Janeiro de 2025 marca o regresso dos Linda Martini aos discos com Passa-Montanhas. Ao sétimo longa-duração, André Henriques (voz, guitarra, letra), Cláudia Guerreiro (baixo), Hélio Morais (bateria) e, agora, Rui Carvalho (aka Filho da Mãe, guitarra), mergulham na ideia de “conversar melhor” com o intuito de refletir. Sobre o seu passado, de quem passou por ele, de quem os influenciou, das histórias que os impactaram.
O resultado é um disco de extremos, onde os Linda Martini abraçam algumas das dinâmicas abrasivas de ERRÔR (2022) e algumas das suas composições mais sensíveis desde Sirumba (2016), e onde tanto cantam sobre os fantasmas que os assombram como sobre o capital e cães-tinhosos. Os Linda Martini querem fazer perguntas sobre o estado atual das coisas mesmo que não tenham as respostas — cabe a nós, enquanto coletivo, encontrá-las.
Neste final de semana, os Linda Martini começam a desenrolar a história de Passa-Montanhas ao vivo, com as apresentações em Lisboa (no Lisboa ao Vivo, dia 31 de janeiro) e no Porto (no Hard Club, dia 1 de fevereiro). Breves dias antes do lançamento de Passa-Montanhas, que surge acompanhado de uma cassete intitulada Serra, que inclui as gravações das sessões de composição que ocorreram na residência que a banda operou em Leiria em maio de 2023, o Rimas e Batidas deslocou-se ao HAUS para conversar com Hélio Morais e André Henriques sobre o novo álbum da banda originária da Linha de Sintra, mas também para refletir sobre as histórias destes mais de 20 anos de Linda Martini.
Ao ouvir o Passa-Montanhas, reparei que o disco está cheio de momentos que relembram mais os dois primeiros álbuns de Linda Martini [Olhos de Mongol e Casa Ocupada]. Tendo em conta o mote de “conversar melhor” que inspirou o novo álbum, este também funciona como forma de diálogo com o passado de Linda Martini?
[André Henriques] Também passa por isso, mas é curioso que não tínhamos pensado nessa perspetiva. Com o passar dos anos, e já são muitos desde o Olhos de Mongol, existe sempre uma conversa com os discos anteriores, que muitas vezes até surge de um certo antagonismo. Por exemplo, se lançarmos um disco mais pesado, o disco a seguir tende a ser menos no prego. Depois, outra coisa. Nunca temos uma carta de intenções quando nos sentamos a compor. O que fazemos, e aí somos muito tradicionais, é juntarmo-nos e começamos a tocar. Daí a tal conversa, de ver o que cada um trazia para cima da mesa e discutir para arranjarmos um compromisso e consenso para que toda a gente ficasse feliz ou, pelo menos, menos infeliz. E é curioso que neste, por ser o primeiro disco com o Rui, existia do nosso lado uma certa expectativa de percebermos como ele iria entrar na dinâmica de Linda Martini. Apesar da malta associar o nome dele à guitarra clássica, ele tocou com o Hélio em If Lucy Fell. O passado dele é muito do trambolhão, do punk e do hardcore. Portanto, para ele, acabou por ser muito natural. Nós não lhe fizemos um briefing para ele cumprir com a ideia de Linda Martini. E apesar deste novo alinhamento da banda, acabámos por fazer um álbum que sinto que é diferente, mas que não deixa de comunicar com os discos anteriores. Não é uma rutura total com o passado.
[Hélio Morais] Acho que também é fruto de algo que sentimos que aconteceu com o Linda Martini. Quando fizemos uma Sirumba, fizemo-lo em reação ao Turbo Lento, que é um disco cheio de camadas e de pistas de guitarras. Por causa disso, fizemos as canções do Sirumba a pensar em fazer algo com pouca distorção. Pela altura do Sirumba, a Cláudia tinha acabado de ser mãe e o Pedro Geraldes estava a tocar muito com a Aline Frazão. Portanto, acabámos por ser eu e o André a partir cascalho durante algum tempo e existiu logo a necessidade de preencher as canções com voz. Isso levou a que existisse menos espaço para ruído no Sirumba. E na altura, sentimos que, por o Sirumba ser um disco muito construído na ideia da canção, poderia chegar a um público diferente. Mas não chegou. Não ficámos com menos público, mas não diferenciou muito daquilo que tínhamos com o Turbo Lento. Com o Linda Martini, que é um disco bem no prego, aconteceu o contrário. Chegámos a mais gente com o Linda Martini e isso deu-nos a segurança de que podíamos lançar o que nos saía e que estava tudo bem. E se calhar, isso permite-nos fazer um disco como este que lembra um bocadinho mais os nossos primeiros álbuns. As canções vão a muito lados diferentes, não têm bem uma estrutura A-B-A-B. Temos uma música de dez minutos que é algo que já não tínhamos há muito tempo. E tudo isso foi natural. Não houve estranheza em aceitarmos que seria assim.
