pub

Fotografia: João Morais Inácio
Publicado a: 21/03/2025

Um momento de maravilhamento profundo.

Mano a Mano no Teatro Municipal da Covilhã: a magia das sombras

Fotografia: João Morais Inácio
Publicado a: 21/03/2025

Ontem à noite, 20 de Março, no Teatro Municipal da Covilhã, houve magia. Não daquela que mete coelhos e cartolas, gente serrada ao meio e truques com cartas, mas ainda assim magia encantatória e bem real. Em palco havia três corpos e quatro espíritos: os corpos e espíritos dos músicos Bruno e André Santos — a madeirense dupla de guitarristas que em conjunto assina Mano a Mano — e ainda do bailarino Tiago Martins, e o espírito sem corpo presente de Lourdes Castro, fascinante artista plástica cuja maravilhosa obra inspirou o disco e espectáculo Trilogia das Sombras.

É apropriado falar em espíritos neste caso, porque há por ali, na tal magia que se desprende das mãos dos irmãos guitarristas e da silhueta de Tiago Martins, corpo que se move, dança e contorce, que nasce e renasce, cresce e desaparece, sempre atrás de uma grande tela, algo de intangível, que nos agarra e comove, que nos arrebata de uma forma tranquila, que nos fascina e encandeia, sem que nenhum gesto grandioso, musical ou performativo, seja executado. Como se de repente as pessoas corajosas que enfrentaram a tempestade ali na encosta da mais alta das nossas serras se unissem todas numa outra dimensão, num outro lugar, onde crescem folhas e o mar se agiganta, onde o granito cede lugar ao basalto, e onde os mistérios nos iluminam.

André e Bruno tocam como só irmãos que partilham uma mesma raiz podem tocar, adivinhando-se um ao outro, complementando-se, sombreando-se à vez enquanto o outro brilha. André é, talvez, um pouco mais directo no seu discurso guitarrístico, pleno de fluência melódica, e Bruno mais contido, plenamente consciente de que a subtileza é igualmente válida. O discurso que ambos tecem, umas vezes mais uníssono, outras mais contrapontístico, parece por vezes simples, mas é imbuído de grande profundidade harmónica. E pelos dedos soltam-se, tão leves como folhas levadas pelo vento, ecos mais ou menos ténues de músicas do Brasil, dos grandes ecrãs de cinema, de modos populares variados. Para este concerto, André e Bruno deixaram em casa os cordofones típicos da Madeira que também se escutam no disco, e trouxeram apenas duas guitarras eléctricas hollow body, com o som entregue à sala a ser resultado do compromisso estabelecido entre dois microfones — o que captava o que era debitado pelos respectivos amplificadores, de tamanho bastante modesto, refira-se, e o outro que, colocado perto das cordas, também deixava perceber o lado físico da sua técnica, mostrando como dedos e unhas interagem com as cordas. Os pedais, usados com parcimónia, serviram para fornecer cor harmónica adicional, para que cada um esculpisse notas de uma leveza etérea.

E atrás da grande tela, com uma lâmpada suspensa e quase sem adereços — bastou uma mesa, uma cadeira, uma pequena mala cheia de aviões de papel, um vaso com flores… —, Tiago contou histórias da vida natural, de paixões e tremores, de nascimentos a partir da terra, de vontade de voar. A sua expressividade é simplesmente arrebatadora. Ou mágica, lá está, pelo tanto que nos contou com quase nada. As vozes, já escutadas no disco, do teólogo, poeta e cardeal José Tolentino de Mendonça e da própria Lourdes de Castro, acentuaram essa dimensão mágica e espectral de que se fez o espectáculo. Um momento de maravilhamento profundo, numa serra que não é ilha, mas bem podia ser.


pub

Últimos da categoria: Reportagem

RBTV

Últimos artigos