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Fotografia: Algarve Ao Vivo
Publicado a: 29/07/2024

De quinteto a quarteto, desde a arranjadora Maria Carvalho à fulgurante Melissa Aldana.

Loulé Jazz’24 — Dia 2: em querendo, podendo e sabendo — cheguem-se à frente!

Fotografia: Algarve Ao Vivo
Publicado a: 29/07/2024

Poder-se-ia dar mais uma achega à importância do espaço das mulheres na arte musical, no jazz, como em qualquer outra manifestação cultural e social. O espaço deverá ser para todos e todas que quiserem, souberem e poderem estar nele. Mas assumimos antes o lugar diferenciador e não discriminate — escrevemos sobre músicas (mulheres) pela arte das músicas, tão precisamente assim mesmo. 

Ao segundo dia — jornada intermédia — do festival de jazz algarvio Loulé Jazz, em tempos de ir a banhos, este recebe outra enchente que esgota os lugares disponíveis no pátio recatado da Alcadaria do Castelo de Loulé. E refira-se que mesmo ali ao lado há um esplendoroso novo espaço cultural para visitar — o Hammam de Al-‘Ulyã. A musealização exemplar do complexo de banhos islâmicos trouxe de volta o que durante séculos foi um refúgio retemperador nestas paragens e a modernidade soterrou. Está de volta para ser usufruido — agora noutra função — onde a passagem desde as salas de banhos quentes, tépidos e frios fica num bálsamo imaginado e que inebria a alma e o espírito próximo — acreditamos que sim — dos que efectivamente viveram esse privilégio. O nosso, desta feita, volta a ser maior, uma vez mais, para os sons de palco, nestes banhos que são de jazz por estes dias.

A primeira formação programada é composta por um quinteto de músicas agrupadas na sábia escolha de Maria Carvalho, compositora e — como a própria se define melhor — arranjadora. Não que os temas que traz estejam a precisar de uma arranjo ou conserto, antes das sempre válidas revisitações aqui em concerto. E falamos do legado de músicas e palavras cantadas — e assim eternizadas — por José Mário Branco, nome maior entre os autores. Maria Carvalho sabe-o perfeitamente e atreve-se eficazmente a fazer novas roupagens musicais, justamente revisitando a obra daquele que foi tantas e felizes vezes um orquestrador e arranjador de excelência. José Mário produziu muitíssimo mais para outros do que escreveu em nome próprio, foi empenhadamente mais um arranjador do que autor, pelo volume de trabalho feito em função da música. Dito isto, saber de quem retoma esse legado, arregaçando mangas para aplicar a sempre resolvente fórmula de homenagear a música dos outros tornando-a nossa também, para que o seja de todas e todos — é um privilégio de alguns. 

A baterista Maria Carvalho está em palco para apresentar Margem. José Mário Branco, desde a França de exílio, apresentou Margem De Certa Maneira em 1972. Passados tantos anos, as margens aparecem ligadas por um rio, este em que agora mergulhamos e a que podemos chamar o que se quiser — ou simplesmente vida. Este quinteto completa-se com Sara Afonso a cantar e nas palavras ditas, Bruno Ponte na guitarra eléctrica, Luís Lélis no piano e Juliana Mendonça nas cordas do contrabaixo. Há em nós uma memória que não alcança outra contrabaixista portuguesa no jazz — venham as que se seguirão nestas veredas que se vão mostrando reais. O preparado alinhamento do quinteto de pronto revela o sentido em decalcar as palavras honestas de José Mário Branco — para quem “as canções que tu me deste e eu amei”,  como no tema “Sentido Único (Carta a Chico Buarque)”. Num sentido pendular, de embalo, como numa onda de um mar da tranquilidade. Prosseguem com “Vá… Vá…”, que desenvolvem desde um fraseado de encantamento nas mãos de Lélis ao piano a que se juntam as palavras cantadas de Sara Afonso, tornando a voz urgente e permanente do poeta com “Tenho que fazer um pequenino esforço / Vou mudar de vida, ai isso é que vou! / Vá, vá…” As palavras que vão encaixando no devido lugar para fazer o embate necessário, reflexo que a música desenha sabiamente no intervalo deixando entre versos que importam ouvir. “Alguém que acorde esse país / Que pegue fogo aos alibis / De quem pensa que o dinheiro / Se gasta primeiro / Que o amor” — e nisto são as palavras de “As contas de Deus” que desde José Mário se voltam a ouvir neste celebrativo quinteto de Maria Carvalho, onde a guitarra de Ponte se ouve a desafiar os ventos de mudança, quando o guitarrista se agacha para comandar com efectiva destreza os pedais. E nisto há, literalmente, a passagem de um meteoro visível a rasgar os céus — oportuno momento de desejos. 