Este foi o terceiro disco seguido que construíram em contexto de residência. O tempo que ganham por estarem todos juntos no mesmo sítio tornou-se crucial para o processo de composição de Linda Martini?
[Hélio] Sim. E desta vez, fomos quase do zero para a residência. Acho que só tínhamos um riff do André, que surge na “Assombro”, e uma outra coisa.
[André] A outra coisa foi utilizada na “Meu deus”.
[Hélio] Normalmente, fomos para as residências com algumas ideias e era lá onde cristalizávamos a estrutura de cada disco. Também fomos ficando mais eficientes a fazer isso. Para o Linda Martini, fizemos duas residências de seis ou sete dias. Para o ERRÔR, fizemos uma. Para o Passa-Montanhas, fizemos uma também. Aprendemos a lidar melhor com a frustração de estarmos o dia todo numa sala a partir cascalho e a tranquilidade ou não acumulação de frustração — as coisas acabam por fluir mais naturalmente. Mas apesar de neste disco as coisas terem funcionado de forma ligeiramente diferente, porque íamos com muitas menos coisas para a residência, é super importante que as coisas funcionem assim agora. Toda a gente tem vidas familiares e, quando estás em residência, acabas por estar mais focado porque estás só a fazer isto, sem distrações. Isso foi muito importante para este disco porque perdemos imenso tempo a afinar as coisas. Foi por isso que editámos a cassete da residência [Serra], porque dá para ver a gigante diferença entre as versões da residência e do álbum. Ainda estivemos muito tempo juntos aqui na sala a partir cascalho e a gravar e regravar insistentemente.
[André] Como não tínhamos muita coisa, o que saiu da residência foi de jorro. Depois, estivemos a tentar perceber o que servia o disco e o que se podia transformar numa canção. Nos outros dois que fizemos em residência, o trabalho já vinha mastigado de casa e foi mais juntar as peças e finalizar. Desta vez, não. Foi o início de tudo.
O ano passado, no Musicbox, tocaram bastantes canções deste disco, pouco tempo depois de as terem gravado na Catalunha com o Santi García. Esse exercício ajudou-vos a perceber que este era o caminho para este álbum? Até por serem as primeiras canções que fizeram com o Rui.
[André] Vou-te confessar uma coisa em relação a esse concerto [risos]. Nós tínhamos esse concerto marcado há muito tempo — aliás, eram duas datas — e a ideia era fazermos a festa do lançamento do disco dos 20 anos [Merda e Ouro]. Mas aconteceu o seguinte. O disco atrasou na fábrica e não ia ficar pronto a tempo do concerto. Como estávamos com a pica toda de estarmos a fechar o disco com o Santi, acabámos por decidir fazer o concerto na mesma com as canções que estávamos a gravar. Já tínhamos falado de fazer uma coisa desse género, uma espécie de mini-tour antes do lançamento do disco, até fora de Portugal, para rodar as canções. Assim, quando o disco saísse, já estávamos oleados para o tocar. Porém, isso nunca aconteceu. Neste caso, acabou por ser uma amostra disso e foi muito fixe para nós. Adorei esse concerto porque conseguimos perceber se estas canções iam ressoar do outro lado, com as pessoas. E ficámos a achar que sim.
Lembro-me que durante a digressão do “Rumble in the Jungle” com The Legendary Tigerman de vos ter ouvido tocar canções do Linda Martini antes do disco sair. Lembro-me de ouvir a “Boca de Sal” no Coliseu dos Recreios, por exemplo.
[André] É verdade. Essa tour foi muito fixe.
[Hélio] Mas nessa tour mudávamos conforme a data o que tocávamos do Linda Martini. Mas é que o André disse. Tínhamos as duas datas marcadas e não queríamos deixar o Musicbox, que sempre foi um parceiro super disponível, na mão. Acabámos por arranjar esta solução.
[André] E a própria data de lançamento do Passa-Montanhas foi adiada por causa desse contratempo com o Merda e Ouro. Queríamos lançar este álbum até ao final de 2024, mas como ocorreu esse atraso, tivemos de arranjar tempo para tudo.
Quando os Linda Martini explodem com a “Amor Combate” com a ajuda do Myspace, rapidamente ganharam uma comunidade grande de fãs e conseguiram tocar em festivais como Paredes de Coura. 20 anos depois desse momento, sentem que ainda é possível uma banda a fazer um som mais “diferente” como Linda Martini ter o mesmo tipo de trajeto?
[Hélio] Instintivamente, responder-te-ia que sim. Mas a verdade é que tu tens exemplo, como MAQUINA., que têm tocado nesses festivais. Talvez não seja tão bruto como Linda era (ou é) — MAQUINA. tem um som mais dançável —, mas não deixa de ser uma banda rock a chegar a esse circuito e a outros que nós nunca chegámos. Eles fazem tour na Europa que nunca mais acaba e tocam em salas mesmo fixes. Portanto, essa pergunta é difícil de responder com certezas, porque quando Linda Martini apareceu, o tempo era outro. Havia mais espaços para bandas. Hoje em dia, há mais concorrência. E não é por existirem menos bandas, porque penso que isso não seja o caso. Acho é que, além das bandas, existem mais pessoas a fazer música em casa sozinhos ou com um produtor. Portanto, há mais gente a fazer música e isso acaba por diversificar o que as pessoas ouvem, mas também se reflete depois nos festivais e nas rádios. Mas eu sempre fui da opinião que Linda Martini teve a sorte que teve porque foi a altura que foi. A nossa proposta naquela altura fez sentido.
