Os Humanization 4tet são Luís Lopes (guitarra), Rodrigo Amado (saxofone), Aaron González (contrabaixo) e Stefan González (percussão). Quarteto irreverente tanto na vida como na música, faz da estrada o catalisador para as gravações de estúdio, as quais, com o avançar da discografia, se têm tornado uma imagem especular daquilo que verdadeiramente os move e totaliza enquanto formação: os concertos ao vivo.
Numa entrevista realizada a 28 de Setembro, um dia antes do início da tour europeia do grupo, falámos com Luís Lopes sobre as expectativas do quarteto para esta digressão. Palavra puxa palavra, e inevitavelmente a conversa rumou em direcção às aventuras ocorridas durante as digressões pelos Estados Unidos da América, repletas de histórias que tanto têm de fascinante como de perturbante. As tensões do grupo, os processos de composição, a dinâmica em palco, e os laços entre mundividência e criatividade foram igualmente abordados nesta conversa que mergulha em águas profundas acerca da identidade do grupo.
Os Humanization 4tet são espíritos livres, e livre é a sua música. Num mundo epidérmico e anti-metafísico, eis um quarteto em permanente processo de desumanização.
A tour europeia dos Humanization 4tet começará amanhã, em Berlim, e passará por vários países europeus, como a Suíça, Holanda, Bélgica, Suécia e Polónia e, claro, terminará em Portugal, onde têm agendados cinco concertos em diferentes cidades. Quais são as vossas expectativas para esta série de concertos? Estão entusiasmados por estar de volta ao palco?
Nós temos estado aqui a ensaiar [aponta para a sala com instrumentos]. Estivemos a ensaiar nos últimos dois dias e hoje é o terceiro dia de ensaios. Vamos embora amanhã logo de manhã para Berlim e vamos começar amanhã a dar a volta toda. Bem, isto há sempre aqui uma tensão, como deves imaginar, mas as coisas estão com uma boa perspectiva, estão a correr bem. Agora estamos numa fase, por causa da situação do COVID, que torna isto sempre numa tensão. Esta tour é já uma terceira remarcação. Nós éramos para ter feito isto em Março/Abril de 2020, que foi exactamente quando começou o COVID. Foi morrer na praia. Tínhamos a tour montada e depois chegamos a Março e caiu isto do nada [a pandemia]. Perdemos a Rússia, porque a Rússia não consegue emitir vistos para os norte-americanos e, por exemplo, a Noruega ainda está difícil porque é fora da Europa e é muito rígida com as regras. Portanto, neste momento, nós não podemos ir à Noruega, temos dois concertos marcados lá. Portanto, apesar de sabermos que isto está sempre nesta tensão, está a correr bem e nós até nos esquecemos um pouco disso. Estamos com alta energia para ir. Temos estado a falar com pessoal da Europa, e há muita gente que nos conhece por causa dos discos e que manda bocas e tal. Acho que está aqui uma boa energia.
A vossa música é muito baseada em improvisação, mas este lado improvacional está incorporado numa estrutura em que as composições também têm uma grande importância. Têm preparado material específico para esta tour? É este baseado maioritariamente nalgum dos vossos álbuns?
Nós temos mais ou menos uma fórmula, uma base. Funcionamos sempre da mesma maneira. Temos umas composições que quando o grupo começou, no primeiro disco, eram só da minha autoria. Depois, a partir do segundo disco, toda a gente começou a contribuir com composições. Temos composições que são a base da coisa, depois partirmos para a improvisação. Foi sempre essa a fórmula. As improvisações também têm um bocado a ver com os motivos dos temas: é uma improvisação no real sentido da palavra, livre, mas tem umas barreiras, umas baias, digamos assim. Por exemplo, a minha guitarra tem muitas possibilidades porque tenho pedais, etc. Então, para cada concerto, eu escolho sempre sons específicos, para que sejam variados, mas que ao mesmo tempo estejam de acordo com o sítio onde tocamos. Nós temos songs de 6, 10 minutos, depois improvisamos à volta daquilo e depois vem outra song. Mas, por vezes, e agora estamos mais virados para esse lado, nós estamos numa song, e depois, por exemplo, o Rodrigo Amado parte para a improvisação e faz uma intervenção em trio com eles [Aaron González e Stefan González] que eu também posso ou não acompanhar. Depois, de repente, no meio da música, começamos a descair e alguém traz outro tema. Isso faz com que consigamos juntar vários temas. Desta vez, estamos a aproveitar essa onda, que já tínhamos começa no último disco, de os temas começarem a aparecer em vez de serem tocados sequencialmente e com paragens no meio.
