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Fotografia: João Octávio Peixoto
Publicado a: 29/01/2025

O acústico e o electrónico numa demanda constante pelo desconhecido.

Joana Gama & Luís Fernandes: “Nunca decidimos que íamos ter um duo e que ia durar 10 anos…”

Fotografia: João Octávio Peixoto
Publicado a: 29/01/2025

Uma pianista de formação clássica e um escultor sonoro equipado com ferramentas electrónicas modulares entram num auditório… e, de repente e quase por magia, o espaço transforma-se. Em algo exterior — uma paisagem natural, um lago num quadro impressionista, um espaço de arquitectura modernista e angular — ou, ao invés, num espaço interior, forrado a pensamentos, ideias, sonhos até. A verdade, é que o estimulo singular da música que já há uma década Joana Gama e Luís Fernandes nos oferecem serve para nos transportar para outros lugares, uma ideia, aliás, possível de vislumbrar nos títulos das obras com que foram pontuando os seus criativos passos: Quest saiu com selo Shhpuma em 2014, seguiram-se Harmonies, com Ricardo Jacinto (Shhpuma, 2016), At The Still Point of the Turning World (Room40, 2018), Textures & Lines, com o Drumming GP (Holuzam, 2020) e There’s No Knowing (Holuzam, 2022).

O duo de Fernandes e Gama prepara-se agora para apresentar Strata, novo álbum na Holuzam que altera (ligeiramente) a regularidade bienal dos seus lançamentos, mas não muda a sua prática de entrelaçar mundos acústicos e electrónicos, de casar piano e electrónica, texturas e linhas, numa demanda constante pelo desconhecido.

O lançamento do novo álbum está marcado para esta sexta-feira, 31 de Janeiro, data em que Joana Gama e Luís Fernandes subirão ao palco da Culturgest, em Lisboa, para o concerto oficial de apresentação, uma noite imersiva de som, luz e imagem. Para essa apresentação, o duo contará com a colaboração do cineasta Eduardo Brito, responsável pelos vídeos projectados durante o espectáculo, e de Frederico Rompante, que assina o desenho de luz, e Suse Ribeiro, que assina o desenho de som. No palco, o público poderá experienciar as novas composições para piano e electrónica que comunicam com paisagens sonoras captadas em diversas partes do mundo, numa exploração artística entre o mundo natural e o universo musical. O duo levará este concerto igualmente ao Auditório de Espinho (7 de Fevereiro), Teatro Gil Vicente (Barcelos, 14 de Fevereiro) e Teatro das Figuras (Faro, 20 de Março).



Vem aí disco novo, Strata. Fui verificar, e percebi que strata tem diversos significados. A palavra aponta para algo que tem, nomeadamente na geologia, várias camadas. É disso que se trata, ao fim de 10 anos de colaboração, de vocês revelarem ou estudarem as diferentes camadas que foram construindo com o vosso trabalho em conjunto?

[Luís Fernandes] Sim. Também é isso, Rui. É, se calhar, o caminho a seguir que nós preconizamos neste duo, que já vai longo. Mas também penso que tem uma relação muito concreta com uma ideia de fusão entre orgânico e sintético, que nós quisemos explorar do ponto-de-vista da própria música, da própria composição. Remete para esta ideia de orgânico que vem… Muitas das bases destes temas são gravações que fizemos aí um pouco por todo o lado, não só em Portugal, mas também fora, e que acabaram por ser pontos centrais para explorarmos as composições que depois viemos a fazer. Portanto, tem este lado quase da geologia, de estratos, de camadas, de diálogos entre diferentes materiais, e é muito essa a ideia.

[Joana Gama] Sim, e de como essa acumulação de camadas depois dá origem a uma coisa nova. Por exemplo, nós temos field recordings que estão altamente adulterados e cujo resultado final torna impossível de depreender qual a origem daquele som. Até sons que parecem altamente electrónicos, vêm de voz humana, de grupos de vozes, algo de que nunca se diria ser a origem. E é fantástica esta questão destas camadas, porque percebemos que, ao pensar um bocadinho sobre o que seria este álbum… Primeiro fizemos a música e só depois pensamos nos nomes das músicas e no nome do álbum, como sempre fazemos. Chegámos a esta conclusão que, de facto, e de uma forma abrangente, a música acaba por ser toda assim. Mas no nosso caso, pensar nesta ideia de camadas e de como, primeiro, num caso pode surgir uma ideia da electrónica ao qual o piano se junta, e depois juntam-se outras coisas; ou como de uma parte de piano adulterada pode surgir electrónica, e que depois o piano vai acrescentar alguma coisa. Nós no primeiro álbum, Quest, tínhamos muita vontade de acrescentar muita coisa, e agora, pelo contrário, interessa-nos tirar e ver o que é que se deve tirar e o que é que chega ao resultado final.

