O rapper com o mais “ingooglável” nome de todos os rappers — uma alma perdida no multiverso —, desapareceu agora aos 52 anos. Desconhece-se a causa da morte, mas sabe-se já que esta é uma perda irremediável — para o hip hop, para o lado mais consciente de toda a música, para a arte de colar pensamentos a melodias e cadências.
A família usou o Instagram para comunicar a morte de Kaseem Ryan, de seu verdadeiro nome, e pediu que se respeitasse a sua privacidade neste momento de dor. “Nascido e criado em Brownsville, Brooklyn, Ka viveu uma vida de serviço à sua cidade, à sua comunidade e à sua música”, escreve-se. “Como veterano de 20 anos do Corpo de Bombeiros de Nova Iorque, pôs a sua vida em risco para proteger os seus concidadãos. Ka subiu ao posto de capitão do FDNY e foi um dos primeiros a responder no dia 11 de setembro de 2001, durante os ataques ao World Trade Center. Deixa um legado extraordinário como artista discográfico, incluindo onze notáveis álbuns a solo lançados por si próprio”.
Essa entrega nobre à defesa de uma cidade não o poupou a críticas. Em 2016, o tablóide New York Post dirigiu um injusto ataque a Ka, perguntando como era possível que um comandante de um quartel de bombeiros fosse igualmente um rapper, questionando, no fundo, como era possível que alguém que se dedicava ao serviço público tivesse também necessidade de exprimir as suas mais fundas reflexões, dúvidas, ansiedades e observações do lado mais negro da vida na grande cidade. Que o fizesse com invulgar verve poética era menos importante que o facto de, nalguns dos seus temas, o também capitão dos bombeiros fizesse um retrato menos favorável da polícia. Chama-se a isso ser negro na América.
No texto que em 2016 dedicamos a relatar o caso do New York Post, escreveu-se a dada altura: “No tema ‘$’ Ka garante que pode fazer dinheiro, mas não permite que o dinheiro o faça a ele. E rappa: ‘Watch me blueprint rec centers / I’m trying to inspire.’ O contrário, precisamente, do retrato que o tablóide procura pintar: pergunta-se, na peça do Post, como pode afinal de contas um capitão dos bombeiros ser igualmente um rapper, como se fossem duas actividades opostas, incompatíveis. No fundo, o jornalista do Post, como outras vozes conservadoras que um pouco por todo o mundo procuram pintar o hip hop — ou qualquer outra cultura juvenil que possa parecer incompreensível vista do alto da idade adulta imersa em trabalho e responsabilidades — como uma cultura amoral, vê as palavras no discurso poético de Ka mas isenta-se de as analisar e descodificar. E essa é a ideia mais errada de todas. Procurar descrever Ka como um ser amoral, que combate fogos de dia e escreve rimas de incitamento à violência nas folgas, é simplesmente ridículo. Porque Ka é um dos grilos falantes da cultura, uma consciência activa, um rapper que pega no lado mais profundo dos Wu-Tang, de Nas, no lado mais místico de MF Doom, e embala tudo numa aura que não tem propósitos comerciais, que não procura outra coisa que não seja a sua própria iluminação e redenção. Em Ka o hip hop é um remédio, uma forma de cura, uma força benigna, não a doença. Ka rima ao espelho, para si mesmo. Mas tem a inteligência de nos deixar ouvir. Porque pode ser que alguém aprenda. A esperança foi sempre coisa bonita”.
Essa elevação moral, esse espírito de dedicação, de entrega sem esperar nada em troca, de missão que se abraça de forma absolutamente desinteressada é exactamente o que ajuda a explicar o tranquilo impacto que a arte de Ka sempre teve. Ele é de facto o rapper favorito de todos os nossos rappers favoritos, a bússola moral que nos aponta o norte e nos permite encontrar o caminho. Mas o mais incrível é que tudo isso foi sempre feito com alguma da melhor música que o hip hop nos deu nos últimos 10 anos.