No fundo, isso permite que o concerto se torne um continuum…
É isso. É nesse sentido. Por exemplo, o primeiro e o segundo disco são trabalhos de estúdio. E nós mesmo em estúdio gravamos sempre como se fosse ao vivo: gravamos todos juntos a tocar no mesmo sítio, na mesma sala, sem separação de instrumentos. É assim que a gente gosta de gravar. De qualquer maneira, a partir do terceiro disco descobrimos que, de facto, isto funciona é ao vivo. Fazemos concertos, fazemos as tours e, no penúltimo ou último dia, gravamos ao vivo. Até já chegámos a ter um concerto ao vivo e depois ir para estúdio. Mas deixámos a cena de gravação de estúdio de parte. Esta banda vive muito da energia ao vivo e da adrenalina.
E o Live in Madison (2013, Ayler Records) e o Believe, Believe (2020, Clean Feed Records) foram ambos gravados ao vivo em estúdio durante tours nos Estados Unidos da América (EUA).
Deixa-me só contrapor aqui uma coisa. O Live in Madison foi gravado ao vivo, mas é uma coisa muito interessante que os americanos têm. Eles têm estúdios de concertos ao vivo. As bandas vão para o estúdio, e eles têm uma plateia, um bar e um palco. Ou seja, nós tocamos ao vivo dentro do estúdio, o que é uma coisa muito fixe! Depois eles têm um sistema de estúdio profissional para gravar. É uma modalidade muito fixe. O Live in Madison foi gravado assim, num estúdio, e o Believe, Believe também foi gravado do mesmo modo em Nova Orleães.
Quantos espectadores costumam ter essas gravações?
Umas dezenas. Duas dezenas.
Já dá para criar algum ambiente.
É só parar criar aquela coisa de concerto ao vivo, aquela dinâmica. Num concerto ao vivo óbvio que temos ali o público, então temos essa pressão de as pessoas estarem à nossa frente e, pronto, é uma adrenalina de concerto. Portanto, nós estamos realmente num show. Não repetimos músicas. Tocamos como se fosse um show. Não há espaço para dizer: “Ai! Enganei-me. Vamos começar outra vez”. Não! Toca-se os temas e acabou-se. Está, está, se não estiver, azar! [risos]
Assim acabam por também abraçar o erro.
Sim! E a questão é que a gravação é sempre no último concerto, quando já tens uma “estaleca” e estás farto de tocar as músicas. Por exemplo, o Live in Madison e o Believe, Believe foram gravados em tours nos EUA. E a questão é que na estrada íamos numa carrinha, on the road, à antiga, como os rockeiros fazem, porque o pessoal do jazz não faz isso. Os EUA prestam-se a isso porque têm aquelas estradas enormes, não pagas nada nas auto-estradas, e o gasóleo é muito barato. Aquilo é sempre on the road. Na Europa não dá para fazer isso porque fica uma fortuna. E nós na estrada temos muitas vivências. Estamos a falar de pessoal muito maluco, não é? Pessoal muito alucinado. E então nas estradas, como deves imaginar, na América profunda aquilo é só aventura. É um processo um bocado mundano também: andamos na estrada, a ter vivências, a ir de cidade em cidade, e tudo isso vai alimentado a música. Nós somos todos muito sensíveis, e estas coisas vão sempre alimentado a música. Todos nós tocamos um bocado como somos e como estamos a viver. Por isso é que passámos a gravar discos ao vivo. Aí é que vêm as histórias, as aventuras, as tensões entre nós…
Já que falaste das tours, quais são para ti as principais diferenças entre tocar na Europa e nos EUA? E não falo só dos espectadores, mas também de todo o envolvimento em termos de planeamento, organização, etc.