Depurar em vez de acrescentar. Olha, tu mencionavas antes de começarmos a conversa que te encontras numa espécie de retiro criativo no Algarve e eu queria questionar-vos sobre como é que nascem estes projectos? Vocês também se impõem esse tipo de retiros? Como é que, de repente, decidem qual a direção a seguir quando chegam à conclusão de que está na hora de fazer um novo projecto?

[JG] O que tem sido surpreendente também neste duo é que começou de uma forma altamente improvável e a sua continuidade, não digo que é improvável, mas não é obrigatória. Ou seja, nós nunca decidimos que íamos ter um duo e que ia durar 10 anos, e que tínhamos esta vontade e tínhamos muita coisa para fazer em conjunto. Simplesmente houve uma primeira conversa, em pé, em 2013 [risos]. Não. Estávamos sentados primeiro, e depois, em pé, é que tivemos a ideia de tocar juntos, já quando nos estávamos a despedir [risos]. Uma conversa informal de duas pessoas que decidiram tocar juntas, porque gostavam do formato do duo de piano e electrónica, muito inspirados pelo Sakamoto e Alva Noto. Daí, e partindo de uma despretensão total, tocámos e percebemos: “Isto, se calhar, pode dar um concerto. E do concerto pode dar um álbum.” Isto foi em 2014. Depois, em 2016, o Pedro Santos convidou-nos para fazer um trabalho à volta de Eric Satie, porque queria assinalar 150 anos do seu nascimento, mas não queria fazer uma coisa puramente de música clássica. Nós então convidámos o Ricardo Jacinto. Passados uns anos, o Rui Torrinha convida-nos para fazer um projecto com a Orquestra de Guimarães no âmbito do Westway Lab. Fazemos esse terceiro álbum. Depois o Drumming convida-nos para trabalhar com eles e nasce o Textures & Lines. Depois o Nuno M. Cardoso convida-nos para fazer a banda sonora do Cassandra, que fazemos, e daí re-trabalhámos o material e fizemos o álbum There’s No Knowing. Neste Strata, nós já tínhamos uma ideia de fazer um trabalho em conjunto, mas houve um convite, aliás, houve dois convites que nós acabámos por condensar. Tivemos o convite do Teatro Municipal do Porto, que estava a assinalar os 10 anos deste novo fôlego do teatro e queriam convidar alguns artistas, para que esses artistas fizessem colaborações, e convidaram-nos. E quase ao mesmo tempo também recebemos um convite do Close-Up, o Observatório de Cinema de Famalicão, para fazer um trabalho com vídeo, cinema e música. A nós não nos interessava fazer um cine-concerto só por si, então começámos a pensar como é que poderíamos entrosar estes dois convites de forma a fazer também um concerto que fosse esta celebração dos 10 anos sem que tivéssemos que o fazer. Enfim…

É uma desculpa como outra qualquer, não é?

[JG] Exato, sim, até porque nós normalmente fazemos os álbuns sempre de dois em dois anos e este já vai sair em Janeiro de 2025, portanto já estamos a quebrar essa regularidade [risos]. Fomos pensando em várias possibilidades de colaborações, com outros músicos ou com artes performativas, com artistas visuais… Acabámos por chegar ao Eduardo Brito, que tinha feito a capa do nosso primeiro disco e tinha feito também a nossa primeira fotografia como duo, e cujo trabalho tem a ver com o nosso trabalho musical, porque no trabalho dele enquanto realizador e enquanto artista visual e fotógrafo o tempo dilata-se, há muitos planos fixos, há muito espaço, e há muito espaço para a ressonância e para a repetição. E então achámos que, não querendo impor o que é que ele iria filmar, que ele iria compreender este nosso projecto e iria acrescentar, lá está, uma camada que faria sentido no todo.

[LF] A Joana foi muito completa na resposta. Eu só acrescentaria que, apesar destes convites felizmente serem recorrentes, acabaram por definir um pouco a forma como nós fomos evoluindo em duo. Apesar de tudo, acho que também continuamos a sentir muito interesse em tocar juntos, neste formato, e ir um pouco além nas soluções que temos explorado na composição. Isso também nos dá muito prazer e acho que, apesar de não estarmos assim muitas vezes juntos a tocar, não há essa dinâmica de construção musical por encontros recorrentes, mas há sempre um pensamento sobre qual é o passo a seguir, como é que podemos fazer isto evoluir, o que é que nos dá prazer. No fundo é isso, e isso acho que se mantém até agora.

O que é que vocês diriam que, na vossa práxis concreta enquanto duo, é novo neste registo? Já me falaram nas gravações de campo, por exemplo. Para lá disso, há algum ingrediente criativo novo neste álbum que vocês nunca tenham testado antes?