[André] Até a questão de cantarmos em português. Depois surgiu a FlorCaveira, é certo, e num outro contexto, mas na altura ainda estava a decorrer o período de grande corte com o português que ocorreu entre a geração dos Mão Morta e a nossa. Demorou algum tempo até voltares a ouvir uma banda a cantar em português com um som mais contemporâneo. Mas eu concordo com o Hélio. Existem mais coisas agora do que na altura. Depois, também há a pequenez do nosso mercado. Ou seja, mesmo que faças música muito diferente, estás no mesmo barco que outras coisas que podem nem ter a nada a ver com o som que fazes. Mas a verdade é que o rock, cuja morte já é anunciada desde os anos 80, continua por aí, a transmutar-se de várias formas e a continuar a existir.
[Hélio] Tens bandas como os IDLES a ficarem gigantes, Protomartyr, os Turnstile…
[André] E tens cada vez mais malta da pop a namorar outra vez com as guitarras. Mas isso nunca foi uma preocupação nossa, sabes? O nosso calendário sempre foi gerido pelas nossas vidas pessoais. Durante muito anos, toda a gente da banda trabalhava e tinha horários diferentes. Portanto, nunca nos governámos por aquilo que o mercado está a pedir. Mas acho que é mais difícil de acontecer aquilo que nos aconteceu agora porque tudo concorre com tudo e também por causa da atenção das pessoas. Está mais dispersa e pelas mais variadas coisas.
[Hélio] Eu não sei se uma música como a “Amor Combate”, que tem cinco minutos, passaria hoje na rádio. No entanto, em 2006, foi considerada a canção do ano para a Antena 3. Para nós, isso na altura foi uma cena mega distópica. Vínhamos das casas ocupadas e foi muito estranho para nós isso acontecer. Se calhar, hoje em dia seria difícil uma música como a “Amor Combate” ter o alcance que teve.
Há quatro anos, numa entrevista à CCA, diziam que não conseguiam ver muitos “filhos” de Linda Martini. Quatro anos depois, há um conjunto de bandas, como Pato Bernardo, Dispirited Spirits, Humana Taranja, ou até mesmo os próprios Hetta, que bebem de Linda Martini. Como olham para estas bandas que olham para vocês como referência?
[Hélio] Fico feliz quando vejo isso porque há nomes aí que estou atento e dos quais gosto [risos].
[André] Para nós, é difícil percebermos o impacto que Linda Martini tem a menos que alguém nos diga diretamente. Honestamente, sem falsas modéstias, acho que não somos das bandas que fez mais “escola”. Por exemplo, os Capitão Fausto, consegues ver, a partir do momento que eles deram um twist nos discos de fazerem uma coisa mais Beach Boys–
[Hélio] Com Os Dias Contados.
[André] Sim. A seguir, apareceram uma série de bandas que, apesar de não serem iguais, cabiam ali mais ou menos na mesma paleta de cores. Connosco, tenho mais dificuldade em ver isso.
[Hélio] Hetta, por exemplo, até acredito que tenha ido beber mais a If Lucy Fell que Linda Martini. Contudo, tanto Linda Martini como If Lucy Fell foram beber ao mesmo sítio, a cenas como Botch ou These Arms Are Snakes. Mas é curioso, porque com o passar do tempo, Linda Martini aproximou-se cada vez mais do que era If Lucy Fell [risos]. Vamos flirtando mais com coisas que estariam em If Lucy Fell, ainda que com a abordagem de Linda Martini.
Com a entrada do Rui em Linda Martini, não sei se sentiste alguma da energia dos tempos de If Lucy Fell.
[Hélio] Senti numa música, que foi a primeira que fizemos. Se ouvires a versão da cassete da “Uma Banda”, quando ainda tinha o nome de “Number One”, ela tem bem mais contratempos do que a versão final que está no álbum. Para mim, foi super natural acompanhar o Rui quando ele começou a fazer esses contratempos. Tivemos de nos encaixar os três nele e vice-versa. Se existiam dois blocos dentro da banda, dissiparam-se rapidamente.
Curioso, porque sinto que o Passa-Montanhas tem dois blocos. Existem as canções mais longas e livres, um bocadinho mais afastadas do ERRÔR, e as canções mais punk e pujantes, que se aproximam dos tons mais introspetivos e angustiantes do ERRÔR. Não sei se sentiram a noção de que existiam esses dois lados no álbum.
[Hélio] Acho que houve essa perceção. Lembro-me que até deixámos uma canção de fora, que está na cassete, porque o beat nos lembrava demasiado algumas canções do ERRÔR. Mas acho que ainda temos algumas coisas no Passa-Montanhas que são ressaca do ERRÔR. Temos alguns riffs que são mais bigorna. Soam pesado, mas não são bem ruidosos.