É muito diferente. Nós já fizemos três tours nos EUA e depois tivemos muitos concertos aqui em Portugal, onde tocámos em vários festivais e fizemos umas pequenas tours de cinco ou seis concertos. E, portanto, esta será a primeira tour que os Humanization farão na Europa. E, de facto, é muito diferente. Há muitas diferenças, e estas são drásticas, nomeadamente, por exemplo, na questão das condições financeiras. Aqui na Europa há festivais, venues, casas de artes e, por isso, temos mais possibilidades de ganhar dinheiro. Aqui ganhamos algum dinheiro. Por isso é que os americanos se não vêm para a Europa estão lixados porque eles não ganham dinheiro nos concertos. Nós nas três tours que fizemos nos EUA foi sempre a cair. Financeiramente é uma desgraça brutal. É um investimento nosso. Ganhamos uns trocos nos clubes e assim, mas não há a estrutura que há na Europa. Nesta tour na Europa vamos apanhar uns três ou quatro festivais, a data de Lisboa permite logo comprar viagens, e ainda tivemos apoio da DGA para as viagens dentro da Europa. Ou seja, aqui há realmente uma estrutura. Nos EUA não. Se vais para lá, tens de comprar o teu bilhete. Eu e o Rodrigo Amado compramos sempre o bilhete do nosso bolso, assim como o fotógrafo António Júlio Duarte, que foi sempre connosco. Ele conduz a carrinha, não bebe, não se droga, o que é sempre uma coisa boa para nós, porque assim estamos mais livres. Depois ganhamos alguns trocos para cobrir despesas, porque lá não ganhamos dinheiro nenhum. Isso é uma das diferenças. Depois, como tu sabes, os EUA são muito diferentes da Europa. É uma aventura que pode ser drástica porque têm muitas armas e muitos malucos. Tudo pode acontecer. Pode estar tudo bem, está toda a gente a divertir-se, estamos a falar, mas de repente há uma coisa qualquer que dá a volta à situação e tudo muda em fragmentos de segundo para uma coisa que ninguém está à espera. Os americanos são um bocado assim. Ou seja, tudo se torna muito mais perigoso.
Queres contar-nos algumas das aventuras pelas quais passaste nos EUA?
Dentro das aventuras perigosas e com armas, tivemos situações muito difíceis, muito difíceis mesmo. Uma vez fomos atacados por um gangue cheio de armas em Detroit. Eu levei uma pancada no ouvido e andava a perder os sentidos. Eu nem sabia o que tinha acontecido, fiquei um bocado abananado, caí para o chão, mas depois lá me levantei. Pensei logo que tinha sido agredido porque não me tinha caído nada em cima, tinha sido atacado de lado. Depois vem logo aquele instinto de salvação e olhei para trás e vi gajos sem camisolas e cheio de armas. Ele bateu-me de lado, mas não se aproximou logo, foi apenas para “picar”. Houve ali uns encontrões e assim, mas começámos a fugir. Nós éramos quase 15 pessoas e havia lá no meio uns americanos amigos dos González, uns armários, metaleiros, cheios de tatuagens, piercings e cabelo comprido, que eu nunca me meteria com eles. Mas aqueles gajos não tiveram medo nenhum, aquilo é mesmo perigoso. Até Madison andei sempre a perder os sentidos e pensei: “Bem, tenho aqui uma lesão qualquer.” Quando vim para Portugal fui logo às urgências, e a médica disse que eu tinha um tímpano rasgado. Estive em tratamento dois meses, mas depois fiquei fixe.
Mas qual foi o motivo da confusão?
