pub

Fotografia: Hugo Sousa / gnration & Maria João Salgado / Theatro Circo
Publicado a: 08/07/2024

Dos estreantes aos ícones.

Julho é de Jazz’24 — Dia 3: cais de partidas, cais de chegadas

Fotografia: Hugo Sousa / gnration & Maria João Salgado / Theatro Circo
Publicado a: 08/07/2024

O festival de jazz da vetusta cidade de Braga, Julho é de Jazz, que conta com um dos pátios exteriores do gnration e a sala principal do Theatro Circo como palcos, encontra ao final do terceiro dia a linha equatorial da programação, entre o primeiro bloco de concertos e o segundo — e último — a acontecer nas noites de 11 a 13, com três trios de monta. Dia 11 está programado o trio da pianista helvética Marie Krüttli, dia 12 o trio da guitarrista norueguesa Hedvig Mollestad e, a fechar o programa, no dia 13 estará o pianista pernambucano Amaro Freitas, em formato trio no centenário palco do Circo.

Mas voltemos ao terceiro dia, no primeiro (dos dois) fins-de-semana de Julho e que, literalmente, são de jazz. A programação desperta para a leitura curiosa de fazer coincidir duas propostas que caminham em sentidos opostos de viagem. Como num cais onde se cruzam os que chegam e os que partem, e em que por momentos viajantes coincidem na encruzilhada que a uns traz e a outros leva, uns entusiasmados por ir de viagem e outros encantados por chegar finalmente ao destino. É por isso que as estações são lugares de emoção, com as plataformas a assistir a abraços e acenos, a braços abertos e beijos repartidos, pulula a alegria do encontro ou começa a contar o tempo para o reencontro.  Na transposição devida para a música, também se passa de igual modo na emoção do vivido. Este dia 6 de Julho trouxe o músico bracarense André Pizarro Pepe a um dos palcos que julgamos ter imaginado tocar um dia e que o irá levar a tantos outros, certamente. Pizarro Pepe de volta à cidade onde despertou para um dia vir a ser contrabaixista e compositor. Hoje regressa para uma primeira mostra disso mesmo. Por outra Braga que foi o “abrigo retemperador da longa viagem” que fizeram Dave Holland e John Scofield, nas palavras dos próprios referindo-se ao caminho para aqui chegar. Acrescentamos a esta a dimensão da trajectória de uma vida de músicos de renome com uma descomunal bagagem que invariavelmente os acompanha cada vez que decide sair em digressão.

Pizarro Pepe, que frequenta a Escola Superior de Música de Lisboa, de lá se fez acompanhar em palco pelos cúmplices do disco que estreia e que o mostra como compositor na linguagem jazz — Ecos, Vol. 1. O contrabaixista e compositor conta com Masha Soeiro no teclado, Ivo Rodrigues no trompete e Raúl Areias na bateria. A ocasião é especial e é razão para estender o convite a um par de músicos, João Viana na guitarra eléctrica e Rui Rodrigues na percussão. No palco-pátio, sobre a rugosidade do piso facetado, o “pátio-quebrado” como no elogio da arquitectura o cunhou Jaime Manso na reportagem do primeiro dos concertos deste festival. O quarteto e convidados apresentam na integra as composições do disco recém lançado. Os dois primeiros temas revelam a identidade autoral de Pizarro Pepe numa linguagem entre os cânones, da suavidade, da candura e do despertar em que ousadias espreitam tímidas nas frinchas que a música aponta. Música que se serve amparada por harmonias desenhadas pela instrumentação que aguarda o momento certo para assumir a luz no espaço que lhe cabe dentro da composição, que se ouve primeiramente pelo trompete, cedendo à guitarra de som directo e limpo. O segundo tema discorre muito pelo desprendimento das teclas e que a surdina, colocada no trompete, tempera em ajuste complementar, contando tema adiante com o conviva guitarrista. Os músicos mostram-se entusiasmados e denotam essa satisfação de quem está a pôr em prática o que tinha desejado — o paralelismo de quem está a embarcar num interrail ou outra viagem imaginada pela enorme vontade. Os seguintes temas, e que se servem juntos, explica Pizarro Pepe que um deles  “se chama ‘Canção’ mesmo não tendo letra”, o formato instrumental assim o diz, em que se volta a contar com o reforço nas percussão trazida pelo convidado, conduzida a escovas em mais um colaborativo resultado dos serviçais do ritmo. A coalescência dos temas, que o contrabaixo despontou assumindo um certo balanço que encontra tonalidades em pontos extremos do braço do instrumento. No seguimento desse atrevimento exploratório volta a entusiasmar o momento em que Pizarro Pepe se assume — aos comandos do instrumento do tempo — com um terceiro elemento do plano do ritmo, quando as mãos se ocupam de tampo e ilhargas em cadências conexas com a bateria e percussão. Sinais de pequenos apontamentos com atrevimentos que despertam dentro da música mais contida. São em definitivo os últimos dois temas em concerto — extra registo discográfico de estreia — que fazem imaginar que a viagem que agora começa possa ter passagens de vistas mais largas caminho adiante, quando os tempos de escola ficarem mais lá para trás. Transparece também, pela forma como sentiram e aplaudiram aqueles que ali estavam, que as próximas paragens se avizinham mais entusiasmantes — que assim o sejam.