As raízes da carreira de Ka estendem-se bem para lá da última e mais apurada década do seu percurso, no entanto. Ainda na primeira metade dos anos 90, o nativo de Brownsville, Brooklyn, integrou o colectivo Natural Elements que lançou The EP, hoje uma peça de colecção, de forma independente. Os Nightbreed foram o capítulo seguinte no seu singular trajecto.
“Depois de Natural Elements, tirei algum tempo e juntei-me a um grupo com o meu amigo Kev. O nome de rap dele era Oddbrawl The Lyrical Juggernaut, e ele era mesmo isso. Um dos melhores rappers com quem já tive contacto. Era o meu melhor amigo, mas também tinha um talento fenomenal e aprendi muito com ele. Ensinou-me muito, só a trabalhar em estilos diferentes — ele era um génio no que me diz respeito. Ele rimava de trás para a frente e fazia todo o tipo de merdas que nem sequer passavam pela minha cabeça fazer. Tínhamos um grupo chamado Nightbreed, nunca lançámos um álbum, mas lançámos um single, ‘2 Roads Out The Ghetto’. Tentámos assinar contrato, mas não conseguimos. Estávamos em meados dos anos 90 e, na altura, era o que algumas pessoas ainda hoje descrevem como a ‘Golden Age’. Nesse tempo, havia tanto talento que podíamos perder-nos, mesmo que fôssemos dope. Podia-se escolher qualquer um entre toda a gente que eles seriam dope, por isso perdemo-nos na confusão. Sentimos que talvez devêssemos arranjar emprego, ser homens de família e coisas desse género. Foi isso que fizemos, despedimo-nos. Foi uma decisão difícil porque ambos adorávamos aquilo. Dissemos que nos íamos demitir, mas como artistas, as letras estão sempre a chegar até nós, por isso todos os dias me debatia se devia estar a fazer isto, se não devia estar a fazer isto. Lutar contra mim próprio porque estas coisas são sonhos de gente jovem. Agora sou mais velho, tenho de ser responsável, fazer o que toda a gente faz: ir trabalhar e viver a vida até morrer, e eu não conseguia fazê-lo. Sentia que estava a morrer todos os dias, mas não conseguia. Sentia-me como se estivesse a morrer todos os dias, não estava a rimar e ouvia merdas na rádio como… sabes, era difícil, queria ouvir a minha própria música. Felizmente, tive o apoio da família e de amigos maravilhosos que diziam: ‘Faz isso, que se lixe a procura de um contrato discográfico’. E eu fi-lo. Foi preciso muita coragem, porque agora sou mais velho, por isso sabes que, em determinada altura, o diss era sobre ti com 30/40 anos e a rimar. Eram disses, nem sequer importava se eras dope ou não. Era só olhar para a tua idade e dizer ‘olha para este preto estúpido que ainda rima’. Por isso, tive de pôr essa merda de lado e dizer ‘que se lixe o que as pessoas dizem, vou fazer a minha cena’ e foi o que fiz”.
O relato de Ka espelha já a vontade de ir contra a corrente, de reclamar o simples acto de rimar mesmo que alguns lados da cultura pudessem entender o rap como um “desporto” de gente jovem. A mulher de Ka, Mimi Valdés, que chegou a ser editora-chefe da revista Vibe, que sempre acompanhou de perto a cena hip hop e a cultura pop-afro-americana, foi quem mais o encorajou a voltar a pegar no microfone. E o resultado disso foi o clássico Iron Works, álbum que em 2008 recolocou Ka no tabuleiro do hip hop, com força suficiente para que GZA, membro dos Wu-Tang Clan, reparasse em si e o chamasse para um feat. em Pro Tools, trabalho lançado igualmente em 2008. O título Iron Works passou depois a designar o selo através do qual Ka lançou todos os seus trabalhos posteriores, recusando dessa forma integrar o lado mais competitivo do que por essa altura já era uma verdadeira indústria, facto que lhe permitiu defender com unhas e dentes a sua independência. Ka apostava tudo na arte e recusava-se a fazer parte do “jogo”.
