como o seu palco privado: dançou, gesticulou, comandou — qual maestro — o coro, como um líder que dirige as suas hostes, tal como ironizado nas canções. E o coro, umas vezes grego, outras alentejano, lá transportou a música para outra dimensão, acentuando o tom solene de todo o espectáculo.

E importa dizer que este Viva La Muerte! de palco é tanto música como teatro: não há apartes, não há “boas noites, Covilhã”, e tirando um irónico “bem-vindos ao espectro do fascismo”, nada mais é dito que não sejam palavras das canções ou discursos pré-gravados de múltiplas fontes, uma espécie de “locução de continuidade”, em português, inglês, francês e castelhano, que vai oferecendo pistas para a reflexão sobre os totalitarismos que sustenta esta obra.

Meio século (mais uns meses) volvido sobre o 25 de Abril, os Mão Morta voltam a farejar o cão que deseja a morte da liberdade e da democracia e voltam a puxar pela veia política sacrificando, talvez, alguma densidade gótico-poética que sempre os distinguiu, porque esse sacrifício encaixa no conceito que idealizaram para este Viva La Muerte!. O concerto cingiu-se ao alinhamento do álbum e a banda, ao recusar o que seria uma natural e até expectável “volta de honra” pelos seus hits (salvo seja), recusa também o confinamento a um passado que, julgando pelo perfil etário do público presente, foi também o tempo daqueles fãs. Mas também havia crianças entre o público, uma espécie de sinal de esperança para o futuro, já que será delas o tempo vindouro. Os Mão Morta, pelo seu lado, estão a fazer o que lhes compete: a alertar para os perigos do fascismo enquanto celebram, à sua maneira, estes preciosos 50 anos de liberdade. Haja quem.


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