Nada o fazia prever, mas bastou um single para percebermos instantaneamente a quantidade de pólvora que João Tamura e Beiro conseguiam criar em conjunto. Lançado em Novembro passado, “Bixho” anunciava dessa forma um futuro promissor para uma dupla que, à partida, pouco teria em comum.
Maudito tratou de fazer a ponte entre o rapper de Lisboa e o produtor do Porto e rapidamente os planos para comporem uma canção em conjunto engrandeceram e levaram-nos a rumar a um álbum negro mas sensível, tanto nas palavras do poeta e autor de trabalhos como HOKKAIDO ou Singapura – Acto I, como na estética imposta pelo incansável alquimista sónico que lançou uma dezena de beat tapes em 2019 e cujo nome ainda vão voltar a ouvir com mais frequência no futuro – leram aqui primeiro.
A Paga-lhe o Quarto acolheu a edição de Ossos de Prata e nem o seu fundador, Keso, quis ficar de fora daquele que é já um dos mais importantes lançamentos nacionais deste ano. A lista de créditos é corpulenta e estende-se a gente como Pedra, Ângela Polícia, Maudito, Chek1 ou xtinto, MC que por alturas do lançamento do single para o qual contribuiu com um verso, “Ovelha Negra”, explicou ao Rimas e Batidas que o convite por parte da dupla foi aceite de imediato. E não se conteve nos elogios àqueles cujo trabalho tem vindo a admirar:
“Curiosamente, a única vez que tinha abordado o Tamura foi para comprar um HOKKAIDO. Quatro anos e tal depois, estar a ser convidado para um álbum dele é incrível. Sempre admirei bastante a escrita dele e senti-me lisonjeado por saber que o respeito era recíproco. Quanto ao Beiro, o homem faz batota. Não sabe brincar. É com cada beat que fico parvo. Certamente surgirão mais malhas minhas em beats dele!”
Numa chamada via Zoom a três vozes, fomos conversar com os dois artistas sobre o LP criado entre as duas maiores cidades do nosso país e decifrar a CRVVO, editora da qual Beiro e Tamura fazem agora parte e que foi oficialmente inaugurada no passado dia 25 de Abril com um single de Maudito.
Da última vez que falámos, o João tinha-me dito que vocês se conheceram por intermédio do Maudito e com o objectivo de fazerem uma canção em conjunto. Como é que surge a ideia de expandirem a colaboração para um álbum?
[Beiro] Eu acho que no “Bixho” nós criámos o nosso próprio universo. Aquilo tem uma sonoridade tão própria… Essa foi a segunda canção que fizemos. A primeira foi uma cena mais romântica, numa vibe mais tranquila. O “Bixho” trouxe aquela amargura, aquele imaginário da noite, uma cena mais urbana. Nós entrámos de tal maneira nesse universo, começámos a desenvolvê-lo, e assumimos desde essa canção que curtíamos fazer um projecto todo à volta desse universo. Tentámos explorar por aí. Acho que foi assim. Não foi, Tamura?
[Tamura] Ya. É isso mesmo. O “Bixho” foi o que despoletou, de facto, o disco. Assumimos um mesmo universo, que nos era comum. É uma cena que seu sempre achei super interessante no Beiro, esta cena pesada que ele tem capacidade de fazer, nocturna, cheia de basses que preenchem os instrumentais, quase tenebrosos. Então ya, o “Bixho” foi, de facto, o mote para o disco. Depois decidimos incorporá-lo, porque não fazia sentido colocar [no álbum] uma canção que já havia saído, sobretudo porque até foi gravada de forma diferente. Regravámo-la ao vivo, com o Pedra na bateria, e colocámo-la como término do disco.
Tocaste aí num ponto que eu queria abordar. Estávamos habituados a ouvir-te rimar em ambientes mais atmosféricos, por vezes até bastante despidos de batidas, e agora escolhes ladear-te de um produtor que é totalmente o oposto disso. Já te tinha passado pela cabeça dar uma nova abordagem à tua música ou simplesmente te deixaste levar pelo momento depois de conheceres o Beiro?