The Night’s Gambit, trabalho que em 2013 sucedeu a Grief Pedigree do ano anterior, foi o primeiro marco real no refinamento da particular visão artística de Ka, o primeiro pilar de um estilo que o próprio rapper aprimorou em modo solitário: rimas densamente poéticas, honestas, mas amargas, sobre beats de espessura cinemática, carregados de drama e com tempos lentos.
“Honor Killed The Samurai, o novo álbum de Ka, sucessor de The Night’s Gambit, de 2013, é uma espécie de haiku: em parte, a tradicional forma de micro-poesia japonesa define-se pela sua concisão, claro, mas também por um apertado conjunto de regras que quase torna as palavras em peças de um complexo xadrez semântico, de uma profunda economia, mas também de alcance vasto”, escreveu-se aqui, no Rimas e Batidas, na introdução à recensão do fabuloso álbum de Ka de 2016.
“Como os samples que elege para servirem de cenário à sua acção poética, as palavras que Ka recita (seria errado escrever “cospe”…) são ponderadas, contidas, nem uma sílaba a mais, fora do lugar. A disciplina de contenção que parece ser comum a tantas correntes artísticas japonesas — da música ao design, da poesia ao cinema — inspira igualmente Ka que tem vindo a depurar a sua arte desde que se estreou em nome próprio em 2008 com Iron Woks, depois de uns primeiros passos falhados como parte dos Natural Elements que fizeram breve carreira nos anos 90 conseguindo uma inconsequente ligação à Tommy Boy (foram entretanto recuperados pela etiqueta que funciona como guardiã do lado menos celebrado da golden age, a Chopped Herring Records). Hoje, Ka rima como se cada palavra fosse preciosa, como se cada palavra fosse uma rara bala numa batalha que é preciso vencer. Não há por aqui rajadas verbais, antes calculados golpes de uma espada afiada que é o seu intelecto”.
Houve uma pausa longa entre Honor Killed The Samurai e o projecto seguinte, Descendants of Cain, álbum que saiu em 2020. Entre ambos, Ka ainda criou, juntamente com Animoss, o projecto pontual Hermit and The Recluse. No pandémico ano de 2021, o rapper de Brownsville lançou A Martyr’s Reward, outro marco na sua discografia. A linha de continuidade que se percebe logo nos títulos dos diferentes registos — honra, noite, temas bíblicos e religiosos — é um espelho da mente de Ka, uma forma rápida de entrar dentro do seu universo filosófico.
Em 2021, a propósito de A Martyr’s Reward, escrevia-se por aqui: “Esta (algo relativa…) urgência pode ter sido gerada pelo confinamento, mas a verdade é que olhando para a vida — ou pelo menos para a “aura” — de Ka, depressa se conclui que este é um artista que tem vivido em isolamento, facto, aliás, claramente espelhado nos títulos dos seus últimos trabalhos: o samurai, o eremita, o recluso, o mártir e até a bíblica referência a Caim são figuras solitárias, espectrais, que vivem sobretudo dentro das suas próprias cabeças, carregando o peso da honra, da culpa, do sacrifício e da redenção num mundo perdido noutros labirintos”. Nesse mesmo texto, procurava-se igualmente explicar o inexplicável: os complexos e difusos contornos da arte de Ka.
“Há dois pilares no lado formal da arte de Ka: a voz e o seu singular flow e as molduras instrumentais que elege para dispor as suas rimas. Sobre a voz: há um tom declamatório e confessional que distingue Ka de praticamente todos os outros rappers, como se não fosse o som gerado pelas suas cordas vocais, antes o pensamento daquilo que escutamos gravado nestes trabalhos. Se fizerem uma novela gráfica inspirada na carreira de Ka, as suas rimas terão que surgir por cima da cabeça no balão que indica pensamento, com as bolinhas em vez da seta que codifica fala.
