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Fotografia: Algarve Ao Vivo
Publicado a: 27/07/2024

Melodiosa culturalidade em quartetos, de Ricardo Pinheiro a Mário Costa.

Loulé Jazz’24 — Dia 1: músicos sem fronteiras num palco de encontros

Fotografia: Algarve Ao Vivo
Publicado a: 27/07/2024

Está dado o mote certeiro, mesmo quando aparentemente o ciclo de concertos fica a dever um tema ou designação, que um curador costuma ter em mente quando imagina um cartaz, porque na escolha de nomes há um propósito ou vários que começam na vontade e terminam no ver acontecer. Mário Laginha, músico, compositor e curador da edição deste ano do Loulé Jazz, no palco montado na Alcadaria do Castelo de Loulé — com plateia esgotada no primeiro dia — para apresentar quem se vai ouvir, e fá-lo em modo simples e assertivo para designar os músicos que compõem ambas formações da noite. São dois quartetos liderados por compositores e instrumentistas jazz portugueses, mas que juntam músicos de referência vindos de outros mais lugares, além fronteiras. Laginha assume nisso um dos propósitos mais elevados com “esbater as fronteiras, abolir as fronteiras — estamos tanto a precisar disso”. A música é disso exemplo e serve-se em seguida.

Ricardo Pinheiro tem um disco recente, Tone Stories, editado pela Fresh Sound Records, e tem servido com a série New Talent novas e refrescantes pistas no campo do jazz — Eduardo Cardinho, com Not Far From Paradise, é bom exemplo disso mesmo. Esta casa editorial desde Barcelona está atenta e também se encarrega do esbater de fronteiras nesse sentido. Para gravar Tone Stories, Pinheiro contou com músicos que são uma referência na sua música — um privilégio que se colhe com as melhores práticas. Contou com o saxofonista tenor e soprano Chris Cheek, com Michael Formanek no contrabaixo e com Jorge Rossy na bateria. Aqui em palco, e também porque neste campo a migração é uma constante, tem um outro fundamental baterista em funções, que é Eric Ineke, e um convidado especial em estreia na partilha musical com os restantes — o saxofonista Andy Sheppard. Ineke fez parte da constelação de músicos que Pinheiro reuniu para voltar à música de Bill Evans em Turn Out The Stars, em 2021. Já Sheppard faz a sua estreia com estes músicos perante todos nós, no encanto do primeiro encontro. Tem um precurso feito de grandes registos e de destaque é o trio formado com Steve Swallow e Carla Bley com o tríptico que se revelou com Trios (2013), Andando El Tiempo (2016) e Life Goes On (2020), os derradeiros registos das teclas da maga Bley.

Sheppard e Formanek que se encontram pela primeira vez para tocar — com Pinheiro e Ineke — e servem o palco do Loulé Jazz como plataforma para marcar o inédito momento. E o momento é de mudança para estes dois enormes músicos, que escolheram viver em Portugal e neste território celebrar estes novos momentos. Vem a propósito o tema com que o quarteto abre o alinhamento, “Despedida de Lisboa”, que aborda um momento de mudança e novo rumo. “When You Wish Upon a Star” começa a servir o alinhamento de Tone Stories com o reformulado quarteto e traz três primeiros solos em cascata que preenchem de brilhantismo o caudal musical, primeiro com Sheppard no tenor, depois Pinheiro na guitarra eléctrica e terminando Formanek essa apresentação da linguagem individual do colectivo. Sheppard, que trouxe um outro saxofone que tocou com belíssimo encanto melódico, foi no soprano que fez as delícias em “Avô”, tema fraterno de Pinheiro que imaginamos a quem se refira. Formanek serviu na perfeição esse embalo com um contrabaixo planante. Depois houve “De Dah” do pianista de jazz americano Elmo Hope. Pinheiro tem este mote na música “de voltar aos standards” — “E não me sinto forçado a fazer a abordagem da moda e a mudá-los para além do reconhecimento”, como confessou em entrevista a François van de Linde para a Jazz Journal recentemente. Refere ainda que: “O meu critério é a melodia e a harmonia. Sei que estou apaixonado por um tema quando não consigo deixar de o cantar.” Sheppard voltou a brilhar na noite com o tenor nesse mesmo tema clássico composto para piano por Hope. Mas foi com “Forever In a Day”, composto por Sheppard e servido pelos colegas de quarteto, que tudo se fez orgânico e reverente. Ineke desenvolve uma cadência literalmente pela palma da mão e o sulco profundo leva os restantes por ali adiante rumo à brisa que entrava sem mácula — foi um momento maior. Prestação que resolveu cruzar mares até ao perfume influente da bossa nova na música de Pinheiro com “What If” — e se assim for, que seja bom, assim como foi. “The Peacocks” de volta ao disco Tone Stories e ao registo de revisitação da música dos outros que inspiram estes em palco, aqui num tema composto por Jimmy Rowles. Mais uma composição transposta do piano para uma instrumentação feita sem essas teclas, mais uma demonstração da vital ausência de fronteiras. E mais um tema onde o sopro em soprano tornou a melodia suprema. Fecham o concerto com um irrecusável voltar a palco para “Fried Bananas” que deixou marca, como deve acontecer no primeiro encontro para relembrar.



