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Fotografia: Maria João Salgado / Theatro Circo
Publicado a: 09/07/2024

De tempos a tempos dá-se a passagem.

Julho é de Jazz’24 — Dia 2: um cometa chamado Irreversible Entanglements

Fotografia: Maria João Salgado / Theatro Circo
Publicado a: 09/07/2024

Nem foi preciso esperar muito — apenas dois anos — para voltar a ver a luz e a cauda sonora em que se transforma a matéria deste quinteto errante pelo espaço que nos rodeia. Em 2022, Irreversible Entanglements abriram o programa inolvidável da constelação International Anthem que foi a edição do Jazz em Agosto em Lisboa. Agora é Julho é de Jazz, e em Braga voltam a deixar a sua marca. Como os corpos especiais, cada ocasião é um momento irrepetível. E o que deixam em palco nunca se repete. Como nos relembrou Camae Ayewa (aka Moor Mother) — na viagem ascendente de elevador, desde os camarins após concerto — no magnífico Theatro Circo: “Nós nunca tocamos a mesma música”. A noite era, para muitos, de outras motivações estrelares, havia o desporto futebol da empresa nacional a desviar as atenções, e na plateia notou-se essa ocasião. Mas com Keir Neuringer, Aquiles Navarro, Luke Stewart e Tcheser Holmes, junto às palavras de Camae, a passagem pela nossa noite era um dia para guardar de boa memória.

Irreversible Entanglements, assim se deram a conhecer como colectivo vindos de Filadélfia (EUA) com o registo homónimo em 2017. Seguiu-se Who Sent You?, depois Open The Gates e no ano passado o último registo Protect Your Light. São como títulos de capítulos da sua história que continuará a adiar — e esperamos por muitos e bons anos — um derradeiro desfecho. O seu encontro é nos palcos e por isso prosseguem em digressão, numa rota definida, que os traz aqui mas que amanhã os leva para outras paragens, com o prazer de o fazer em camaradagem. Ao jantar conversámos sobre o que comíamos, e sobre a mesa havia a diversidade da gastronomia minhota, bem regada — a troca nos planos de haver lugar para uma entrevista — afinal a longa jornada de um comboio cheio e sobretudo muito quente tinha-os desgastado. “Viajámos como antes, com o mesmo propósito e entusiasmo como no início” comentam Tcheser e Camae à pergunta se o facto de agora serem uma banda do vasto catálogo da Impulse! lhes tinha mudado algo. Continuam soberanos de si mesmo, aqui são eles que transportam e montam os instrumentos de palco em palco, que se organizam para saber para e por onde vão. “O que queres saber de nós está aqui e agora” adverte Camae e Luke aproveita para desafiar com a ideia de uma gravação. De vocês virá o que em palco tiverem a dizer. E foi um longo discorrer de palavras ditas para porta-voz do grupo. Sabemos que são daqueles que importa ouvir e que o mundo deveria escutar com toda a atenção, sabemos nós e mais uns tantos — e seremos (in)suficientes para o que é preciso acontecer.

Em palco estão as instrumentações que os esperam, mas eles surgem no meio de nós, entram na sala como todos e qualquer um de nós, são parte do colectivo. Corredor abaixo, caminham ao som de chocalhantes idiofones que trazem nas mãos e que os aproxima — em cortejo — de um certo lugar primordial da música. Tocam com coesão, diversos no som, quentes no timbre, com intervenção poderosa ancorada nas palavras debitadas e precisas da poeta Camae Ayewa. Como em disco, no tema “Soundness” sente-se de imediato o intuito de estarmos ali, porque “we call you into the room / come into the room / we are protected”. Mas essa premissa estava assumida à partida, o propósito da partilha numa espécie de bolha comum. As palavras haveriam de ser em continuidade e ouvem-se assim na beleza sonhadora: “We are living their dreams / So much joy at my heart / we are living the imagination of their dreams / we learn so many things / so many things pass down”. A roupagem sonora revela um Kier Neuringer no saxofone soprano — “um novo e estimulante instrumento na minha voz, até aqui no alto”, como nos comentou no pós-concerto — e Aquiles Navarro de volta de um sintetizador, pleno de cosmologia sónica. E continuam as palavras, na cadência e envolvência precisas — justas e necessárias. Prossegue Camae explicando o que está a acontecer e quem somos: “This is free love incorporated / we are so blessed / we are ancestors blessing”. Há um processo profético-cósmico e combativo em curso, o placo-plateia é o lugar — o espaço é o lugar, como o legado de Sun Ra. “Let’s tell the true!”, as palavras ecoam fundo — certamente — no fundo de nós, na elementar parte do colectivo. 

Tempo e momento de mudança, deliciosamente transposto pelo vibrante contrabaixo de Luke Stewart, que deixa uma cadência que anuncia um desvendar. Camae di-lo com assertividade: “Take off the mask / Let us see who you really are / Reveal yourself!” Yeah! — gritamos interiormente muitos de nós. Já Aquiles se ocupa de fraseados na trompete com surdina que lhe reconhecemos, assim como Kier na mais frequente voz no alto, com Tcheser inebriante em novelos propulsores de ritmo que unem a coesão que Luke não abdica de garantir no contrabaixo. Mas são as palavras, mais uma vez, que marcam: “We need the real you / we came from great traditions / so many rituals / We are a collective / deliberating the future / We gave the power / we know we have the power / the strength / the knowledge”. Há um tempero ondulante do ar que se respira — campainhas saturam o espaço emaranhado pelas tonalidades graves do contrabaixo — e prossegue a poeta — “The people have the heart / the people have the power” — para quem não prescinde de relembrar os ganhos que entusiasmam e recompensam — “Trophy is the wind / so many without hope”. E para que a esperança não esmoreça, e em modo de final recita: “Victory is ours … soon very soon / So many people love us without return / when we love nothing / except the beautiful to have this message with you / You are not alone!” Remata para o que se traz de volta de um concerto, assim: “Don’t give up on love!”.

Para o final — em decréscimo de intensidade — passou a haver um trompetista dedicado ao vozear de um vistoso búzio, tocado como trompa de harmonia, enquanto os companheiros estavam de volta aos tilintares chocalheiros. Do final — como na passagem de um cometa — fica o rasto, que neste caso é sonoro, associado ao clarão que se fez sentir em palco e varreu a plateia. Como no rasto das palavras em suspensão: “Your light — protect your light / We need your light / Shine your light / We need to light the way”. 

Saem de cena, como entraram — pelo meio da plateia — porque afinal são cinco transcendentes músicos de nós.


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