Negro, negro, negro, obscuro, sem luz, nocturno, sombrio, negro, negro, negro, abissal, profundo, denso, duro, negro, negro, negro, dorido, sofrido, magoado… Negro, negro, negro. E profundamente belo. Foi assim o concerto de Keeley Forsyth, na passada sexta-feira (28 de Março), na Culturgest, em Lisboa (a artista britânica passou igualmente pelo Theatro Circo, em Braga, no dia seguinte, sábado). Uma hora de máxima intensidade emocional e de quase total ausência de luz.
Acompanhada por Ross Downes em teclados e demais névoa electrónica e Matthew Bourne no mais espectral dos pianos, Keeley Forsyth interpretou matéria prima de The Hollow, o extraordinário álbum que lançou em 2024. A palavra “interpretou” ganha aqui a sua correcta dimensão performativa, já que Keeley, em palco, de largo fato negro vestido e cabelo escorrido que lhe cobre as feições, não abdica dos consideráveis recursos que emprega quando trabalha como actriz. A sua música parece nascer-lhe das entranhas, do corpo, e tem uma clara dimensão física que a leva a contorcer-se numa dança de câmara lenta que parece transformar o que poderiam ser espasmos numa coreografia da dor. O facto de o palco estar banhado numa espessa escuridão contribui para uma sensação de voyeurismo, como se estivéssemos a testemunhar o sofrimento de alguém do lado de lá de uma janela, do lado de lá de um buraco de fechadura. A inexistência de qualquer interacção com o público sublinha essa barreira que parece existir e Keeley actua como se tivesse em frente uma quarta parede, como se nós não estivéssemos ali, mesmo à sua frente.
A música de The Hollow faz-se de drones, dos sons da orquestra durante a afinação, de uma lenta derrapagem harmónica que admite algumas das marcas do minimalismo americano como ténues referências. E sobre essa económica matéria, a sua voz, grave e séria, entrega-nos legendas de gravidade infinita feitas canções que parecem despontar da dor com que a vida nos pode a qualquer momento confrontar. Há passagens em que temos dificuldade em perceber se canta ou declama, outras em que as palavras se entrelaçam em ininteligíveis nós vociferados. E sentimos culpa por reconhecer beleza em tal quadro, como acontece com algumas das obras de Caravaggio.
Como os mais perturbadores filmes ou aqueles livros que nos arrancam pedaços de dentro a cada página, a experiência de um concerto de Keeley Forsyth não é leve ou agradável ou satisfatória. Mas a actriz-cantora parece ter encontrado a duração perfeita para essa experiência, porque ao final de uma hora sentimo-nos como se estivéssemos finalmente a assomar à superfície após um mergulho demasiado longo e é com sofreguidão que aceitamos a luz do exterior, com algum alívio que acolhemos o ruído da cidade que nos aguarda no exterior, sinais da vida que reconhecemos como nossa, e não a daquele ser torturado que acabámos de aplaudir. Dizer que foi absolutamente incrível e arrebatador é dizer muito pouco. Mas foi mesmo.