“Here come the planes”, alertava Laurie Anderson com um tom premonitório em “O Superman”, o sucesso improvável que a levou a atingir o 2º lugar das tabelas britânicas em 1981. “You can come as you are, but pay as you go”, insistia, nessa mesma música, mais adiante. Um bilhete só de ida até território inexplorado, pontuado pelas revoluções digitais do século XX. 43 anos depois, o fascínio pela aviação volta a ligar a autora de Big Science a uma das suas obras mais inspiradas: Amelia, editado nos metros finais de agosto pela Nonesuch, é um relato ficcionado dos últimos 44 dias da histórica aviadora Amelia Earhart, contado ao longo de 22 curtas canções e cerca de 35 minutos de jazz e feitiçaria electroacústica.
O desfecho é conhecido: Amelia Earhart, importante defensora da luta pela igualdade de género, morreu a 2 de julho de 1937, quando o avião que pilotava com o navegador Fred Noonan se despenhou sobre o Pacífico. É essa viagem interrompida que Anderson, nascida em 1947, dez anos depois desse fatídico incidente, procura reconstituir no seu novo disco, um projeto iniciado no virar do milénio, em 2000, com um espetáculo para orquestra no Carnegie Hall. À semelhança do antecessor Landfall, de 2018, Anderson volta a rodear-se da Orquestra Filarmónica de Brno, conduzida uma vez mais pelo maestro Dennis Russell Davies, bem como de um rol de ilustres colaboradores que inclui a Marc Ribot, Kenny Wollesen e ANOHNI, oráculo que atravessa o disco em cinco dos momentos de maior tensão, anunciando as diversas paragens na ambiciosa jornada da aviadora.
A narrativa é diarística, mas na rota de Amelia há escalas planeadas nas ilhas de Shakespeare (“Full fathom five thy father lies”) e Allen Ginsberg (“America, why are your libraries full of tears?”). Charles Lindbergh, homólogo masculino de Earhart e o rival maior da aviadora na luta pelo primeiro voo transatlântico a solo, é um dos visados no tema “Flying Into The Sun” (“Lady Lindy”, grita-se a dado momento, sob um pano de sumptuosas orquestrações de câmara). Um mar de interrogações sobre género, tecnologia e o estado da civilização que partem das comunicações de Earhart com a Guarda Costeira norte-americana, momentos antes do desfecho final quando esta tentava aterrar na pequena ilha de Howland, mas também em entradas do seu diário e em telegramas enviados ao marido (“ela era a blogger original”, sugere Anderson numa entrevista recentemente conduzida por Dave Simpson ao The Guardian).
“This modern world of science and invention is of particular interest to women, for the lives of women who have been more affected by its new horizon and those of any other group”, admitia Earhart, numa emissão de rádio em 1935. O trecho, que Anderson incluiu no tema “This Modern World”, estrategicamente posicionado ao centro do alinhamento, representa um dos raros momentos em que a voz da aviadora se faz ouvir no disco. Um interessante contraponto com as vinhetas impressionistas de Anderson, espelho refletor da coragem e ambição que permeiam a sua obra.
Regressemos a 1981: “Here come the planes. So you better get ready”, voz cantada e quase falada, vinte anos antes do atentado às Torres Gémeas. A tragédia, constatamos, continua a percorrer a obra de Laurie Anderson, um dos últimos redutos das vanguardas norte-americanas, arauto da nova civilização que tem na história de Amelia Earhart um claro antecessor espiritual: intrépida, destemida e sem medo de mergulhar no desconhecido, movida por um desejo indomável de inspirar, desafiar e transformar.