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Fotografia: Algarve Ao Vivo
Publicado a: 31/07/2024

Do insolúvel Trio de Jazz de Loulé ao que ficou por acontecer.

Loulé Jazz’24 — Dia 3: verdadeiramente à prova d’água!

Fotografia: Algarve Ao Vivo
Publicado a: 31/07/2024

Diz-se insolúvel daquilo que não se pode dissolver ou desatar, mas a definição abarca o incobrável, aquilo que não se pode resolver e que se não pode anular. A terceira noite — de fecho — do festival Loulé Jazz, estava absolutamente preparada para a música ter lugar com as duas formações anunciadas em cartaz — Trio de Jazz de Loulé com Sara Badalo e João Palma, e Daniel Herskedal Trio. E acabou por se transformar numa noite sobre a insolubilidade das coisas.

O Trio de Jazz de Loulé é uma bela ideia, exemplar, que importa relembrar para dar mais estímulos como este a quem cabe. Formalizados em 2016, e como resultado de um concurso promovido pelo Município de Loulé com a finalidade de designar um trio de jazz para a promoção e divulgação da música nesta linguagem integrativa, capaz de explorar e desenvolver uma comunicação efectiva com as comunidades locais com a sua própria música e mais além. Para tal foi seleccionado o trio composto pelo pianista João Pedro Coelho, pelo contrabaixista António Quintino e pelo baterista João Pereira. Este trio assente numa clássica instrumentação de jazz tem um modo de acção em rigor mutável, uma vez que vai fazendo a cada actuação convites a colaborantes músicos capazes de servir as intenções e motivações da formação. Em Setembro (dia 20) estarão com o vibrafone de Jorge Rossy para o Jazz em Monserrate. Em Loulé têm um lugar cativo na programação do festival, mas nunca se repetem ano após ano, quer pela apresentação com outros músicos quer pela renovação e revisitação dos temas, em muito vindos do património imaterial do sul do país.  

Para esta edição convidaram dois músicos algarvios de excepção: a cantora Sara Badalo, que actualmente faz parte da banda de palco The Legendary Tigerman, e tem a sua voz em outros campos distintos como no projecto Chico Buarque, No Feminino; e o acordeonista João Palma,  que vai somando prémios em catadupa pelo seu virtuosismo, tornando-se campeão no Mundial de Acordeão em 2018 na Lituânia, na categoria Júnior Virtuoso, e junto à Grafonola Voadora & Napoleão Mira podemos ouvir o seu acordeão, assim como quando se apresenta a solo — e soubemos que tem uma vintena de temas compostos que aguardam os voos que se seguirão. Estamos em terras de grandes acordeonistas, sabemos disso e isso sabe tão bem. 

Voltando à noite de fecho do jazz por Loulé na Alcaidaria do Castelo, o palco faz-se de uma abertura de chamamentos, pelo trio que se voltaria para um trio de cinco. Mas Coelho ao magistral piano, Quintino no vetusto contrabaixo e Pereira na pairante bateria descolam o instrumental da poesia de “Endechas A Bárbara Escrava”, o tema que José Afonso inscreveu em Cantares do Andarilho e que vem de um amor mito do poeta Camões a uma sua amada Bárbara. Da ascensão entre piano, contrabaixo e bateria se fez lugar para as vozes humanas e de fole, passava a ser a cinco a música em palco daí em diante. E que música viria em seguida com “Dona Mariana”, que é somente uma das imemoriais canções de cantos de trabalho do sul e que Giacometti e Lopes Graça inscreveram nas recolhas Música Regional Portuguesa – Algarve. Essa letra diz-nos de atrevimentos, de ousadias entre o amor e o desafio às hierarquias sociais, e dela se começa por ouvir que “Fiz uma aposta, senhores / Ou de perder ou de ganhar/ Dormir com Dona Mariana / Filha do Conde Real”. Estavam lançados os propósitos da música, entre a revisitação para não deixar esquecer e a comunicação efectiva e versátil do trio. Sara emprestou toda a sonoridade algarvia à oralidade tradicional transposta para a toada jazzística e foi começar a ver e escutar um melodioso e portátil instrumento que dá pelo nome de acordina às mãos e boca de Palma. Acordina fica entre uma harmónica — a gaita de beiços — e um teclado de botões de acordeão. Torna-se melodiosa, chamativa e inebriante pelo toque, ouviu-se um tanto longe e também porque queríamos dela ainda mais… e manteve-se em cena para “A Acupuntura em Odemira” em outros dos temas fundamentais de Zeca, a ligar o território ao espaço sonoro. 

