A surpresa é um risco, a música livre e criativa comporta também um lugar incerto. Assistir a um concerto de jazz contemporâneo, de uma formação que se estreia em palco entre nós, e da qual propositadamente não se quis ouvir um trecho de música previamente gravada, é deixar tudo no risco do primeiro encontro, no palco. Viver sem risco é à partida monótono — é confortável, mas menos estimulante e possivelmente estagnante. O lugar da surpresa é antes um lugar da emoção, o risco é também, noutro sentido, a linha que define, que permite traçar ideias — é por isso que o risco é a primeira imagem, o primeiro compromisso em tantos casos, como em arquitectura.
Marie Krüttli é uma pianista e compositora helvética que tem vindo a afirmar a sua expressão na música jazz preferencialmente na forma de trio. Em composições para piano, contrabaixo e bateria gravou em 2015 Kartapousse para a Konexx Records, Running After The Sun em 2017, e The Kind of Happy One em 2020, ambos para a editora berlinense QFTF — enigmática no nome, “Nobody knows what it means, but it’s provocative”. Mas foi o seu registo em piano solo, Transparence de 2023 para o prestigiado selo Intakt, que despertou a atenção de muitos para a sua música, como nos comentou o músico Luís Fernandes enquanto programador do ciclo Julho é de Jazz. Haverá sempre alguém que assuma o risco, que largue a centelha para o momento ter lugar. É por isso que um programador sendo músico arrisca, mas arrisca quase sempre melhor. E para voltar a escrever sobre trios “clássicos” de piano no jazz e o risco, este presente ano inscreve-se de especial relevância no que respeita a palcos portugueses. São já duas as estreias de dois desses trios de piano, contrabaixo e bateria que estão a redefinir a linguagem mais estabelecida e previsível — e sem risco — dessa instrumentação. O trio Enemy de Downes, Eldh e Maddren — hoje imprescindíveis — e agora o de Krüttli junto a Lukas Traxel (contrabaixo) e Gautier Garrigue (bateria). Destes músicos pode-se esperar o que amanhã se ouvirá, estão a riscar — leia-se a esboçar — o lugar do novo e fresco, no impulso criativo com as ferramentas de sempre.
O concerto teve lugar, ao contrário do previsto — e porque havia outro risco, meteorológico — no interior do gnration, na confortável blackbox. Melhor ainda do que o previsto, neste espaço foi possível ter com redobrada atenção a música vinda de palco — sem mais distracções — numa qualidade sonora irrepreensível. Krüttli, que prefere apresentar tudo o que há a dizer logo de uma vez, comenta a gratidão de virem tocar aqui e fazer a sua estreia neste contexto e que seremos livres de aplaudir mas “o concerto, que é uma oportunidade de escutar as ideias contidas no disco que será lançado lá para o Outono [pela Intakt], vai ser como um plano-sequência — sem cortes”. Fica-se de imediato com uma perspectiva cinéfila da expressão — e pensa-se no Cavalo de Turim de Béla Tarr, filme de grande envergadura e rodado sem cortes.
Krüttli ao piano, de verdade é uma maga a fazer poções sonoras, adicionando elementos à música que a vai tornando mais e mais complexa mas esclarecida, fresca e inovadora. O risco está na forma como vai acrescentando as partes que compõem o todo, e que se pressentem como ideias concretas, que estão maduradas em si. Faz um uso edificante no estilo, pela na repetição — aparente — dos motivos que a compõem. É afinal essa uma das mestrias das composições cíclicas, que vem desde os primeiros minimalistas na música até aos produtores na cultura hip hop. Mas Krüttli faz antes um uso de padrões num sentido evolutivo. A sua música progride baseada em ritmos precisos e ideias claramente estabelecidas, mas que são funcionais — e não estáticas —, são as premissas para a construção lógica, mas sem o lado formal, levam para o desconhecido e inesperado. É uma dimensão segura, pela técnica de mãos, mas instável pelo lugar incerto para que se viaja. Essa dimensão ambivalente é também confirmada pelo desempenho notável de um contrabaixista que em disco se assume no “upright bass” — que é o mesmo instrumento, sabemos disso — o que dá uma melhor ideia sonora da verticalidade e balanço que emana do seu tocar. O que nos levou parte do tempo de escuta a sentir a relação próxima ao que faz Petter Eldh no instrumento dos tons mais baixos. Traxel está nesse universo contemporâneo a reescrever o sentido de novos rumos do tempo nas cadências dos sulcos. Fez do momento, em que os companheiros em palco só o escutaram, um extraordinário solo que teve todos a acompanhá-lo no entusiasmo, tocando em acordes sucessivos riffs que elevou das cadeiras o tempo de muitos de nós. Krüttli tem em Traxel um cúmplice musical, de estúdio e de palco, desde a primeira hora na sua música. Tem sido antes, na (re)formulação do seu trio, a bateria o lugar mutante. Agora em palco, e como daqui a uns meses se ouvirá em disco, é Gautier Garrigue quem assume o risco das baquetas. Garrigue traz um perfume multifloral à música de Krüttli, é diverso e descritivo na técnica dos timbres e imprime ascensões motoras verdadeiramente explosivas quando é esse o momento, destemido no risco.
Em definitivo, esta música que se escuta em palco é como uma edificação vulcânica. Como nos vulcões, a estrutura é em camadas que sedimentam os fragmentos vindos das emanações anteriores e vão permitindo edificar o cone, em altura e robustez. E são tão altas e instáveis quanto maior for a frequência da actividade — quantas mais explosões houver mais disponibilidade de material haverá para fazer subir a estrutura. E porque ainda estamos sob o efeito do encanto do primeiro encontro, soubemos que — pela curiosidade que nos move —, tão a propósito, o novo disco do trio de Marie Krüttli se vai chamar Scoria — nome dado à cinza vulcânica que se acumula nas bordaduras dos vulcões explosivos.