[LF] Eventualmente. Não diria que existem diferenças radicais, mas essa questão do pensamento da construção dos temas é bastante diferente em relação ao passado. E também diria… Joana, não sei se concordas, mas a forma como transpomos o espectáculo para o palco também tem nuances que nós nunca tínhamos explorado. Nomeadamente, e sem querer fazer spoiler de nada, há alturas em que nem eu nem a Joana estamos a tocar nenhum instrumento, estamos a manipular objetos, por exemplo. E também a própria forma como estruturalmente nos dispomos no palco tem um pensamento diferente. Nós não acreditamos muito, acho eu, em mudar radicalmente aquilo que é a nossa prática musical e artística, mas acreditamos que ela pode ir-se transformando de alguma forma ao longo do tempo, e acho que é isso que acontece neste disco e neste concerto.

[JG] Sim, e há uma questão que também… Voltando um bocadinho ao primeiro álbum, essa diferença que há entre estes dois álbuns é que neste, também na questão da transcrição para o palco, há uma vontade de, em alguns casos, escutar o silêncio, que pode ser um bocadinho contraditório neste contexto. Mas há essa vontade. O John Cage é uma presença constante no nosso pensamento e no nosso trabalho, não tanto de uma forma musical, mas em termos de inspiração do pensamento. Portanto, a própria interacção entre a música e o vídeo dá esse espaço de às vezes estarmos só a ver o vídeo sem música, e vice-versa, para que não haja uma contaminação e que não haja demasiada informação. O que, se calhar, para algumas pessoas pode ser quase incómodo, aqueles que querem ver muita coisa acontecer. Mas o que tem sido também um trabalho de depuração, que falámos no início, é perceber o equilíbrio do tema final e perceber o que é que de facto faz falta e o que é que não faz falta. E se calhar no Quest, no primeiro álbum, o piano estava sempre a tocar, eu estava sempre a tocar em todos os temas, tirando um que era só electrónica. Neste caso, há piano em todos os temas, mas há longos períodos em que não há piano, porque o tema não precisava. E lá porque estamos os dois em palco, não quer dizer que estejamos sempre a mostrar trabalho, não é? Há um trabalho invisível cujo resultado se sente no álbum e em palco, e nós acabamos por ter esse espaço de liberdade de podermos fazer o que queremos, não estamos aqui a pensar quais são as expectativas, o que é que vamos fazer para termos mais concertos… Não há aqui um lado de… Enfim, as decisões são artísticas. É isto, essencialmente.

Eu imagino que parte da diferença entre criar um registo novo em estúdio e depois transpor isso para palco passe um bocadinho por… Lembra-me um bocadinho a questão do teatro, do passar da página escrita à encenação, que são passos necessários nessa arte. Como é que vocês distinguem as duas coisas? Quão diferente para o duo é esse momento da criação num estúdio e depois o palco? Sentem que há uma diferença grande entre essas duas dimensões?

[LF] Eu diria que não, porque nós tendemos, até do ponto-de-vista da forma, da música… Por acaso, este disco é a excepção, mas normalmente o concerto é o disco e as coisas são pensadas de raiz em paralelo. E neste disco há uma excepção que tem que ver com forma, ou formato, neste caso, porque decidimos pela primeira vez editar em vinil e não queríamos que tivesse mais do que um certo tempo, porque ia prejudicar a qualidade, a fidelidade do disco, portanto sacrificámos um tema, que está no concerto e não está no disco. Mas normalmente estas coisas são pensadas em paralelo, seja no fluxo da composição, na forma como um tema se encadeia no outro, tudo isso, seja no próprio pensamento musical. Depois, claro, perdemos sempre algum tempo, se calhar até mais do meu lado, porque tenho que lidar com máquinas e muita informação, a pensar como é que se transpõe por uma ideia de espectáculo. Mas isso é meramente técnico, não é propriamente um aspecto da composição. Portanto, diria que é o mesmo processo, quase. Não é, Joana?