E depois há a extraordinária música que acompanha esses introspectivos discursos. Habituado a coleccionar matéria harmónica em obras de gente tão díspar quanto Yusef Lateef, Wishbone Ash, Bo Hansson, Osanna, The Three Degrees, Buffy Sainte-Marie, Black Sabbath, Arthur Conley, Buddy Miles ou Clarence Carter e Brook Benton, Kaseem Ryan não esconde a sua predilecção pelo ‘som’ dos anos 70, quando o ar existente nos estúdios impregnava as gravações de uma dimensão espectral muito particular, repleta de poeira harmónica que de facto parece capaz de envolver a voz de Ka como uma manta de veludo aural. Neste álbum, arranca-se com blues “ry-cooderiano”, avança-se sobre figuras circulares de piano, fragmentos orquestrais, cadências psicadélicas geradas por órgãos e electricidade épica subtraída ao que soam a bandas sonoras de obscuros policiais italianos (vulgo library music). Ausentes continuam as baterias mais vincadas, com o ritmo a ser mais sugerido do que claramente pronunciado, estética drumless que Ka aperfeiçoou até se tornar uma marca identitária”.
Em 2022 Ka anunciou o lançamento de dois novos trabalhos, Languish Arts e Woeful Studies. Na notícia aqui publicada, dava-se conta dos recursos humanos usados nesses lançamentos: “O nono álbum de Ka foi gravado por Christopher Pummill no Studio City Sound na Califórnia; “Unhinged” foi produzida por Animoss e conta com a participação de Chuck Strangers enquanto “Still Holding” tem instrumental de Preservation e colaborações de Joi e GoneToHeaven; a fotografia na capa é da autoria de Freaktography. Nada mais se sabe, no entanto, sobre a décima entrada na conta discográfica pessoal do rapper de Brooklyn que é igualmente comandante de um quartel de bombeiros”.
Ka nunca se mostrou muito interessado em retirar outros dividendos da sua própria arte que não fossem o alívio de expressar o que lhe assaltava os pensamentos. Toda a forma, complicada e obtusa, como foi distribuindo o seu trabalho parecia dizer que não era fama, reconhecimento ou alcance aquilo que buscava, antes uma espécie de terapia através da arte. Pouco dado a entrevistas ou a grandes explicações, tudo o que do lado de cá, de quem escutava a sua música, se podia fazer era especular. Mas pouco importam as razões para Ka fazer o que fazia da forma como fazia. A música que registou tem um valor desmedido e não será preciso puxar muito pela imaginação para se perceber que a escola que fundou gerará ainda muitos descendentes.
The Thief Next to Jesus, já de 2024, foi o seu último projecto. A propósito desse registo editado sem aviso prévio — como quase sempre aconteceu no caso de Ka —, Matthew Ritchie escreveu na Pitchfork uma recensão naturalmente elogiosa: “Há muito que os álbuns de Ka se baseiam em alegorias bíblicas. O seu 11º álbum a solo parece uma extensão espiritual do seu lançamento de 2019, Descendants of Cain, onde invocou a história do irmão de Abel para se retratar como tendo sido abandonado pelo mundo. Desta vez, invoca a história dos ladrões na cruz: ambos troçaram de Jesus, mas um arrependeu-se, recebendo a salvação no último minuto antes de ser crucificado. O rapper sabe o que significa ver a redenção escapar; deixado de lado por uma religião que prega o amor eterno, ele procura uma nova relação com a espiritualidade. A franqueza de Ka é o seu superpoder, já que ele consegue escrever alguns dos textos mais claros da sua carreira recente”.
Não sabemos se terá ficado música gravada e ainda não editada, embora Ka parecesse ser o tipo de artista cuja vida “civil” lhe tomaria demasiado tempo para que pudesse ir gravando só para ver o que colava. Ele sempre soou como o tipo de artista que entende a arte como uma matéria preciosa, que precisa de ser cuidada. Os 11 discos que gravou e editou de forma independente vão permanecer como um dos mais sérios documentos da arte das rimas e das batidas e Ka poderá até estar neste momento a trocar ideias com MF DOOM sob o olhar atento de J Dilla. Nunca se sabe…