[Tamura] É uma boa questão. A nível instrumental, devo claramente tudo ao Beiro. Eu já me sentia… Não quero dizer estagnado, mas sentia a necessidade de explorar universos diferentes, tanto a nível musical como de escrita. Porque os instrumentais que eu tenho, a priori, interesse por acabam sempre por, inconscientemente, seguir uma certa estética. O Beiro surgiu de uma forma natural, do meu interesse na música dele, e fui eu que o convidei para criarmos algo juntos. Não me faria qualquer sentido dar-lhe algum tipo de limitação criativa aquando o trabalho comigo. Ele é um gajo cheio de talento, que tem um universo muito próprio e que eu aprecio. Então sou eu que quero, de certa forma, adaptar-me ao universo que ele cria. Até porque isso é desafiante para mim e é desafiante para a minha escrita. É desafiante, eu enquanto letrista, ter o meu cunho em instrumentais assim. Para mim foi um desafio gigante.
Sentes então que pode o beat ditar o rumo da tua escrita?
[Tamura] Não necessariamente. A minha abordagem para o disco foi “vou tentar manter o meu universo enquanto letrista mas numa paisagem sonora diferente”. Claro que há coisas no álbum que não faria em projectos anteriores, como por exemplo o egotripping e a punchline. Mas fi-lo também como um desafio a mim próprio. É uma coisa que havia apenas feito pontualmente em canções super antigas com o pessoal do meu bairro, de Chelas e tudo mais. E porque não tentar abordar esses temas, esse certo desafio, num projecto maior? Isto é uma coisa que eu tenho dito e repetido, e também devido ao Beiro, felizmente: eu creio que este é o único projecto meu que consegue atacar em certas frentes, em certos temas. Tu tens uma canção de amor, tens uma canção de desamor, tens uma canção de egotrip, tens uma de punchline, outra mais vaga ou poética…
Andaste a riscar caixas de uma checklist.
[Tamura] Sem dúvida. E felizmente. Eu costumava abordar os projectos de uma forma tão livre ao nível da escrita, que acabavam por ser desabafos poéticos sobre mim, ou sobre a minha família ou sobre as dificuldades que eu estava a enfrentar na altura. Por norma são essas as coisas que me fazem escrever. Aqui quis partir para outros conceitos.
E tu, Beiro, já tinhas alguns destes instrumentais no teu arquivo ou os beats foram todos produzidos já a pensar na abordagem do João?
[Beiro] O “Bixho” já estava há dois anos na gaveta. Achei que era um beat que não ia ser usado. Eu venho do rock e aquilo foi uma cena minha a tentar misturar os dois mundos. O Tamura, quando chegou à minha casa, em Chelas, pediu “mostra-me o beat mais estranho e que achas que eu não vou curtir”. [Risos] Eu mostrei aquele e o gajo disse, “é isto mesmo!” Levou-o e passado dois dias ou três já me estava a mandar guias. A cena rolou tão bem, que nós começámos a pegar por aí. O resto dos instrumentais… eu acho que só tinha dois ou três [já feitos]. Mas eram recentes. De resto, compus tudo já a pensar no projecto. Enquanto ele ia fazendo as primeiras músicas eu adiantava os instrumentais. Foi assim o processo, basicamente.
Como estavam a morar perto um do outro, esse teu trabalho de composição era feito ao lado do Tamura?
[Beiro] Eu fazia sozinho. Depois, quando juntava a voz, fazíamos sempre uma sessão juntos. Tirar dali, meter aqui, colar acolá… O arranjo final era sempre em conjunto. Eu dava-lhe a minha sugestão, para mastigarmos aquilo e perceber o que é que faltava. Depois juntávamo-nos e fechávamos.
O disco foi gravado na primeira semana de Janeiro, no Porto — eu bazei de Lisboa no final de Dezembro de 2020. Ele veio cá passar quatro ou cinco dias e fizemos nove faixas. Foram nove faixas, fizemos um videoclipe, a live session… Bué intenso. Mas já tínhamos muitas coisas definidas. Havia uma coisa que ficou logo definida: um dos sons ia ficar em aberto. Não havia letra nem instrumental. O objectivo era fazer tudo durante esses dias enquanto ele tivesse cá. Saiu a “Medeia”, que acabou por ser quase um segundo single do disco.
