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Fotografia: Maria João Salgado / Theatro Circo
Publicado a: 17/07/2024

Trio de Amaro Freitas para fechar o ciclo.

Julho é de Jazz’24 — Dia 6: um piano multiverso de encantamento

Fotografia: Maria João Salgado / Theatro Circo
Publicado a: 17/07/2024

O ciclo de jazz em Braga encontra o seu derradeiro concerto — foram sete apresentações repartidas pelos dois primeiros finais de semana, a marcar este julho que se assume verdadeiramente jazzístico também noutros mais lugares. Em Braga vai-se vincando uma programação muito relevante, que incorpora entre residências artísticas, estreias e novos sentidos desta linguagem musical uma perspicaz e irreverente identidade que muito importa reter no calendário de concertos. Para encerrar actividades, o Julho é de Jazz contou com o muito celebrado pianista pernambucano Amaro Freitas, na forma de trio e no centenário Theatro Circo

Amaro Freitas tem ecoado verdadeiramente por todos os lados nos últimos tempos, desde as passagens por palcos bem perto e recentes, como desde nas palavras. Dele se tem escrito com entusiasmo crescente. No New York Times teceram-se elogiosos reparos ao seu ultimo disco Y’Y, em que Carolina Abbott Galvão transcreve as ideia que explicam o fascínio Amaro nas palavras do próprio. “É assim: Era uma vez uma viola brasileira enterrada no leito do rio. A partir daquele momento, quem bebesse do riacho se tornaria poeta” — a propósito do rio Pajeú que atravessa o estado de Pernambuco. Amaro que encanta à primeira quem o escuta, e foi desse impacto sentido que escreveu Rui Miguel Abreu sobre a arte em piano solo que escutou em 2022 aquando do Novembro Jazz em S. João da Madeira: “É ritmicamente complexa, exuberante até, e melodicamente poética.” Experiência que, e uma vez sentida se deseja ver repetida, até num sentido terapêutico. Março último foi a vez do palco do Belém SoundCheck em Lisboa se transformar, onde no local “cresceu, descendo do tecto e das paredes, subindo debaixo dos nossos pés, espontânea e instantaneamente, uma folhagem densa e tropical em múltiplos tons de verde e amarelo. Mais ainda: aves exóticas do paraíso, invisíveis ao princípio, fizeram ouvir o seu canto, exibindo cores vibrantes mal os nossos olhos se habituaram à penumbra intermitente que ocorre quando o sol se contorce preguiçoso ao procurar furar por entre as copas das árvores.” Isto nas palavras do vivido por lá, levando Rui Miguel Abreu, outra vez “enfeitiçado”, a referir-se ao poder de encantamento do piano de Amaro Freitas. Esse encantamento vindo desse piano que transcreve as vivências imergidas na Amazónia multicultural e experienciadas por Amaro junto da comunidade Sateré-Mawé — uma das que sobreviveu à devastação colonizadora e que resiste à erosão neoliberal e cultural de hoje. Essa água ou rio — Y’Y no idioma sateré-mawé — corre pela música escutada e levou Sofia Rajado ao encanto e mistério, assumindo que o “encontro com o novo disco do pianista é assim [ouvido] — simples e carregado de uma energia que vem não se sabe de onde”. 

Em placo, Amaro Freitas surge acompanhado por François Morin para a bateria e Aniel Someillan para o contrabaixo. O cubano Someillan que esteve nas gravações do último e elogiado disco de Amaro. É possível que estejamos — ainda que sentados — a caminho de vários mundos, os mundos que Amaro transporta na sua viagem, enquanto compositor e enquanto ser humano vivendo em conexão com a música e as ancestrais culturas nesta complexa modernidade, entre África e Europa, entre a Amazônia dos Sataré-Mawé e o Brasil de Nascimento, o seu e o de Milton. Amaro tem um dom, uma habilidade notável de ter dois mecanismos independentes dentro de si, a mão esquerda e a mão direita. Isso permite assumir dois “eus” autorais, duas expressões, dois mundos, mas Amaro acrescenta outras mais versáteis capacidades criativas. As primeiras músicas revelam como que uma ancestralidade moderna, um cânone incorporado desde o jazz de Thelonius Monk e Chick Corea aos ritmos orgânicos vindos da água e das sementes, num caudal que busca um desaguar mais além da modernidade trazida por John Cage à musica do piano preparado. Os primeiros temas escutados fazem o embalo mais que perfeito para essa narrativa de viagem entre os mundos de Amaro. Chegados a “Nascimento” onde transborda de sonoridade ao piano que lhe cabe no exercício confesso de homenagem devota à passagem de Milton Nascimento, e que se pode retomar sempre que se deseje no álbum Sankofa de Amaro. Há uma rendição que inunda a plateia, que quer aplaudir a ambos os artistas, os de palco e os que no palco se evocam. Mãos cheias de tudo isso. “Dança dos Martelos” é o momento, o cume da noite, o tema que podia ter perdurado — que ainda ecoa passado dias do vivido — o piano solo de Amaro a valer por toda uma cultura moderna e ancestral, onde cabemos nós, que nunca entrámos e apenas imaginamos a Amazônia e cabem os que nela habitam e a cuidam e nunca vieram ao nosso outro mundo. Esse lugar verdadeiramente comum — contemporâneo — de comunhão entre as linguagens que se respeitam na e pela partilha. É disso que trata esta dança, no dar de mãos, como que em roda para celebrar. Um piano que responde ao maracatu, à ciranda ou ao bumba-meu-boi. Um piano envolto pelo xamanismo sonoro, capaz ele próprio de fazer parte ritual no processo. Estamos perante uma vivência contemporânea, não cristalizada e imutável, antes dinâmica na medida do sonhado, do vivido e no mais que pretendido e necessário. Esta “Dança dos Martelos” é transformadora, tem motor efectivo no dançar maquinal das componentes martelantes das cordas, mas assume um protagonismo transcendente. Preparado vai estando o piano às mãos de Amaro — sementes, madeiras e pregadores, dos que não ferem a alma (das cordas) — mas mais preparados vamos estando ao ouvir os ambientes polirrítmicos que tanto descrevem o mundo do piano afeiçoado com os elementos da Amazónia como através deles corporizada é — em modo — a Amazônia que assim tem voz, que dança e nos fala em celebração. Em seguida Amaro tinha em “Gloriosa” o recobro, para amainar do que havíamos colectivamente vivido, e recobrar o amor devoto a Rosilda, sua mãe. Para isso contou com as cordas vocais dos que mais que preparados na plateia souberam afinar com certidão a toada grave e doce à melodia pedida desde as cordas do piano. Amaro estava maravilhado, mas não mais — seguramente — que a encantada plateia pelo músico de encantar. 

Afinal, estava-se “em conexão, a celebrar a música” como Amaro amiúde referiu. E mais que um final que invariavelmente se aproximava desta junção coesa, entre músicos e plateia, cabia a cada um assumir um definitivo final do estado encantatório desta música. Esse desligar pode (e deve) apenas esperar por um retomar num próximo encontro, e nessa próxima vez continuar sob o encanto desse piano. Diremos em remate: Poxa Amaro, isso foi bom demais, mas quero mais, muito mais. E nessa próxima — estamos certos — haverá esse piano preparado só para nós, de encantar!


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