[André] Quando começámos a tocar com o Rui ao vivo, o feedback que recebemos, até da nossa equipa, é que o som estava mais cavado e pesado. Isto terá sido porque o Rui, fruto de ter tido pouco tempo para aprender as músicas, colou-se mais à guitarra e ao baixo e não tanto às harmonias e picotados pelos quais ele é mais reconhecido. E o Rui, em contexto de banda, gosta mais desse lado mais anguloso e pesadão. Ele acabou por trazer isso também. Concordo contigo que existem esses dois lados no disco e é curioso que também acredito que existem esses dois lados no campo dos textos, da palavra. A ideia do conversar melhor surgiu da necessidade de sentarmos o Rui à mesa e de fazermos músicas com ele, mas estendeu-se a muitas outras coisas. Tivemos muitas horas de carrinha, muitas horas de residência, e conversámos imenso sobre o que estávamos a fazer, mas também sobre o que estava a acontecer no país e no mundo. Ou seja, este foi o disco onde nos virámos mais para dentro, mas que também mais olha para o que se passa lá fora. Esse peso que tu falas também é possível de analisar em tons de introspeção e de espalhar ou refletir sobre o que está a acontecer no mundo. Acho que nunca fizemos uma coisa tão pesada, por exemplo, como o final da “Eu Às Vezes Perco-me”, que é uma canção labiríntica, sem estrutura, que depois rebenta no fim de forma mesmo cavada e angular. Mas depois tens momentos como as pontas do disco, ou seja, a “Assombro” e “A Mão Como A Maré”, que são muito sensíveis. “A Mão Como A Maré” começa com o Hélio a tocar com os dedos. Ao vivo, é quase impossível replicar esse som porque os próprios compressores não deixam ouvir esse ruído. E mesmo até pela questão do diálogo com o Olhos de Mongol. Já tínhamos feito músicas longas desde aí, mas nunca fizemos uma música com 10 minutos.
“A Mão Como A Maré” é a canção mais longa da discografia de Linda Martini a seguir à “Lição de vôo nº1”.
[Hélio] E essa tem uma secção muito longa de ruído.
[André] Os “extremos” do disco estão mais “extremados” e acho que nunca falámos do momento presente tanto como agora. Se calhar, no passado as letras estavam um bocadinho mais encriptadas ou metafóricas. Neste disco, tu percebes mais sobre o que estamos a dizer e qual a intenção.
Mas não sinto que vocês enquanto banda tenham escondido alguma vez esse vosso lado político. Há um historial na vossa discografia de canções que falam do presente com tons políticos, como a “O Amor É Não Haver Polícia”, a “Corda do Elefante Sem Corda”, a “Febril (Tanto Mar)” e a “E Não Sobrou Ninguém”. Porém, o que sinto é que neste Passa-Montanhas, essa conversa sobre o presente estendeu-se a narrativa integral do álbum ao invés de ser algo mais esporádico. Sentiram que era necessário posicionarem-se desta forma enquanto banda?
[André] Acho que mais do que necessário, foi isto que se impôs. Quando tínhamos bandas de punk e hardcore, as coisas eram naturalmente mais panfletárias do que com Linda Martini porque faz parte do género.
[Hélio] Na banda que tínhamos antes de Linda Martini, que eram os Shoal, já éramos políticos de uma forma menos óbvia.
[André] Sim. Aliás, é curioso. Estivemos a ouvir o novo disco de Mão Morta [Viva La Muerte] no outro dia, e gostámos muito, mas sinto que há coisas sobre as quais temos uma visão diferente. Por exemplo, não acho, e o Hélio deve concordar comigo também, que os músicos têm o dever de se posicionarem ou de mostrarem as suas cores e fazerem canções que são interventivas num contexto social ou, se quiseres, político. Acho que discordo um bocadinho dessa visão. Os músicos, e qualquer pessoa que produza trabalho criativo, tem o dever de o fazer da forma mais honesta e descomprometida possível. Se quiserem falar e cantar sobre esses temas, nada contra. Mas acho que o devem fazer sem uma questão de dever. Eu sinto-me muito pouco à vontade para pensar que a nossa música (ou algo que escrevi) tem o poder de mudar alguma coisa. Eu sei que a música pode inspirar, claro, porque também me inspirou. Contudo, talvez seja um bocadinho sobranceiro eu dizer que vou fazer uma canção porque ela é precisa e vai mudar algo. Porque não sei se vai. Por isso é que “A Cantiga É”, em vez de ser uma afirmação, é uma pergunta. Hoje, será que a cantiga continua a ser uma arma? É a mesma coisa fazer uma canção hoje ou fazer uma canção na altura do PREC ou antes do 25 de abril? Eu posso dizer o que quiser nas redes sociais e não vou preso. Eventualmente, até posso levar umas palmadas nas costas de alguém por algo que disse. Acho que o que quisermos realmente trazer para a mesa são perguntas. Como disseste, no passado fizemos canções como a “E Não Sobrou Ninguém”. Mudou alguma coisa? Impediu que alguém tivesse acesso à assembleia ou que as pessoas votassem A ou B? Não sei se impediu. É muito difícil para mim perceber isso. Agora, não podemos deixar de fazer as canções que temos de fazer só porque estamos a questionar se irão mudar algo ou não. As canções são feitas e depois seguem o seu rumo. Se inspirarem, inspiram. Se caírem em saco roto, caíram. Se for só para os convertidos que estou a pregar, será.