Ao início ninguém sabia, mas depois percebemos o que tinha sido. Nós nesse dia íamos ver um festival de punk hardcore, mas acabámos por não ficar lá e fomos para casa. E alguma da malta que estava connosco nem chegou a ir ao festival porque ficaram perturbados e foram logo para casa. Então, quando chegámos a casa, eles disseram-nos que tinham ouvido os gajos que nos atacaram a dizer: “This Texas guys!”. Por causa disso, pensaram que eles tinham a nossa matrícula, que sabiam onde estávamos e que poderiam voltar a atacar-nos. Então, quando chegámos a casa, já estavam os amigos dos González cheios de armas de fogo à espera que os outros atacassem. E nós a dormir na sala com a vidraça virada para a rua [risos].
Noutra situação, estávamos em casa de um promotor de jazz, um tipo com 60 e tal anos. Ele tinha uma certa pinta, uma boa casa e tal. Deixou-nos no hall de entrada e disse: “Fiquem aqui que eu vou dormir a casa da minha namorada. A casa é vossa, fiquem à vontade”. Era uma casa muito bonita, cheia de fotografias de Miles Davis e de John Coltrane. De repente, tocam à campainha, e eu vou ver quem é. Vejo um homem grandalhão, a olhar. Eu abri a porta, e o gajo mete-me uma caçadeira de canos serrados encostada à barriga. Imagina o que é estares num sítio como o Texas, onde se estás dentro de casa de alguém podes ser morto. Estás em terreno que não é teu, levas logo um balázio! Enquanto ele esteve com a caçadeira encostada a mim, eu nem sei o que é senti. Pensei: “Pronto. Já fui!”. Gelou tudo, ninguém dizia nada. Às tantas, passa-te a vida toda pela cabeça. Entretanto, ele não disparou, e eu voltei a mim e decidi falar. Disse-lhe: “What’s up, man!?”. Ele vira-se e responde: “WHO ARE YOU GUYS!?” [risos]. Sempre com a caçadeira encostada à barriga, eu disse-lhe que éramos músicos de jazz, que estávamos ali para tocar. Entretanto o Rodrigo Amado e os González começaram a aparecer e dizem-lhe que somos amigos do Hall – que era o dono da casa –, e que ele nos tinha deixado dormir ali porque era o promotor. O senhor da caçadeira era enorme, um autêntico armário, negraço e responde-nos: “I SAW SOME WHITE GUYS AROUND THE HOUSE!”
A questão racial sempre presente…
Os EUA são isto, estás a perceber? A questão racial existe mesmo e gera situações drásticas. Imagina alguém encostar-te uma caçadeira de canos serrados em Portugal. Para já, ninguém pode ter armas porque é proibido, vais preso. Nos EUA não. É muita loucura! Tivemos carregadas de situações maradas. Estas foram drásticas, mas do normal até ao drástico há uma escala de cinzentos gigantesca. Claro que isto alimenta a música, a criatividade de cada um e traz um bocadinho de loucura à nossa cabeça. A música é como uma salvação para estas incongruências do mundo. Por exemplo, temos estado aqui a ensaiar e já estamos a sentir adrenalina. Tudo isto alimenta a música. Nós estamos nesta circunstância de aperto partilhado porque toda a gente vem de uma cena de dois anos um bocado pesada. Isto foi um longo Inverno. E claro que isto também fabrica as nossas cabeças. Por isso, cada um de nós já está a encarar isto como uma coisa de salvação porque estamos a voltar a tocar. Então isto é para se levar ao máximo dos máximos porque é a grande salvação. Já estamos a sentir isso, o que é muito importante.
Na minha opinião, o free jazz deixou de ser verdadeiramente livre a partir do momento em que começou a ser catalogado como tal, o que automaticamente implica a existência de um conjunto de estruturas reconhecíveis. No entanto, as influências que confluem na vossa música tornam-na realmente desafiador de uma categorização concreta – é genre-defying. Acredito que esta abordagem de fusão de géneros implique mentes criadoras bastante inquietas. Já me disseste que há uma certa atitude rebelde, punk até, que está presente no dia a dia das vossas tours. Também transportam essa atitude para fora das tours? Até que ponto é que a música é o vosso momento de alienação, liberdade e catarse?