A noite — no Theatro Circo — era, no entanto, esperada de sentido oposto. Uma plateia repleta para receber um duo que se idealiza no final de uma enorme e longa viagem cheia de vivências — toda uma vida vivida e que encontra nisso o impulso para continuar a acumular outras mais. Torna-se inevitável mencionar — e em estilo palavras-chave — outras enormes figuras de proa com quem tocaram estas não menos destacáveis que estão aqui diante de nós. John Scofield desde cedo colocou a sua guitarra a soar ao lado de Chet Baker, gravou com Charles Mingus e tornou-se eterno quando assentou lugar na tripulação acompanhante de um colosso chamado Miles Davis. Dave Holland foi também um dos predestinados músicos que acompanharam Miles e foi a razão da grande mudança na sua vida, tomou lugar na gravação de Bitches Brew — um dos, se não o álbum que mudaria o rumo para a modernidade no jazz — e perdurou entre firmamentos icónicos como Circle com Chick Corea e Anthony Braxton. Scofield e Holland encontraram-se para formar um memorável quarteto acústico — ScoLoHoFo — juntando Joe Lovano e Al Foster, do qual se eternizou Oh! pela Blue Note em 2003.

Agora juntos de novo, em duo para desfrutar da música um do outro. Em palco tratam de viver o presente — ainda que o passado os glorifique — mostrando gratidão a cada tema tocado. Fazem do alinhamento uma alternância de temas escritos por Scofield ora por Holland e com frequência os apresentam com: “That’s a good one!”. Começo com “Go Blow”, de Scofield e que de pronto coloca Holland no estilo próprio de tocar, inclinado junto do elegante contrabaixo de caixa reduzida, em modo de remate. O tema, como explicam, refere-se no título à entrega aos instrumentos. Adiante chegam com “Not For Nothin””, tema-título que Holland deixou no registo em quinteto em 2001 para a ECM. Tema que dá o mote ideal para estarmos ali — há uma muito boa razão para que aconteça. Prosseguem com “Memories of Home”, de Holland, escrito para contrabaixo e duas guitarras, à altura as de Vassar Clements e John Hartford. Ali era Scofield nessa mesma dupla interpretação magistral, criando o mote para um par de temas de sua autoria e puxando a linguagem mais aos blues com “See Mine Are Blues” seguido de “Easy For You”, que gravou para o seu quarteto corria o ano de 1993, na formação que durava desde 1979. Havia história do jazz trazida a palco naquele preciso presente, que serviu para Holland explicar a razão de “Mr B” — B de Brown, Ray Brown a quem dedica o tema — o contrabaixista Brown que levou Holland a enveredar pelo mesmo instrumento, Brown da secção rítmica que viria a dar origem ao influente Modern Jazz Quartet.

A prolongada, merecida e rendida ovação que receberam Scofield e Holland — com toda a carga dos que quiseram aproveitar para agradecer tudo — fez com que voltassem a palco para “Meant to Be” de Scofield. Estava destinado a ser uma noite entre dois ícones a fazerem da história uma música tão presente.


pub

Últimos da categoria: Reportagem

RBTV

Últimos artigos