O arco de carreira de Joe Chambers, veterano que no próximo mês de Junho celebrará 79 anos de vida, é absolutamente extraordinário. O baterista e vibrafonista fez um sério percurso académico que o levou até à American University de Washington no início dos anos 60 para estudar composição, mas conquistou a sua experiência inicial a tocar r&b no grupo de Bobby Lewis e num combo operário, o JFK Quintet, em que militavam ainda o saxofonista Andrew White e o baixista Walter Booker e que trabalhava seis noites por semana nas Bohemian Caverns da capital norte-americana. Foi aí que Freddie Hubbard o conheceu, desafiando-o para o seguir até Nova Iorque onde a sua carreira teria mais hipóteses de crescimento.
Chambers assim fez, estabelecendo-se rapidamente como uma referência, não apenas como percussionista, mas também como compositor. A sua ligação à Blue Note, histórica editora a que agora regressa com este fantástico Samba de Maracatu, remonta a meados dos anos 60 e é profícua. Enquanto sideman gravou em sessões históricas de Freddie Hubbard (Breaking Point, de 1964), Wayne Shorter (é dele o pulso nos álbuns Et Cetera, The All Seeing Eye, Adam’s Apple e Schizophrenia que o saxofonista gravou entre 1965 e 1967), Joe Henderson (Mode For Joe, de 1966), Andrew Hill (tocou nos registos Andrew!!!, One For One e Compulsion!!!!! de 1964 e 1965), Donald Byrd (Mustang! de 1964 e Fancy Free de 1969), McCoy Tyner (Tender Moments de 1967) e sobretudo Bobby Hutcherson, vibrafonista com quem estabeleceu frutuosa relação (entre 1965 e 1969 as suas elegantes cadências adornaram nove álbuns do grande vibrafonista, incluindo clássicos como Dialogue e Happenings). A muitos desses registos, além do seu swing personalizado, Chambers cedeu ainda várias das suas composições.
O músico recebeu propostas das cabeças pensantes da Blue Note para editar em nome próprio, mas a sua carreira como sideman já lhe garantia tanto trabalho (gravou também em Fire Music de Archie Shepp lançado em 1965 na Impulse! e foi até chamado para as históricas sessões de In a Silent Way de Miles Davis, em 1969, tendo gravado material que só veria a luz do dia no início deste milénio) que à época Chambers preferiu seguir outro caminho.
Na década de 70 trabalhou ao lado de gente tão diversa como Stanley Cowell, Art Farmer, Robin Kenyatta, Lee Konitz, Hubert Laws, Ray Mantilla, Charles Mingus, Grachan Moncur III ou, por exemplo, o histórico colectivo de percussão M’Boom de Max Roach com que registou 4 álbuns, incluindo o clássico Re:Percussion na Strata East. Nos anos 80 colaborou com músicos como Steve Grossmann, David Murray ou, uma vez mais, Stanley Cowell, tendo depois, no decénio seguinte, encetado uma carreira de docência em universidades de Nova Iorque e Carolina do Norte. Só em 1998 é que assinaria, finalmente, a sua estreia em nome próprio na Blue Note com o álbum de jazz modal Mirrors em que dirigiu um ensemble com Ira Coleman no baixo, Mulgrew Miller no piano, Vincent Herring no saxofone e Eddie Henderson no trompete.
De novo concentrado na sua carreira como músico, líder e compositor, Joe Chambers sucede agora a Landscapes, álbum que gravou em 2016 para a Savant seguindo a inspiração do clássico de 1963 de Bill Evans Conversations With Myself, trabalho em que o pianista aproveitou as possibilidades técnicas oferecidas pela gravação em multipistas para, como o título indicava, criar contrapontos e diálogos consigo mesmo. Nesse álbum, Chambers começou por gravar bateria acompanhado por Ira Coleman no baixo e Rick Germanson no piano, fazendo depois ele mesmo overdubs em múltiplos instrumentos de percussão – congas, bongós, marimba e vibrafone – e ainda piano e sintetizadores.
Neste novo álbum, a abordagem é similar: desta vez o pianista é Brad Merritt e o baixista é Steve Haines, dois músicos da Carolina do Norte sobre os quais não há grande informação disponível, provavelmente ex-alunos de Chambers recrutados para cumprirem com elegância as direcções do líder. Em Samba de Maracatu o material chega de diversas proveniências: há composições do próprio Chambers, algumas resgatadas à memória (como é o caso de “Circles”, que o baterista compôs para o colectivo M’Boom), mas também de Wayne Shorter (“Rio”), Bobby Hutcherson (“Visions”), Horace Silver (“Ecorah”) ou de Jay Livingston e Ray Evans (a balada “Never Let Me go” que conta com poética prestação carregada de alma da cantora de Nova Orleães Stephanie Jordan).
Com o título do álbum a referenciar um ritmo brasileiro ligado ao ritual do candomblé e peças como “Rio” a desembocarem em shuffles próprios da bossa nova, pode dizer-se que este é um trabalho em que se sente alguma influência do imenso legado rítmico afro-brasileiro, mas é sobretudo um estudo subtil na arte do swing disseminada pela diáspora africana. O baterismo de Chambers continua tão assertivo quanto elegante, pleno de colorações e derivas que nunca desafiam a linha do tempo, mas que contém inventividade suficiente para em torno dele oscilarem, como num jogo de contida tensão. Mas é a sua dianteira no plano melódico através do vibrafone que aqui ganha preponderância, com o instrumento a enredar-se por vezes em lúdicos exercícios harmónicos com o piano de Merritt ou a assumir um primeiro plano solitário, como no arranque de “Ecaroh”, todo ele rasgo de tranquila luz, como se Chambers estivesse a criar música para um glorioso amanhecer antes do piano e contrabaixo se juntarem a si, nesse ponto já sentado na bateria, instrumento que toca com as mais subtis escovas que vão poder escutar este ano.
O melhor tema do álbum, em que Chambers liga dois momentos passados diferentes, é “New York State of Mind Rain”, um imaginativo “mashup” entre o clássico hip hop de Nas “N.Y. State of Mind” (um tesouro produzido por DJ Premier para o enorme Illmatic de 1994) e “Mind Rain” peça que o baterista criou para o seu álbum Double Exposure, editado pela Muse em 1978. Foi nesse tema que o criativo produtor e DJ dos Gang Starr descobriu aquela expressiva frase de piano – tocada pelo próprio Joe Chambers! – que depois serviria de pulso melódico para Nas pintar o seu vívido retrato, “straight out the fuckin’ dungeons of rap”. Aqui, Chambers chama MC Parrain, um desconhecido mas ultra competente artista que usa as suas barras para oscilar entre o papel de um mestre de cerimónias num clube de jazz e o de um rapper numa cave igualmente fumarenta onde se escute hip hop e dessa forma contar com assertivo e personalizado flow a história do sample que Premier e Nas imortalizaram.
Do alto do seu quase octagenário estatuto (tem praticamente a idade da própria Blue Note, que celebrou oito décadas de existência em 2019), Joe Chambers usa a sua privilegiada perspectiva e vasta experiência para nos conduzir numa longa viagem que se inspira na diáspora forçada que levou escravos até ao novo mundo que aí criaram uma cultura que desembocou no swing mas que continuou a transmutar-se até chegar ao hip hop. Joe Chambers parece querer dizer-nos que faz tudo parte de uma mesma viagem, um samba de maracatu ancestral, mas que continua vivo e pulsante até aos dias de hoje. Admirável.
Disco já disponível na Jazz Messengers Lisboa.