Em “Sal Dos Meus Olhos” Sara conduz uma poética de vaga em vaga, num embalo mais que perfeito servido pelas tonalidades graves de Quintino a preencherem todo o espaço emocional disponível e ouve-se um cantar de encanto, como num ciclo em mantra: “O sal dos meus olhos / água nas minhas mãos / à porta da minha casa / as vagas vêm, as vagas vão”. Para depois de um trio de cinco se abrir um duo cúmplice para “Olhos Nos Olhos” de piano e voz se fazer todo um, em que Sara Badalo vira, por momentos — se de olhos fechados se ouvisse — Elis Regina. Esta voz é camaleónica, aprendeu com os répteis miméticos do sul a vestir a pele que mais se encaixa e é tremenda nisso, e por isso crescem juntos ali mesmo na Fuseta — fauna na flora da Ria Formosa. 

Dos céus vêem-se relampejantes instantes que aproximam uma ameaça. Há mesmo quem note aqui e além um par de gotas, mas há em palco uma gente com poderes insolúveis, e por isso prosseguem nessa presença, capazes de repelir a gota fria que se aproxima. Vão para longe e levam-nos com eles, “Calcutta Cuttie” em seguida. O tema servido de quinteto para quinteto, de Horace Silver para este de Loulé, no seu palco residente. E soltam-se livres as vozes dos instrumentos, revelam-se essas forças de nos manter à prova de água e de como a força da música é feita também deste poderes. Em “Freedom Day” de Max Roach e Oscar Brown Jr., que é simplesmente um dos temas mais energizantes do cancioneiro jazz de sempre, despertam os rumores da liberdade ouvindo: “Whisper, listen, whisper, listen / Whispers say we’re free.” Sara Badalo volta a vestir a voz numa outra pele, a de Abbey Lincoln neste preciso caso. O tema pelo baterista João Pereira é servido com um solo absoluto que rompe, que traz nervo, tensão e liberdade, porque afinal “Slave no longer, slave no longer, this is Freedom Day”. O tema projecta uma impaciência explosiva, trata de retomar a expectativa e tensão vibrante logo após a Proclamação de Emancipação (de 1862) de “que todas as pessoas detidas como escravos” nos Estados rebeldes “são e serão doravante livres”. Todos em palco servem a dinâmica de tensão e liberdade pedida, num tema revisitado como uma celebração conjunta com a repleta plateia.    

Fecha-se um triplo olhar, em redor — como o olhar independente dos camaleões — com “Porque Me Olhas Assim”, tema de Fausto Bordalo Dias, e quando se ouvem as palavras que arrepiam cantando — “E lá fomos audazes / por passeios tardios / vadiando o asfalto / cruzando outras pontes / de mares que são rios…” — vem-nos desde dentro Cristina Branco, A garota não, da expressão que torna a maravilha dessas palavras numa ideia que já é de tantos de nós. E ali é a de Sara Badalo, junto ao Trio e ao acordeão a servir com primor o que o tema transporta — a rendição ao amor.

Depois? Depois veio a gota fria… E “não foi o final que queríamos, mas será o início que todos precisamos”, como deixou em missiva o próprio festival ao fazer inscrever que “o concerto de encerramento do Loulé Jazz 2024 teve de ser, infelizmente, cancelado”. Será o primeiro dos nomes que há-de compor o programa de 2025 do Loulé Jazz — Daniel Herskedal Trio fica anunciado. É uma vontade que fica a crescer um tempo mais, como a quela que julgámos fazer crescer quando mais de perto soubemos da música e das ideias de Herskedal na entrevista para o ReB. Há dias assim em que aprendemos a saber esperar um pouco mais, e nisso cresce a vontade — atitude fundamental para o fazer acontecer.


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