[Hélio] Acho que estamos todos muito de acordo com o que o André acabou de dizer. Uma das canções que mais suscitou conversa entre nós foi precisamente “A Cantiga É”. Primeiro, porque precisávamos todos de entender o ponto de partida do André e o que ele queria dizer com aquela letra. Precisávamos que cada um conseguisse encontrar um contexto naquela letra que se sentisse confortável. E se tu pensares, podes ser político de várias formas. Se calhar há artistas que só cantam sobre o amor, mas que se estão constantemente a posicionar publicamente de forma política. É uma abordagem. Há outros artistas em que tudo o que fazem é político, como Fado Bicha. É outra abordagem válida. Se reconhecemos que há várias abordagens válidas de se fazerem as coisas, não podemos nunca achar que é um dever fazer de determinada forma.
“A Cantiga É” foi uma canção que me chamou à atenção não só por repescar o GAC e o José Mário Branco, mas também pelo que o André escreveu no Instagram sobre o valor atual da canção de protesto, que se transformou apenas em “rebeldia glorificada com coraçõezinhos e engagement”. Isso lembrou-me um ensaio da Jodi Dean em que a utilização do termo resistência era por si só uma derrota, porque isso “concedia o terreno da luta”. É preciso reconfigurar a forma como resistimos e lutamos perante o capitalismo e os “cães-tinhosos” que alimenta?
[Hélio] Dizes isso e eu no sábado estive numa manifestação pelo cessar-fogo na Palestina. Bem, uma delas, porque houve duas no mesmo dia. Logo aí, já é algo que me faz confusão, de não se juntarem as duas. Mas eu passei toda a manifestação algo angustiado porque as palavras têm peso. Eu já vim tantas vezes para a rua para manifestações destas ao lado de tantas pessoas e continua a acontecer a mesma coisa na Palestina. Não mudou, efetivamente, nada. Em relação a essa questão em particular, se alguma coisa mudou, foi a falta de vergonha de apoiar o que tem estado a acontecer na Palestina. Esse pensamento trouxe-me bastante angústia e deixou-me a pensar muito sobre a eficácia das manifestações. Depois, falei com algumas pessoas sobre isso, e elas disseram-me que mesmo que não dê em nada, mantém a Palestina na ordem do dia. Também é um ponto de vista que considero válido. Mas acho que isto liga ao que o André acabou de dizer. Se pudermos fazer canções que são vistas como políticas, não temos que necessariamente achar que elas vão operar mudança diretamente, mas podem ajudar a manter a conversa. Isso também é importante. Mesmo que não seja um momento de mudança, pode continuar a alimentar o que quer que seja que se está a defender. Mas sobre aquilo que perguntas, houve algumas coisas na manifestação que se cantou que eu estava a ter dificuldades em cantar. Não porque não as idealize ou porque deixei de acreditar nelas, mas porque não correspondem à realidade. “Não passarão!?” Já passaram! Se calhar, temos mesmo de reconfigurar como tornar estes movimentos relevantes. É um pensamento que me tem assombrado a cabeça. Temos de encontrar outra forma de dizer isto porque já não é verdade. Sinto que às vezes parece quase performativo, porque estamos acostumados a um guião e replicamo-lo sem questionar se aquilo que estamos a dizer ainda tem pertinência ou se tem de ser alterado e repensado.
[André] O exercício é esse. Não foi por obra do acaso que, quando lançámos “A Cantiga É”, ela veio como parte de um single com um lado A, chamado Tudo E O Seu Contrário. Uma das canções desse single pergunta se ainda vale a pena, mas o que queremos dizer é que não vamos mandar a toalha ao chão. Não. Vamos continuar a fazer e a lutar independentemente do resultado. Por isso, lançámos uma canção que tem uma mensagem assumidamente política [“Faz-se De Luz”], que é uma farpa, se lhe quiseres chamar assim, e outra que questiona se essa farpa, se essa bala, vai dar a algum lado. Não achamos que a solução seja desistir porque isso também não leva a mudança. É preciso questionar o que estamos a fazer. Se isto não está a dar resultado, como podemos fazer diferente? Essa é a conversa que queremos ter. O que é uma canção de intervenção hoje? O que é intervir na era do Instagram e do TikTok?
Como é que a capa do álbum e a história d’O Corvo se enquadram na dinâmica de “conversar melhor” do Passa-Montanhas?