[Tamura] O álbum foi escrito em Lisboa e gravado no Porto. É engraçado, ser um disco que foi feito entre as duas cidades. Parte das coisas já existiam de quando o Beiro estava a viver em Lisboa e eu escrevi o disco em Lisboa. Olhando para trás agora… O disco foi feito tão rapidamente, man. Nós conhecemo-nos em Agosto, o “Bixho” saiu em…?
[Beiro] Novembro! E nós começámos a fazer o disco no fim de Novembro.
[Tamura] Incrível! Vê lá… Eu revejo-me muito no Beiro, nesta capacidade de, mesmo tendo outros trabalhos, conseguir criar algo com pés e cabeça, com estrutura, com um universo próprio, muito rapidamente. Ou seja, o disco foi todo criado em Dezembro.
[Beiro] Depois foi só fechar os featurings. Ainda foram alguns. Tivemos de gerir aquilo tudo, ver dos deadlines, tentar fechar as faixas o mais rapidamente possível… Mas conseguimos tudo.
E sobrou-vos material, ou tudo o que fizeram juntos durante essa temporada foi parar ao disco?
[Beiro] Deixámos para aí duas duas faixas de fora. Houve foi muitas alterações dentro das músicas que foram para o álbum, tanto na voz como no beat.
Como é que surge a Paga-lhe o Quarto no meio disto tudo?
[Tamura] Surgiu pela prórpia participação do Keso. Nós estávamos a gravar no Porto e já imaginávamos que queríamos mais alguém naquela canção [“Qvimera”], para não ser só eu a abordar o tema sozinho. Fomos à Paga-lhe o Quarto falar com o Keso. Eu já o conhecia, dava-me bem com ele e sempre foi um artista que eu admiro imenso. Dos meus favoritos. Aquando do convite, acabámos por lhe mostrar o disco lá na PoQ e ele perguntou como é que iria ser feita a edição. Como nós, à partida, íamos lançá-lo de forma totalmente independente, achámos fixe a ideia de o editar pela PoQ, porque são pessoas que nós admiramos imenso. Todo aquele universo do Keso, do Riça… São pessoas que trabalham super bem. O Riça deu um toque estético às ideias que nós já tínhamos mesmo incrível. Acabámos, felizmente, por fazer a edição por eles.
E como é que um álbum desta magnitude, recheado de convidados, é criado neste quadro de distanciamento social?
[Beiro] Fomos ter com o Keso mas ele acabou por se gravar a si mesmo na PoQ e depois enviou-me as pistas. Eu acho que estive com todos eles, embora em períodos diferentes. O Maudito é da casa, o Pedra é da casa… O ZA eu já andava para fazer um projecto com ele. Numa das sessões de gravação desse mesmo projecto, acabei por meter esta faixa ao barulho e meti-o a ele ao barulho no disco. Ele gravou comigo numa das vezes que veio cá ao Porto. Só o Keso e o xtinto é que me enviaram faixas. O xtinto também era para vir cá mas tornou-se complicado com isto do confinamento. Ele acabou por gravar com o billy, um grande amigo dele que acabou por nos dar um grande apoio. Gravaram o áudio e filmaram lá a parte dele para o vídeo. Foi incrível. Sem isso não tínhamos conseguido fechar o single.
[Tamura] É importante acrescentar aqui também que o disco foi feito e foi completo, tirando esta parte do xtinto, durante a janela temporal que tivemos de desconfinamento. Eu voltei do Porto para Lisboa no último dia antes deste segundo confinamento. Então, felizmente, conseguimos gravar tudo presencialmente. E conseguimos terminar tudo excepto esta parte do xtinto. A ideia já era minha e do Beiro. Já tínhamos criado aquela narrativa dos dois tempos diferentes que depois se iriam interligar através easter eggs ao longo do vídeo. Infelizmente [o confinamento] aconteceu de novo e houve esse entrave do ponto-de-vista presencial. Como o Beiro já referiu, conseguimos uma alternativa, como tudo nos dias de hoje [risos].