[JG] Sim, no fundo, até chegarmos à versão final da música que gravámos, há ali momentos de adaptação e de pensamento. A partir do momento em que a música está fechada, há poucas variações em palco, ainda que nós tenhamos um timing do concerto e, especialmente agora com o vídeo, não há uma sincronização ao milésimo de segundo, mas há um diálogo com a imagem. Portanto, dentro de um determinado tempo de cada uma das músicas, há alguma flexibilidade, que às vezes um demora um bocadinho mais, um bocadinho menos, mas não há mudanças radicais e não há um espaço para improvisação livre no concerto. E isso acho que também tem a ver com a maneira como nós trabalhamos, que é pensar nos temas, fechá-los e reproduzi-los. De uma forma os concertos são momentos suaves de partilha, e uma coisa engraçada também é que em todos os concertos, na verdade, nós acabamos por criar uma bolha nossa, dos dois, mas em que nem olhamos propriamente um para o outro, porque estamos em diálogo musical e as pessoas estão a assistir a essa bolha. Quase que não olhamos para as pessoas durante o concerto, não há palmas durante os concertos, portanto é um… Por isso é que as pessoas muitas vezes dizem que a nossa música é muito cinemática, tem este lado de… Há algo que acontece, começa na primeira nota e termina na última, quer seja piano, quer seja eletrónica. Acho que isso se viu de uma forma muito clara no There’s No Knowing. Nós pensámos no concerto como um todo, mesmo um grande arco. Na altura, quando estávamos a começar a pensar nisto, ouvi o disco Promises do Floating Points com o Pharoah Sanders e, não tendo nada a ver a música, havia esta ideia de elementos que se repetem, mas há qualquer coisa sempre a acontecer, depois acrescentam, tiram, põem…

Fizeste questão de dizer que não há espaço para improviso, portanto não há jazz dentro desta música, mas há pelo contrário, pela forma como tu a descreves, quase que uma aderência àquilo que nós entendermos serem as grandes regras da música clássica, não é? Há um repertório que é escrito e executado tão fielmente quanto possível, é isso?

[JG] Nós podemos dizer que sim.

[LF] Sim, nesse sentido tu descreveste, Rui, de que existe um guião, uma partitura que nós seguimos fielmente, sim. Apesar de ter algumas especificidades que não têm tanto a ver com esta ideia de música clássica, quer pela notação, quer por às vezes também termos algum espaço em que, apesar de estar determinado em termos de plano, a sua execução é um pouco deixada em branco, ou à nossa consideração, nomeadamente as partes em que há as manipulações, nunca vamos fazer as coisas de uma maneira…

[JG] Mas a música clássica também tem esse espaço, em muitos casos, compositores mais recentes põem algo como, “durante este tempo, façam uma pequena improvisação.” Não deixa de ser uma partitura.

Eu gosto de pensar que o Bach só não usou sintetizador modular porque não existia naquele tempo, porque se tivesse existido, ele teria usado. Uma última pergunta, o que é que vem a seguir? O Royal Albert Hall já está marcado? Lincoln Center?

[LF] Essa é uma pergunta que ainda ninguém fez, é verdade, Rui, parabéns [risos]. Também é uma pergunta para a qual se não temos nenhuma resposta. Estamos tão focados nisto que vamos fazer agora. Aproveitando a tua pergunta, também deixo uma reflexão, que é: em Portugal, pelo menos neste universo em que nós nos movemos, e muitos outros artistas como nós, é um universo que não é muito fácil para rodar estas propostas. Nós não nos podemos queixar, nós até temos bastantes concertos marcados, mas são sempre ciclos relativamente curtos e que não permitem que haja uma circulação, também pela escala do país e, às vezes, também pela forma como as estruturas privilegiam algum tipo de propostas, se quer mais imediatas ou com mais capacidade de atração em relação a outras que precisam de mais estímulo. Isto leva a que nós estejamos muito focados em tentar fazer isto bem, com a perspectiva de fazermos mais vezes, mais uma ou outra data. E, repito, nós até somos um mau exemplo, porque temos bastantes actuações. Remato com isto. Projectos como o nosso acabam por ser um pouco ingratos. Primeiro, há que considerar a questão geográfica. Na música em que nós fazemos, a partir de Portugal, é muito difícil furar para fora. Há poucos exemplos de artistas deste espectro que consigam. Ainda por cima no formato duo com uma produção… A nossa produção não dá para tocar em qualquer lado. Requer um teatro grande, um piano, etc. Não é um solo de electrónica que se pode fazer em qualquer lado, desde uma cave ou auditório. Como tu sabes, a capacidade de furar lá fora também depende de tudo o que está à tua volta, desde agente de booking, editora… E nós gostamos imenso da editora que temos, mas é uma editora portuguesa e, por mais que se esmere, tem sempre essa limitação. Só se estivéssemos na Erased Tapes é que nós tocaríamos mais facilmente, porque tem aquele selo. Mas esse selo é difícil de ter vindo de um país como Portugal. Tirando poucas exceções, como a Clean Feed e a Príncipe Discos, não há muitas mais editoras que tenham essa capacidade de internacionalizar. Mas nós, como a Joana disse, vivemos bem com isso. Não é que nós procuremos. Se acontecer, espectacular. Já aconteceu, na verdade. Fizemos pelo menos uns 10 concertos em diferentes locais lá fora.

[JG] Sim. Cabo Verde, Nova Iorque, Berlim, Luxemburgo.

[LF] Brasil. Dumfries, na Escócia.

[JG] O Cafe Oto também, em Londres.

[LF] Já fizemos alguns. Fizemos bons concertos.


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