[Hélio] O Corvo era um tipo chamado Felisberto Cabral que, em Massamá, era conhecido como o Beto C.O., ou seja, Beto Casal do Olival. Ele fazia parte de um pseudo-gangue que se chamava Gheto — tinha sido apelidado assim pela polícia, talvez porque existiam muitas pessoas não-brancas nesse bairro. Enfim, a polícia a ser polícia em 90 e tal [risos]. O Beto era um tipo muito carismático e arrastava muitas pessoas com ele. Na altura, havia vários gangues em Massamá, em Queluz, em Monte Abraão. Existia o Gang do Limão, a Gália, a Beat Street — uma série deles. Foi uma altura onde começou também a existir muitos problemas com consumo de droga, particularmente com consumo de heroína. De repente, esta malta toda, todos jovens, passavam o tempo à porrada uns com os outros, a consumir droga, a perderem-se totalmente nessas redes. Então, o Beto, que provavelmente não estava a gostar de ver isso acontecer aos amigos, inventou esta personagem d’O Corvo para criar um inimigo em comum. E há um dia em que ele se revela e foi levado para a esquadra do Cacém e todos os gangues foram atrás dele para ele ser libertado. O Beto depois acabou por fazer alguma consultoria — pelo menos, hoje em dia seria apelidada assim [risos] — para algumas paróquias da zona, para a Câmara Municipal de Sintra, porque ele tinha mesmo uma capacidade grande de mobilizar malta jovem e de inspirar. Ele chegou a ir à televisão falar e tudo. Isto aconteceu tudo na altura em que apareceu o General D a falar sobre o que era isto de ser não-branco e de viver nas periferias de Lisboa. A ligação do conversar melhor surge aqui e isso passou para as letras. Primeiro veio a capa, e só depois as letras, mas acabámos por perceber essa ligação. E o Passa-Montanhas também é um título que fala sobre isto de sermos uma banda há muitos anos e todos os altos e baixos que isso implica.
[André] Desculpa a pergunta, mas tu conheces a balaclava como passa-montanhas?
Não.
[André] Ok, é que tem esse nome. O Santi sabia o que era porque também chamam passa-montanhas à balaclava na Catalunha. A cena d’O Corvo impactou-nos imenso na altura. O Hélio era inclusivamente do Casal do Olival e conhecia melhor o Beto, mas isto foi uma cena para todos nós. As aulas paravam porque dizia-se que O Corvo andava no telhado e que ia fazer mal a alguém. Apareceu nos telejornais. Era um mito meio urbano que mexeu connosco. Nós somos fãs destes conceitos que nos juntam e que façam parte da nossa história. A ideia da capa surgiu porque vimos a reportagem feita com ele na altura e ficámos logo enamorados pela fotografia, que era incrível. Ele a usar o tal passa-montanhas. E nós associámos isso logo à metáfora de passar uma montanha. Depois aconteceu, tal como aconteceu com o Sirumba e com o Linda Martini, que quando começámos a trabalhar num disco, as coisas acabam por se informar umas às outras e o conceito expande-se e começas a ver tudo em todo o lado. O estúdio em Cal Pau ser entre os Pirenéus, o tapete de rato do Santi ser o Evereste. Estávamos rodeados de montanhas [risos]. Depois, a ideia da conversa surgiu quando olhámos para o trabalho feito e percebermos a ligação incrível que o Beto nos tinha dado: a ligação pelo medo do desconhecido. Ele era um tipo que dizia que nos tínhamos de sentar à mesa e falar em vez de andarmos à chapada uns com os outros. E de facto, quando observas à tua volta, seja na sociedade civil ou nas redes sociais, concluis que a qualidade da conversa caiu a pique. Há muito ruído.
Sentem que este álbum funciona como um cume para os dois últimos anos de Linda Martini?
[Ambos] Sim.
[Hélio] É muito gratificante sentirmos isso. Quando o Rui começou a tocar connosco, ele foi chamado apenas para fazer os concertos. Depois ficou um bocado esquisito. Continuávamos a ser só nós os três a dar as entrevistas e quando surgiu a questão dos 20 anos, perguntámos: “O Rui fala ou não?” Às vezes, nos ensaios, começávamos a fazer coisas novas e quase que nos castrávamos porque era fatela estarmos a dar uma esperança falsa ao Rui de estarmos a fazer uma música nova sem lhe termos dito se ele fazia parte da banda ou não. Demorámos nove meses até termos uma conversa com ele sobre ele juntar-se à banda. Depois, tivemos de imaginar se iria funcionar em residência, se íamos conseguir fazer alguma coisa todos juntos ou não. Mas conseguimos. E por cima disso, por cima da residência, conseguimos trabalhar depois nas canções. O Rui é uma pessoa que lida muito bem com o processo de gravação e de termos estado muito tempo a gravar e regravar imensas coisas. Chegarmos ao Passa-Montanhas é, de facto, um cume.
Em 2006, numa entrevista ao Bodyspace, o André disse que, no mercado português, era “complicado teres uma carreira duradoura”. Quase 20 anos depois dessa afirmação, os Linda Martini ainda andam por cá e continuam a ter fãs fiéis — e sempre com público renovado. Sentem que o sentimento de comunidade que criaram em torno da vossa banda desde os dias do Myspace é crucial para isso?