Vou tentar ser sintético, mas vou, no entanto, ter de picar aí na questão do free jazz. Nós também precisamos de catalogar para depois conseguirmos fazer chegar as coisas às pessoas mais rapidamente. Precisamos de catalogar para nos orientarmos. O free jazz é óbvio que é um estilo que vem da libertação daquela hiper imposição de acordes. Quem estuda música sabe que há acordes, e que os solistas improvisam, mas dentro dos parâmetros dos acordes. Isto foi levado ao extremo através da evolução, intensificação e complexificação da harmonia ligada ao jazz, que foi uma inovação do século XX. Com a soma de estruturas que vêm da Europa, da música clássica, dos eruditos, etc., a coisa de facto ficou muito complexa em termos harmónicos. Claro que nós nos fartamos sempre de tudo e há necessidade de fazer coisas novas. O Ornette Coleman e outros apareceram a tocar sem acordes, ou seja, o improvisador tem liberdade total para viajar por onde ele quiser. Se quiser estar próximo do tema, está próximo do tema. Se quiser fugir do tema, foge. Portanto, isto trouxe uma certa liberdade, daí o free. Mas é obvio que, independentemente do sítio para onde viajes, estás sempre dentro do espectro do jazz, da história e da coluna do jazz. Isto foi nos anos 60. Entretanto a coisa já evoluiu. Hoje em dia, cada vez mais, mistura-se muita coisa por causa da Internet e das possibilidades que isso trouxe. Eu tenho milhares de discos, o Rodrigo Amado tem milhares de discos, e os González também têm milhares de discos. Tu não estás bem a ver, mas eles estão sempre a ouvir música e, por isso, têm um património musical na cabeça que é uma coisa assombrosa. Todos nós viemos de escolas musicais diferentes. Os González têm bandas de punk hardcore, grindcore, metal, doom. Por exemplo, quando vamos na carrinha nos EUA, temos sempre sacos de discos de tudo: funk, metal, todo o tipo de jazz, música improvisada, hip hop, coisas mais pop. Aquilo é sempre a circular discos. Ainda ontem estivemos a ouvir música, com uma coluna ali fora no quintal, e era só brutalidades. Eu e o Rodrigo estávamos sempre à procura e a tirar fotografias dos discos que eles estavam a tocar. Aquilo era com cada coisa! Uma loucura! Isto depois mistura-se tudo. Nós não nos preocupámos em tocar uma coisa mais jazz. Não nos preocupamos com isso. Tocamos aquilo que tiver de ser. Os González são filhos do Dennis González, um trompetista célebre de Dallas que tocou com o Charles Brackeen. Eles cresceram com estes artistas todos de jazz a passar por casa deles. Mas, na verdade, eles também circulam no mundo do metal, do punk hardcore, etc. Nós viajamos por onde tivermos de viajar. Nós vamos na coluna, na ramificação do jazz, mas depois misturamos tudo. Este grupo tem certas características que são para manter, apesar de todos nós podermos viajar para vários sítios. Até mais eu e os González, porque o Rodrigo está mais dentro da cena do jazz, apesar de às vezes também tocar outros estilos como rock e o hip hop. Mas os Humanization têm sempre um pé na ramificação do jazz. Depois misturamos noise, funk, rock, muita coisa. Mas é tudo natural, vem de experimentar muita coisa. Somos espíritos livre, acredita! Por isso é que a banda se tem aguentado muito tempo. Se não fosse assim não dava.