E que ideia é esta que escolheram para o título, Ossos de Prata?
[Tamura] Eu e a minha namorada estávamos à procura de um título e ela também é fascinada por civilizações antigas e por história… Ela tinha esta frase apontada, que vem de uma lenda egípcia, que dizia que os deuses tinham carne de ouro e ossos de prata. Depois, curiosamente, nós já tínhamos inserido a prata como uma estética comum a todo o disco e até ao próprio vídeo. Aquela manta de prata já existia como easter egg no “Ovelha Negra”. A posteriori, digitalizámo-la para o artwork do disco. Depois ganhou vida com o design do Riça. E utilizámo-la também numa sessão fotográfica com o AUTOBOY ANALOG, que acabámos por usar no press release do disco. O engraçado é que todo este universo da prata já existia antes do título. O título veio numa de “ok, temos aqui algo que consegue ligar todo este nosso universo.”
Toda esta situação está a evoluir positivamente e estamos, aos poucos, a voltar a algumas das nossas rotinas pré-pandemia. Isso inclui, felizmente, o regresso dos espectáculos ao vivo. Já pensaram em como é que vão levar este disco para cima de um palco? Já existe até alguma data na calha para vos apanharmos ao vivo?
[Beiro] Em primeiro lugar, depende muito das salas. É algo que será estudado caso a caso. Mas nós tencionamos ir com bateria e eu quero tocar guitarra e baixo em algumas músicas. É um bocado o setup que se ouve na “Bixho” ao vivo, com o Pedra na bateria. É assim que nos tencionamos apresentar. Queremos fazer uma data no Porto e outra em Lisboa mas estamos ainda à procura de uma janela a nível de agenda neste desconfinamento. Está tudo muito incerto ainda.
Para terminar: tenho visto por aí uma marca da qual vocês fazem parte e que me tem criado alguma expectativa. O que é isto da CRVVO?
[Beiro] A CRVVO é uma label que eu fundei com o Maudito e que se solidificou durante a criação do Ossos de Prata. Criámos aqui uma equipa, eu, o Maudito, o João Tamura… Todos estes nomes acabaram por se interligar. Há, por exemplo, feats. do Maudito com o Pedra que estão neste momento na gaveta. Outro do Pedra com o Tamura… Vários cruzamentos aconteceram naturalmente e “ya, nós temos aqui uma cena, uma equipa”. Disse para mim: “isto é uma label“. Malta que se entreajuda, que conseguem impulsionar-se uns aos outros. Entretanto consegui assinar um contrato de distribuição com a Universal, durante a criação deste disco, e isso deu-me a hipótese de fazer uma label atrás do meu nome. Daí surgiu a CRVVO. Nós já tínhamos falado sobre isto, mas quando a Universal surgiu com o contrato foi perfeito. Falei com a malta, para ver se eles alinhavam num projecto mais sério… Isto é tudo muito novo, como deves calcular. Mas pronto. Decidimos que vamos tentar, todos juntos, e apoiar-nos uns aos outros. Vamos experimentar esta nova fase. A CRVVO representa isso mesmo, a liberdade de expressão, o sermos nós próprios. Vamos criar sem rótulos, sem nada. A editora estreia no dia 25 de Abril com um single do Maudito [“ADA Freestyle”]. Estamos cheios de sons na gaveta e vamos ver no que vai dar.
Queres levantar um pouco mais o véu aos projectos que têm na manga?
[Beiro] Neste momento estamos com seis projectos. Eu, o Maudito, João Tamura, Pedra, Laia, que é uma banda que eu estou a formar com o Ângela Polícia. O outro projecto é Skelly Wag, que sou eu e o Miguel Pereira, um rapaz cá do norte que tem um vozeirão e uma dicção impecável em inglês… Pá, depois sairá. Vai ser fixe!