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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 29/03/2025

Condensado em concertos, amplo na dimensão.

João Barradas e SuperNova Ensemble no Rescaldo’25: escassas são as horas extraordinárias

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 29/03/2025

À 15ª edição, o imprescindível festival Rescaldo, chegou em formato de resiliência. No Teatro do Bairro Alto, no final de tarde de domingo, dia 23 de Março, com “apenas” dois concertos se fez uma edição de festival. Distintas edições inscrevem-no entre os mais perdurados, resistentes e justificados certames de carácter urbano — de sala em sala —, que existem no abundante cardápio deste país à beira mar. O propósito mantém-se na identidade. Trazer a palco, em forma de revisão e decalque, alguns dos nomes mais fulgurantes no panorama nacional no que à musica de carácter mais vanguardista diz respeito.

O seu programador de sempre, o artista gráfico, músico e editor resiliente Travassos, alinhou para este ano um concerto de recital solo de acordeão e um colectivo que faz o arco interdisciplinar, entre a música contemporânea e as artes plásticas. 

João Barradas, é uma vanguarda em si mesmo, talvez um dos raros exemplos de vertigem permanente que alia virtuosismo à exploração, da clássica contemporânea ao livre improviso, tudo soa no lugar certo, mesmo que nem o saibamos definir bem ou ter total percepção de qual é qual; seja pelo constante dinamismo dos programas que o músico apresenta, seja pela mostra do novo para muitos. A sua vinda ao Rescaldo faz-se dias antes de um novo lançamento de disco Unfolding, que aqui no ReB anunciámos. Um disco que resulta do trabalho desenvolvido em 2024 na Casa da Música como artista em residência. Músico que foi nomeado ao olimpo da ECHO Rising Star pela prestigiante European Concert Hall Organization em 2019-20. Mas neste palco do TBA, para este Rescaldo’25, a proposta é uma carta em branco, seguramente nada que ver com o disco pronto a ser revelado. Mas sem sabermos o programa, seguros da genealidade “apenas”. Um programa descoberto peça a peça, rasgo atrás de rasgo de beleza. 

Começo com “All The Things You Are” de Jerome Kern. Um standard que o músico, aqui interprete, apresenta em versão bem estendida, e aqui entenda-se no tempo como no modo. Nestas revisitações de Barradas à música de outros, traz-lhe roupagens que colocam, no limite de fronteira, o interprete e o compositor, dada a riqueza acrescentada da nova roupagem. Mesmo que um tema seja de 1939, soa a hoje, a vanguarda. Isto num acordeão electrónico que se presta a tudo, e tudo possibilita, nem é preciso distender o seu fole para se fazer notável. Há uma primorosa captação sonora que coloca em simultâneo o toque nos botões do teclados cromáticos como elementos de percussão. 

Segundo momento, abrindo a dimensão, estendendo o acordeão para a voz e vice-versa. E traz Barradas assumido as duas vertentes, composição e interpretação. Passamos a ouvir o futuro, na medida das novas possibilidades e porque este “Fragment” é uma composição que entrará no registo anunciado para 2026 chamado de Aperture. A voz comanda a melodia, que a miríade de manipulações molda como mestria e fascínio. Há laivos de ar fresco, soa à dupla Nicolas Godin e Jean-Benoît Dunckel, que respondem por Air. São referências pelo uso de uma voz modulada que nos coloca em processo híbrido, a meio caminho entre o humano e a máquina; acrescentando ondas de beleza.

Segue-se a peça mais aberta do programa preparado por Barradas. Talvez mesmo por estar em processo não dado como concluído. Uma peça sonora, em construção, com Carlos Bica, aqui trazida na perspectiva do fole. As cordas e o fole poderão ouvir-se em breve, no Portalegre JazzFest’25 que os juntará em palco no dia de abertura. Um ritmo apertado de abre e fecha de fole, remete para o bandoneon de Piazzolla feito contemporâneo, voando desde as terras platenses. O tema, digamos, mais sobre o fio da navalha do alinhamento. Termina com “Pneuma” (pro parte) do compositor Yannis Kyriakides. Muito referenciado por Barradas como sendo um “disco que lá em casa rodou imenso, em loop”. E se o jovem mestre o toma em intensidade, façamos dele um mandamento moderno nos campos da composição para acordeão electrónico. A sua interpretação leva-nos a esse desejo, de conhecer o “original”, a peça de maior rasgo cromático-textural que se ouviu. 

O público não arredou até ao regresso para um rescaldar da sua vinda a este Rescaldo. Arranca para uma improvisação artística que deixamos sem denominar, afinal há que deixar uma certa margem, entre o ler e o viver de um concerto. No dia que tudo for assimilável a esta distância, torna-mo-nos naquilo que não queremos. Obrigado João, por miscigenares, a cada concerto vivido, duas entidades à partida distintas: Barradas e acordeão. 



O programa, na metade complementar, traz à outra face deste mesmo palco um super novo ensemble de música contemporânea. Justamente chamado SuperNova Ensemble — daria para ser de outra forma? Traz um ensemble e o Ensemble traz a obra de um dos mais radicais artistas plásticos portugueses — Silvestre Pestana. Nome que se fez maior no campo das artes pela estreita convivência, em exílio político, com gente como os que compuseram o Living Theatre de Julian Beck, acrescida numa forte  influencia da poesia experimental, escrevemos sobre a obra de Pestana, como argumentado por António Preto no ensaio “Silvestre Pestana: Poesia ou Morte” in TECNOFORMA, a propósito de uma exposição no Museu de Serralves, em 2016. 