De volta a outro encontro com Chromosome, o galarduado registo de Mário Costa para a prestigiante Clean Feed, agora em palco. Costa que vai dizendo que estará a dar os últimos concertos com esse alinhamento. Há nele uma criatividade pujante e irrequieta e por isso o baterista e compositor tem de percorrer a diversidade que o rodeia — quer na instrumentação quer nas ideias. Recentemente vimos a apresentação da nova cena que o vai manter focado a uma ideia de falar da própria espécie com Homo Sapiens, onde volta a formular a secção rítmica com Bruno Chevillon no contrabaixo, assim com em Chromosome. E voltando ao tema das fronteiras e a quebra delas, esse é também o mote aqui. A transposição musical da imaginação do tempo das viagens exploratórias marítimas, onde se mapearam os “novos” mundos que muitos desconheciam — e lá está a ideia de esbater as fronteiras, de as saltar, na importância de ver, ouvir e viver além. Com Costa e Chevillon em palco estão Benoît Delbecq no piano, sintetizadores e programações e Gileno Santana no trompete.

O vianense Mário Costa confessa-se fascinado pelo outro extremo do território, a sul, o Algarve — das primeiras vindas na juventude e agora sempre que pode, mantendo o desejo como nesse primeiro dia de encontro. Estes são músicos em pleno estado de sintonia, e importa recordar que justamente Chromosome foi composto por Costa pensado na singularidade — no “ADN” — dos companheiros executantes. Estando Santana a servir esse propósito na vez, mais que suplantada, do americano-vietnamita trompetista Cuong Vu. Navegam destemidos em “Adamastor”, tema onde os cimbalos nos colocam derradeiramente sobre as águas, tempestuosas e de ventos cruzados, mas com esta armada de músicos a navegação é sempre com rumo estável. Passagem garantida e esperada pelas “Moluccas” e onde as sonoridades da bateria são transformadas no requinte e subtilezas timbricas, onde pequenos objectos cintilam e chocalham, como a gigante vagem, a maior do mundo vegetal, feita para viajar pelos mares — a entada gigas. Há uma trompete que emana o destemido rumo sonoro, como nos navios em dias de fraca visibilidade — soar para ver ainda melhor. Há “Moonwalk” que enche a plateia de um rumo dançante que contamina e faz chegar o tema-título “Chromosome”, para Costa desenhar um processo criativo na bateria que se auto-alimenta com uma armadilhada electrónica de efeito transbordante. Com “Vitória” há um piano nessa formulação de linguagens expansivas, preparado em múltiplos efeitos com a coadjuvante electrónica. Juntam-se na criatividade, tema adiante, as arcadas processadas do contrabaixo de Chevillon e a trompete texturada, e com surdina, de Santana. Términos de viagem marítima-sonora com a ligação de “Oxidação” e “Erosion”, unindo os dois registos de Mário Costa, Oxy Patina e Chromosome. Esta junção dos temas ligantes desenvolve-se com uma degradação, mas na qual a melodia ao invés de se deteriorar entra num processo erosivo ganhando mais textura e detalhes relevantes, que avançam para um diálogo trepidante entre a bateria e trompete. E sem dar por isso é já o discurso permante em reciclagem sonora, aos comandos da batuta invisível de Delbecq, que se desenvolvem em ciclos construtivos que aproveitam os elementos sonoros da matéria envolvente e surgem livres, sem fronteiras — como numa demonstração para o mundo.

O Loulé Jazz’24 será hoje (dia 27) palco para Melissa Aldana Quartet, Maria Carvalho Quinteto “Margem”, e amanhã (dia 28) para o Trio de Jazz de Loulé com Sara Badalo e João Palma, e Daniel Herskedal Trio.


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