Como ouvinte externo, não posso deixar de sentir que a vossa música se tornou mais pesada ao longo dos anos. No vosso álbum de estreia, Humanization 4tet (2008, Clean Feed Records), já havia uma clara tendência para a free-form music, mas esta tinha uma natureza limpa na forma e no som. O Electricity (2010, Ayler Records), como o nome poderá indiciar, traz alguma distorção à guitarra, e com ela a música torna-se ainda mais livre: o saxofone solta as rédeas, o baixo liberta-se de quaisquer convenções, e a bateria oscila entre estruturas jazz-rock e ritmos completamente abstractos. Também neste disco, o noise e o metal emergem como paisagens que são visitadas com alguma frequência, embora continue a haver espaço para momentos de contemplação e tranquilidade. O Live in Madison (2013, Ayler Records) foi um disco em que revisitaram temas passados. Já o Believe, Believe (2020, Clean Feed Records) mantém a tendência em direcção a sonoridades mais pesadas, e provavelmente até a reforça, sendo uma lição majestosa de como tocar heavy free–form music. Em retrospectiva, o que achas que levou o quarteto a tomar esta direcção e que pistas é que isto nos dá em relação à forma como a vossa música soará no futuro?
Estou totalmente de acordo com o que estás a dizer. É, de facto, como dizes. Nós somos espíritos livres e, portanto, isto tem sempre futuro. Ainda agora em conversa isso veio à baila por causa de uma piada que eu mandei pelo facto de já termos 14 anos e que daqui a um bocado vamos ser chamados os Rolling Stones do jazz [risos]. Desatou tudo a rir! Para haver futuro, tem que haver liberdade, espírito livre e de aventura. Nós queremos mesmo ter esse espírito a circular e ver para onde é que isso nos leva. Por exemplo, o Live in Madison tinha uma espécie de apanhado dos dois discos anteriores, que foram ambos discos de estúdio. O primeiro foi para arrancar, para fazer a banda. Nós não nos conhecíamos bem e, então, foi um bocado naquela onde de “vamos fazer um disco”. Mal nós esperávamos o que vinha daí. Eu e o Rodrigo já tínhamos pensado fazer este grupo, mas estávamos à procura de uma secção rítmica que não fosse muita agarrada ao jazz. E não é nada fácil – tem mesmo que ver com o espírito. Nós já conhecíamos o Dennis, pai dos González. Tínhamos discos dele, éramos fãs. O Rodrigo também já tinha tocado nos EUA com ele. Uma vez os González foram tocar com o pai, e pensei logo que eles eram brutais, que seriam a escolha certa. Eram muito livres e tinham muito power. Para o segundo disco, já houve mais tempo, e cada um trouxe a sua cena. O primeiro disco só tem composições minhas e foi feito para meter a coisa a andar. Eu tinha saído da escola de jazz há pouco tempo, o que influenciou muito. Mas nós sempre quisemos que a banda estivesse ligada ao jazz, que viesse na ramificação do jazz. Tem de haver uma certa definição, e nós quisemos que fosse nesta linha. A partir do momento que esse statement está feito, foi começar a misturar coisas e continuar sempre aberto para que tudo possa acontecer.
E em relação ao futuro? Há possibilidade de a vossa música se tornar menos pesada?
Pode acontecer, sim. Há sempre uma certa tensão no grupo. Para todos os efeitos, a grande característica do jazz é o facto de ser uma música individual. É uma espécie de vitória da ideia individual. Óbvio que quatro pessoas são quatro vértices exactamente com o mesmo peso. Cada um pode puxar a música na sua direcção. Há sempre tensão entre estes quatro pólos. Por exemplo, na tour do Live in Madison tinha começado a usar mais noise do que notas na guitarra, e o Rodrigo veio ter comigo e disse-me: “Lopes, acho que estás a usar demasiado noise. Acho que devíamos voltar um bocado atrás e ir mais para o lado das notas”. Eu fiquei um bocado naquela, porque a ideia da banda é mesmo nós fazermos o que queremos. Mas depois pensei assim: “Ai é? Então agora vou-te morder os calcanhares com as notas”. [risos] E o Live in Madison é um bocado assim: eu e ele sempre a interagirmos, sempre em tensão. O Live in Madison é uma espécie de luta, as notas sempre em tensão, eu e o Rodrigo atrás um do outro. Ou seja, tudo influencia, tudo está em aberto. O jogo é assim mesmo.