[Hélio] Sim. Tivemos essa conversa várias vezes ao longo do tempo com outras pessoas e a dado ponto acho que irritava algumas pessoas porque eram só putos à frente. Mas ainda bem que era e é assim! Enquanto vermos só gente nova à gente, quer dizer que o público se está a renovar.
[André] Mas a cena da carreira é muito estranha. Já falámos nisso algumas vezes, mas para quem começou como nós, em que o nosso modelo de referência eram bandas americanas cujos membros trabalhavam em pizzarias e hamburguerias o ano inteiro para depois se despedirem e virem tocar à Europa… é muito surreal. Esse era o modelo económico que nos esperava. Então, desde cedo, percebemos que precisávamos de ir estudar e tirar um curso e que ter uma banda era um passatempo. Como o mercado era pequeno, conseguíamos tocar às sextas e aos sábados e manter os nossos empregos. Nunca pensámos, nos nossos sonhos mais estapafúrdios, que íamos fazer isto durante tanto tempo, quase sempre com as mesmas pessoas, e que existia tanto público para nos ver. Foi uma surpresa desde o início. Nos primeiros dois concertos, ainda me lembro de ver muitas caras familiares. Mas de repente, vais a Guimarães, ao Algarve, a sítios onde nunca tínhamos ido, e vês malta a cantar as canções e não consegues explicar muito bem esse sentimento de fascínio. Claro que somos fruto do nosso contexto, como dissemos. Se calhar aparecemos num momento onde existia uma certa ânsia por alguma coisa de diferente — por aquele tipo de som, de existir uma banda que falasse as coisas que as pessoas estavam a pensar naquele momento. De alguma forma, acho sempre que estamos a empurrar isto ao limite e as pessoas continuam a ouvir-nos. Por exemplo, as canções todas que lançámos como singles do Passa-Montanhas, nenhuma delas se configura como um single de rádio. A “Assombro”, que é a mais calma, não tem um verso-refrão, é uma música assim meio torta. Os outros singles são um casqueiro de início ao fim. Nós continuámos a fazer isto porque é o que gostamos de fazer, mas termos tantas pessoas que nos acompanham há tanto tempo… é um mistério para mim. Acho sempre que as pessoas não vêm aos concertos e acabo sempre por me surpreender. Já fizemos muitas outras coisas profissionalmente e nunca houve nada que nos satisfizesse tanto quanto criar canções em conjunto. É a coisa mais fixe do mundo. E tu conseguires fazer vida disso — não lhe quero chamar carreira — e conseguires não te comprometeres criativamente e ainda assim pagar as tuas contas, é a melhor coisa que podia ter na vida. E nunca na vida pensamos que seria possível. Aliás, eu até 2015 ou 2016, tinha um trabalho a tempo inteiro das 9 às tantas. Cheguei a apanhar aviões para ir tocar com eles para o Porto por causa disso [risos].
[Hélio] Era lixado. Nós íamos à frente, fazíamos o som sem o André, e depois ele ia lá ter.
[André] Às vezes de fato e gravata.
Por acaso, nessa entrevista ao Bodypsace, o André dizia que era complicado ver um mundo onde seria músico a tempo inteiro.
[André] Nunca na vida acharia que era possível. A perspetiva nunca era essa. Por exemplo, dou-te o caso dos Mão Morta. Na altura, eram pessoas que admirávamos — e continuamos a admirar. Mas eles também têm desde início essa filosofia. Nenhum deles, ou quase nenhum deles, dependia exclusivamente da música. E como não dependiam da música, podiam lançar os discos que quisessem quando quisessem. Não precisavam de alimentar a máquina. Esse era o nosso modelo. Agora, o estranho é que sempre fizemos a música que nos deu na telha e a coisa acabou por resultar. Essa é a nossa definição de sucesso. Não é o dinheiro que ganhamos, termos um disco de ouro ou ganharmos um prémio. A ideia de sucesso é conseguirmos fazer música e conseguirmos ter pessoas que gostam da nossa música e que comprem um disco ou um bilhete para nos irem ver ao vivo.
[Hélio] Mas é uma decisão difícil. Na nossa geração, havia uma pressão enorme da geração dos nossos pais para arranjarmos um bom emprego e termos uma vida melhor do que a que eles tiveram. E largarmos isso… Alguns de nós tomaram essa decisão mais cedo. Eu tomei-a mais cedo porque nunca trabalhei na área que estudei. Ou seja, nunca soube o que era ter um bom ordenado e ter de prescindir dele. O André demorou mais tempo a sair, mas nunca pensámos nisso assim. Nenhum de nós alguma vez esteve na posição de ter de prescindir de um bom ordenado. É lixado. Ainda para cima, em prol de algo que não sabes se é efémera ou não ou se vai ser suficiente para pagares as tuas contas.
[André] A questão financeira é complicada no nosso país.
[Hélio] É preciso gostar mesmo muito de fazer isto.