Foi em 2024 que Pedro Rocha haveria de programar em palco a junção da música do SuperNova Ensemble como sonoplastia, revisitando “As Pautas”, conjunto de 20 obras de 1975 que Pestana refere como sendo: “A minha desorientação política e a minha orientação política. ‘As Pautas’ são os múltiplos caminhos dados como modelos, ou arquétipos, de pensamento, de postura social. Dirigismos por um lado, a confluência por outro e a celebração da alegria que é muito importante para mim: a cor. A capacidade cromática, a potência cromática, é fundamental para dar vibração.” É aqui, neste Rescaldo’25 que essa dupla combinação volta a ter palco. Músicos atrás da tela, e obra plástica na frente, em projecção video. Está montada o mecanismo de dupla valência, de dulpa fruição, criando a ponte entre a música contemporânea e o cromatismo chamativo d’”As Pautas”.

“Quando tenho oportunidade de recorrer ao vídeo, uso o vídeo para a poética, mas não para exemplificar a chamada baixa poética.[…] Ou seja, a duplicação da retórica entre a mensagem escrita, verbalizada e a mensagem visual de referência.” Referia Pestana em entrevista a João Ribas e Mauro Cerqueira publicada nesse referido catálogo. E o NovaEnsemble, neste 2025, cumpre essa máxima, por principio do artista plástico, a música que ouvimos traz até uma alta poética, traz relevo. Composto por José Alberto Gomes nos comandos da imagem e na electrónica e gravações de campo (áudios das ruas de 1974), João Dias numa rica e vasta multipercussão, complementados por Carina Albuquerque no violoncelo, e Clara Saleiro na flauta transversal. Uma paleta tão rica que intrigava a origem dos sons. A espaços víamos a  fonte, por entre as imagens da tela, sempre dinâmica e com dedo de inteligência artificial, com Luís Arandas nos comandos humanos. 

Refira-se que Pestana tem desde sempre um fascínio pela tecnologia e do seu uso na obra. Esse encanto é de uma criança fascinada pelo brinquedo, como extensão do seu gozo e inocência, contudo “uma coisa é a tecnologia outra é o controlo. E outra coisa é como representar o meu conflito individual na socialização global” como referia a Ribas nessa conversa publicada. “Sentimos que as tecnologias, ainda que se apresentem como uma promessa, se tornam cada vez mais ferramentas de controlo”. 

A música transporta uma dinâmica cinemática, em que a percussão sustenta o terreno, onde o voar a pique tantas vezes escutado da flauta traz essa vertigem. Há uma rede milimétrica no suporte, seja de uma malha circular seja triangular, e sobre ela sobrepõem-se os elementos transgressores, na forma e no cromatismo, um certo “elementarismo expressionista ou mesmo espiritual na abordagem às formas e à cor” como referiam Pedro Rocha e Pestana, aquando da apresentação, em folha de sala, na estreia no Auditório de Serralves. Nessa interpretação referem, que estas 20 possibilidades “problematizam a realidade de uma “liberdade” recém-conquistada. A ironia que atravessava este conjunto de pautas sem instruções de leitura estava, simultaneamente, na interrogação da possibilidade de liberdade, e no questionamento do desejo que a reclamava”. E nesse sentido, há uma presença justificada, por infortúnios e descuidos sociais, plena como contraponto, neste desastroso presente, onde paira uma ameaça do espectro de modelos ideológicos terríveis. Por outra e libertadora visão, também nessas pautas gráficas, pode ser lido um modo cageano. Onde as pautas se tornem musicais, gráficas, “simultaneamente introduzindo na equação uma outra presumida liberdade: aquela teorizada por John Cage e que advogava que as partituras gráficas poderiam libertar o intérprete”, como fez uso, em exercício, Rocha em 2022, junto da L’Orchestre Inharmonique de Nice em 2022. 

Estamos certos que esta linguagem tem uma importância interventiva, que dificilmente se esgota num par de vindas à cena. Tanto pelos modos de ver, tal e qual como nos ensinamentos do mestre John Berger, como na fruição a olhos fechados, de ouvidos postos “só” na música. Estamos na expectativa que surja um edição fonográfica d’”As Pautas”, como forma de retomar a vontade da sua cabal dimensão, sempre que queiramos. Quanto ao resto, seremos uns irreversivelmente agrilhoados  espectadores. Como adverte Pestana, retomando a leitura de um Guy Debord em A Sociedade do Espectáculo, uma vez que a “arte actual permite o conhecimento com alguma diferença, mas já não há mudança social, já não há escândalo, transformação, profundidade, transformou-se tudo numa banalidade e numa coisa cíclica, que são os ritmos da televisão.” Estas pautas tornadas modelos libertar-nos-iam para a vida, e disso foi feita esta ideia de fuga latente no Rescaldo. Soube, como sabem as horas extraordinárias, fugazes, escassas…


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