Em “Eram Mais De Cem”, a arranjadora Maria Carvalho desde o seu instrumento traz um groove, bem sulcado, onde encaixam na métrica certa as palavras distas “Os Homens pequenos / Quando são demais / Não fazem por menos / Tornam-se fatais — Vão por mim que o vivi”. E eis que, com em “Eu Não Me Entendo”, apresentam a música de José Mário nas palavras de José Luís Gordo que Camané cantou. E isso é demonstração transcendente entre os vários autores que esta música abarca. Neste tema, Juliana Mendonça mostra-se artífice do seu tempo, das cordas que tem entre mãos para um redondo e seguro solo no contrabaixo — para relembrar, com a emoção do momento. Foi um ponto impactante no alinhamento que o pianismo de Lélis soube aproveitar em continuidade melodiosa de um desassossego sem pestanejar. O último tema do espectáculo — inevitavelmente — só podia ser “Inquetação”. Para isso, Maria Carvalho, que em muito até ali foi comedida no toque, sempre atenta a conceder espaço aos colegas de quinteto, surge para explanar o melhor da sua linguagem. Desbrava uma bateria em sucessivos contra-ritmos crescentes e a deixar antever um desassossego bom do que está por vir da sua música. 

Num pós-final, no entanto, fica o reparo — construtivo — para o som de palco, tendo ficado a dever algo mais ao que a música e a instrumentação pedia. Por vezes a busca da sofisticação pode fazer perder a eficácia vinda do mais óbvio e imediato. Saber-se-á aprender com isso, sempre e quando se queira e possa.



O som que de seguida se haveria de mostrar irrepreensível e sublime para a música desenhada em palco pelo quarteto de Melissa Aldana. A saxofonista tenor programada em quarteto para outro dos momentos de estreia em palcos portugueses neste Loulé Jazz. Aldana é uma das vozes de jazz desde o Chile, apresentou-se como solista em 2021 no Guimarães Jazz no seio da Frankfurt Radio Big Band. Aldana segue firme nas pisadas encontradas, hoje tem o seu nome autoral inscrito num dos maiores selos de sempre do jazz — na Blue Note. 12 Stars, de 2022, e o recente Echoes Of The Inner Prophet são cumes andinos na trajectória da saxofonista, que nos convida, nas palavras da própria editora, para uma “viagem musical para explorar a profundidade da viagem interior”. Uma dupla viagem na dimensão da sua musicalidade. Ao contrário do registo em palco, surge em quarteto — sem guitarra — e com Pablo Menares no contrabaixo, Kush Abadey na bateria e um supreendente e cristalino pianista Pablo Held. Held junto a Aldana para partilhar e crescer a música mutuamente. Held que referia — desde fora — após o registo 12 Stars que “depois de acompanhar o percurso musical da Melissa à distância durante muito tempo, foi ótimo ter agora uma visão mais pessoal e profunda do seu processo. Parecia que estávamos a conviver”. O que se torna uma realidade aqui e agora, neste palco. 

O começo faz-se com “Unconscious Whispers” de Echoes Of The Inner Prophet. Mas de pronto a tenor, segura e fulgurante no instrumento, resolve apresentar um inédito, que compôs faz poucas semanas — algo fresco para todos, até para os músicos. Serve então “Beyond The Blues”, nele se ouve o saxofonismo mais detalhado de Aldana, feito de longas notas, firmes e ousadas, com mistério envolto, e onde a mão direita tempera com ornamentos que se fazem de apoiaturas frequentes nos graves. Outros momentos há com nuances orgânicas de micro-silvos vindos da palheta. Estes detalhes que constroem com robustez a diferenciada voz de tenor têm um apoio técnico imprescindível e que está no microfone dinâmico que traz consigo. Vale por um segundo instrumento, capaz de detalhar tudo o que há a captar do tenor. Passam para “Intuition”, inscrito em 12 Stars e de volta a revelar uma mão direita tão fundamental na ornamentação da melodia. Aldana lidera a sua música, mas retira-se sempre que há que conceder o espaço para os seu adjuvantes de quarteto. Volta a juntar-se sempre que tem algo mais a dizer, e fá-lo desde o lugar de onde vem, como quem nunca se impõe, antes faz-se juntar a que está em cena — e isso é sabedoria e leveza. Aliás, a sua música assenta nessa ideia de conforto interior, desde um dentro para fora. É como se para encaixar o mundo em redor se tenha que ouvir primeiro o que vem desde dentro, e disso tomar lugar desde a harmonia dos sons — a citada viagem de dupla dimensão. 

Há ainda uma hipnotizante e cativante melodia em “For Heaven’s Sake” de Edwards-Meyer-Breton. E em “Los Ojos de Chile”, de volta o penúltimo álbum, descreve como que a paisagem do estirado território chileno, indo dos recortes costeiros aos cumes da cordilheira andina — como num voo de condor. Para tal conta com os desbravados traços desenhados pela coesa e diversa, em recursos, secção rítmica entre Menares e Abadey. De Held chegam os ímpetos cristalinos, plenos de recriação ilustrativa do relevo do território a mapear. A Aldana cabe a ligação e os momentos de recortes, de ascensão e de planares viagens num tema tão extenso quanto entusiasmante. Haveria depois que retemperar e regressar ao lugar. Isso foi conseguido com “A Story”, de volta ao último álbum e ao pianismo cativante de Held, que deixou confesso algures que “há muitos anos que admira a música e a forma de tocar de Melissa Aldana” — e nós a dele também, para muitos desde esta precisa e confortável noite de notas azuis.


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