[André] O mercado é pequeno. Se comparares com o mercado brasileiro, o americano, ou com o centro-europeu, tens muitas mais opções para fazer uma digressão, por exemplo. E nós também temos a questão da língua, que nos limita um pouco ao nosso território. Para mim, não foi uma decisão fácil sair do emprego que tinha. Foi um salto de fé do caraças, porque isto de ter uma banda num dia pode dar e no outro não sabes se continuará a dar. Mas se algum tiver de ir trabalhar para a pizzaria, vou [risos].
[Hélio] Vamos também arranjando umas coisas extra para fazer dentro da área. Eu faço agenciamento, o André já escreveu para outros artistas, temos outros projetos na música e não só. Temos de nos multiplicar um bocadinho para conseguirmos.
O vosso primeiro EP [Linda Martini] e o Olhos de Mongol estão prestes a fazer 20 anos. Espera-se alguma reedição para celebrar esse marco ou é algo em que ainda não pensaram?
[Hélio] Ainda bem que te lembraste disso, porque não me lembrava que já iam fazer 20 anos [risos]. Mas era bonito fazer qualquer coisa.
[André] Talvez. Não sabemos ainda. Custa-nos um bocado entrar no mercado da saudade, para te ser honesto [risos]. Nós sabemos que há muitas pessoas que nos vão ver ao vivo e que gostavam que tocássemos o Olhos de Mongol de uma ponta à outra, mas nós gostamos de fazer coisas novas e depois tocá-las. Crescemos assim com os músicos que admiramos. No Passa-Montanhas, não vai ser diferente. Nestes primeiros concertos que vamos dar, o prato forte vai ser o álbum novo. Mas já é difícil fazer setlists! Já são muitos discos [risos]. Mas o que nos continua a motivar é a música nova. Agora, claro, datas redondas, podemos celebrar. Mas para já, não temos nenhum plano.
[Hélio] Até para o ano, vamos andar focados em tocar o disco novo. Mas uma edição em vinil, é provável que venha a acontecer.
[André] Ou talvez uma surpresa ou outra de um concerto mais específico ou temático. Mas ainda não há um plano.
É verdade que existem versões da “Amor Combate” e da “Lição de voo nº1” com versos em inglês?
[Ambos] É!
[Hélio] Tenho esse CD em casa.
[André] Já ninguém se lembra disso [risos]. A razão para isso é fácil de explicar. Na altura, no final dos anos 90, existiu a tal secura de bandas a cantar em português. Portanto, para nós, foi complicado arranjarmos referências pare entender como musicar o português para aquilo que queríamos fazer sem ser os Mão Morta — que faziam uma coisa muito específica com spoken word — e a geração de Abril e o que se seguiu durante o boom do rock português. Portanto, era difícil aventurar-nos no português. Nas bandas que tivemos antes de Linda Martini, cantávamos em inglês. Quando começámos Linda Martini, queríamos fazer uma coisa diferente que não fosse só de encontro ao punk. Sonicamente, queríamos fazer algo diferente, mas foi difícil de perceber como enquadrar tudo o que queríamos fazer. Por exemplo, as pessoas ligaram-nos muito à cena de pós-rock quando aparecemos, mas para nós, foi uma dificuldade perceber como íamos meter a palavra em cima daquilo. Eu sempre gostei de escrever, mas uma coisa é escrever um poema e mostrá-lo aos amigos, outra é tentares musicar esse poema. Eu lembro-me de sentir vergonha de enviar a primeira maquete de Linda Martini ao Quim Albergaria, que na altura tocava com os Vicious Five, porque tinha medo do que ele ia dizer. Achava que ele ia odiar aquilo. Mas o gajo disse que estava super fixe. Mas foi um risco decidirmos cantar em português.
[Hélio] Já não me lembro se colocámos o sample da “FMI” porque decidimos cantar em português ou se colocámos o sample da “FMI” antes disso para não soarmos iguais a todas às bandas de pós-rock que utilizavam samples em inglês.
[André] A “Partir Para Ficar” chegou a ter outra sample. A canção era a mesma, mas em vez do sample de José Mário Branco, era uma sample de uma curta-metragem que o Sérgio [Nunes, membro fundador de Linda Martini] arranjou. Ele era o cinéfilo da banda [risos]. A curta-metragem era muito fixe, mas já não me lembro do nome.
[Hélio] Mas aquilo ficou a soar igual a outras coisas.
[André] Não sei se tivemos a ideia de Linda Martini ser em português para fugir do pós-rock e depois acabámos a arranjar um sample fixe, neste caso da “FMI”, para a “Partir Para Ficar”.
[Hélio] Na altura, achei que cantar em português era uma péssima decisão.
[André] E a Cláudia também não era grande fã da ideia. Lembro-me dessas conversas.
[Hélio] Achávamos que existia a possibilidade de alienarmos as pessoas que nos seguiam do hardcore e do pós-hardcore. Se cantássemos em português, tínhamos medo de perder essa malta. Não sabemos como poderia ter corrido se tivéssemos cantado em inglês, mas se calhar ainda bem que não o fizemos.