Num mundo globalizado onde se assiste cada vez mais ao fenómeno da massificação dos gostos e preferências individuais, parece realmente complicado alcançar uma verdadeira liberdade criativa. Este processo de desconstrução e libertação é natural ou exige um esforço intencional?
Totalmente. Exige um esforço consciente. Todos nós somos personalidades muito fortes e cada um luta pela sua ideia afincadamente, sem vacilar. E esta forma de estar acaba por ser aceite. Tudo o que é feito individualmente no instrumento, está literalmente ligado àquilo que a pessoa é. Está tudo à flor da pele. Com o andar no grupo, fomo-nos conhecendo melhor e agora estamos num patamar de confiança total. Alguém pode-se passar que nós sabemos que tudo vai ficar fixe. Nós já percebemos que estas vivências fazem a nossa música. E, pronto, agora vem a aventura da Europa, e nós estamos curiosos para ver o que vem daí. Aqui não é propriamente uma carrinha como nos EUA porque nós vamos andar sempre de avião e de comboios.
É interessante que digas que isso faz a vossa música porque em notas da Clean Feed que apresentam o vosso primeiro trabalho, é-nos dito que “improvised music starts BEFORE any music is made”. Está implícita essa ideia de que a música começa a ser feita antes de si mesma.
Totalmente. Este modus operandi que nós adoptámos de fazer os discos depois de não sei quantos concertos tem a ver com isso, porque é óbvio que isto vai sempre crescendo. Para atingir um certo nível são precisas muitas voltas até tudo estar a acontecer naturalmente. Para nós funciona assim. Isto é uma banda que ao vivo é que é, ao vivo é que a coisa se constrói.
E há possibilidade de esta tour resulta num novo disco? As tours têm sido uma verdadeira força-motriz para a vossa discografia.
Sim, claro. Nós não temos músicas novas. Como é a primeira vez que vamos para a Europa apresentar o nosso show, a nossa estratégia é fazer um apanhado de músicas que temos para trás. Além disso, vamos meter uma ou duas músicas de outros músicos: uma delas é do Arthur Blythe. Temos um show montado que consiste num apanhado dos Humanization. E claro que queremos gravar um disco como o Live in Madison, mas agora na Europa. Para ter músicas novas, tem de se fazer as coisas de outra maneira. Precisávamos de mais tempo e de mais ensaios. Por exemplo, nos EUA é diferente, porque lá de cidade em cidade vamos metendo mais uma música e experimentando. Se as coisas não estiverem a funcionar muito bem, construímos de forma diferente na próxima cidade. Na Europa não vai ser assim. Cada sítio é uma final [risos]. Os concertos têm de ser exactamente iguais em todo o lado, não pode haver um crescendo. São tudo finais, não dá para ir construindo, logo é melhor fazermos já a construção do show total, para chegar ao primeiro concerto em Berlim e mostrarmo-lo logo. É óbvio que pode haver um crescendo – e vai haver –, mas dentro daquele show.
Antes de terminarmos, deixa-me só dizer-te uma coisa. Nós somos mesmo uma família, apesar de termos os nossos projectos individuais. Isto é uma coisa muito rara. Eu sou o Luís Lopes, guitarrista, e o Rodrigo Amado é o Rodrigo Amado, saxofonista. Mas nós quando nos juntamos neste grupo temos a consciência de que somos uma família do mesmo sangue. Temos esta ligação muito forte. Este grupo está sempre em aberto até nós morrermos. Podemos ter 70 anos e reunirmo-nos outra vez para tocar. Já aconteceu estarmos parados algum tempo – a última vez que tocámos foi em 2018. Eu acho que isso é muito interessante. É uma banda que, independentemente do tempo que está fora, volta e continua a tocar.