LIBRA é uma “mulher numa missão” — assim o proclama em “SPELLS”, num áspero e impiedoso desfile de barras dirigidas a quem um dia achou que lhe podia silenciar a voz, roubar a força, a autoestima ou até a espiritualidade. Naquele que é o primeiro avanço do seu álbum de estreia, a cantora — que agora também podemos chamar de rapper — dispara sem hesitações contra os bad boys de fachada, homens de ego frágil disfarçado de virilidade e que tão confortáveis se sentem num ambiente musical poluído de masculinidade tóxica e tantas vezes relativizada. O alvo é evidente do início ao fim, e o golpe final certeiro, mesmo ao cair do pano: “I’m more than ready / I know of sorrow and I know war / My aim is deadly / Don’t step to me if you can’t compete / Kim Yeji.”
Mas “SPELLS” não é apenas uma resposta — é também um momento de afirmação artística, onde LIBRA assume o rap consciente como terreno de exploração lírica, vocal e sonora, antecipando um álbum onde a palavra será central. O caminho até aqui não foi fácil, demorou tempo, mas revelou-se inevitável. Até porque, como aqui nos revela, há demasiadas coisas que tem para dizer e que não poderiam ser ditas apenas a cantar. É nas barras que agora encontra o espaço e o tempo necessários para expressar e traduzir a sua raiva e a sua força — não apenas como exercício individual, mas como manifesto coletivo, em nome das que vieram antes, das que ainda hesitam e das que estão por vir. A todas elas envia um abraço, a todas elas lembra que não estão sozinhas.
Sobre o álbum, LIBRA prefere manter o mistério, sem revelar demasiado para não estragar as surpresas. Para já, conta-nos que foi maioritariamente produzido por Tayob Juskow, que será um manifesto de 13 capítulos e que se apresenta como um disco de rap consciente. A avaliar pelos feitiços lançados, não temos dúvidas de que será um dos acontecimentos do ano.
“SPELLS” é o single de avanço do teu álbum de estreia, um gesto de afirmação da tua identidade artística e um desafio aos preconceitos sobre o lugar que ocupas no rap e no meio do hip hop. Que “feitiço” quiseste lançar com esta música e por que razão a escolheste como primeiro avanço do álbum?
A “SPELLS” é uma faixa super importante para mim porque marca o momento em que me afirmo enquanto artista e enquanto mulher. Eu sou uma filha do hip hop, sempre ouvi mais hip hop do que outro género de música qualquer. Sempre quis fazer rap, no entanto não me sentia confiante o suficiente para isso. O rap continua a ser visto como masculino, tanto que ouvimos falar em “rap feminino” como se agora existisse um novo género… E não! Tudo é rap, não existe rap feminino… Esta perpetuação da ideia de que o rap bem feito é feito por homens faz com quem as mulheres não se sintam sequer capazes de tentar. Foi precisamente isso que me prendeu durante este tempo todo. Eu tenho tanto para dizer que não podia dizê-lo a cantar. Precisei de começar a fazer rap para conseguir explicar tudo o que tenho para dizer. A “SPELLS” nasceu para me provar a mim mesma que este lugar também é meu e de todas as outras mulheres que o queiram ocupar.
Logo nos primeiros versos da música, desafias diretamente aqueles que duvidaram do teu percurso, interpelando-os com a pergunta: “What do you think I am made of?” Quais têm sido os principais obstáculos que tens enfrentado e de que forma te inspiraram, emocional e esteticamente, na composição desta música?
A “SPELLS” é de facto uma resposta a várias provocações que me foram feitas por colegas homens do meio, que me queriam convencer de que o hip hop não era para mim. Algumas vezes aconteceu ser em resposta a situações em que o que estava em cima da mesa era mais do que música. Eu não me quereria envolver intimamente com estas pessoas, respondi a avanços com não’s claros e o que recebi foi ódio. Ou seja, esta retórica de que o rap não era para mim, sendo algo que eu queria muito… Era a resposta de egos frágeis e feridos porque receberam um não. Foi crescendo em mim uma força e uma raiva que se traduziu na composição desta música. Porque de facto, eu refleti muito sobre o porquê destas pessoas me estarem a mandar abaixo. Seria a resposta básica de um típico homem de ego frágil que responde a um não com ódio? Seria o medo de eu ser melhor do que eles na área deles? Bom, talvez. No fim do dia ainda são muitos os homens que não sabem lidar com o facto das mulheres poderem ocupar os mesmos espaços que eles. E o desafio aqui é termos lucidez suficiente para conseguirmos ver que somos tão merecedoras de ocupar estes “territórios masculinos” quanto eles e transformá-los em “territórios de todos”.
Sendo rapper, cantora e compositora, como equilibras esses diferentes lados na tua criação musical? Há algum desses papéis que sentes ser mais desafiador nesta fase do teu percurso e para a música que te preparas para lançar?
Acho que nunca pensei sequer sobre isso. As minhas músicas surgem em resposta ao que me acontece e os elementos vão caindo onde têm de cair. Se me apetece cantar eu canto, se me apetece rimar eu rimo. Consegues perceber isso através da “SPELLS”. A estrutura não tem nada de típico e não foi propriamente pensada. Foi escrita assim e assim ficou. Claro que o rap é o elemento mais desafiante, tendo em conta que é o que faço há menos tempo, logo é o que menos domino. No entanto, é o que me dá mais gozo. O que mais gosto de fazer é escrever. O meu compromisso é com a palavra, com a mensagem, por isso também é o que tento cuidar mais e aprimorar mais.
A tua música tem procurado conjugar elementos do conscious rap e do R&B, embora explores nuances que atravessam o neo-soul, diferentes sonoridades urbanas e distintas formas de entrega lírica e vocal. O álbum que se avizinha continua essa exploração sonora ou trará novos caminhos e influências?
O álbum que aí vem é um álbum de rap consciente. O hip hop domina o álbum e a sonoridade é bastante diferente do que ouviram sob meu nome até agora. Esses elementos de que falas estão presentes sim, mas diria que são adereços. O corpo do álbum é conscious rap.
Ao longo do teu percurso, tens falado sobre o equilíbrio entre a busca pela ancestralidade, a consciência social e política e a necessidade de autoconhecimento como forma de emancipação. De que forma esses elementos se refletem hoje na tua escrita e na tua forma de compor e estar na música?
Escrever música para mim é um ato espiritual. A música que ouves ressoa na tua cabeça como um feitiço, lá está. Nos últimos 2 anos explorei muito o que sou e o que faço aqui. Percebi o que a espiritualidade significa para mim e de que forma me conecto com ela. Percebi que a minha conexão com o meu feminino estava meio que interrompida devido à forma como me foi ensinado o que é ser mulher. Este despertar, combinado com tudo o que foi acontecendo a nível político e social no que toca aos direitos das mulheres, tanto no nosso país como a nível internacional, levou-me a escrever sobre tudo o que estava a sentir e tudo o que achava que tinha de ser dito sobre toda esta injustiça que nos assombra. Pensei muito sobre todas as mulheres que viveram antes de mim, tudo o que passaram e alcançaram, e senti que era minha obrigação dar-lhes voz, a elas e a mim, da melhor forma que sei, através de música.
O que podes desvendar sobre o álbum? Já tem nome? Data de lançamento? Podes adiantar quem encontraremos na lista de produtores? O que podemos esperar para 2025?
Não posso ainda adiantar muito sobre o álbum… Apenas que foi maioritariamente produzido pelo Tayob Juskow e que é uma espécie de manifesto que se estende por 13 capítulos. Em breve teremos mais novidades! Até lá temos a “SPELLS”.