E se no duo de música electro-acústica de Joana Gama e Luís Fernandes com o novo disco e espectáculo Strata se assumem nomes geológicos, abrimos o dicionário dos termos e fazemos aflorar outros mais. Aliás, o que se espera de um concerto é mais de que um disco em palco, e desde logo essa matriz fica registada no perfil estratigráfico que os elementos sonoros e visuais elencam com a estreia em espectáculo do seu sexto longa-duração. Esta mesma sala lisboeta, Culturgest, tem funcionado como sítio de desponta das apresentações ao vivo dos discos da dupla. Foi assim com o último There’s No Knowing, em meados de Janeiro de 2022, e estamos de volta para assistir neste mesmo mês primeiro do ano a nova estreia, agora em 2025 para Strata.
Dez anos desde o começo de criação conjunta permitem novos focos e desafios ao duo. O que se assiste em diante trata-se em muito duma assunção dessas fissuras, de cortes, planos de quebra, sem que contudo haja ou se denote movimento relativo das partes. Diz-nos o léxico geológico que falamos de diaclases quando assim se trata, quando se observam planos de quebra da matéria rochosa, esteja estratificada ou não. Mas esta matéria apresentada é em todo assumida e escutada como feita de camadas, que acumulam e acomodam o tempo, que integram os elementos sedimentados e os fazem perdurar. O começo envolvente de um tonante trovão, como que matriz para além da acústica natural da tormenta, naquilo que fica desde logo perceptível de gravações de campo em muito transformadas às mãos escultóricas sonoras de Fernandes. E nisto uma pianista em contraponto, mas escutando, acompanhando com silêncio vindo como som do seu instrumento de cauda completa. Há nisto uma presença que harmoniza, e que confere corpo estratiforme, uma linha-tempo, um rumor corporizado. Contudo nesta nova criação acústica a dupla conta com a presença das imagens e para isso há nebulosa longínqua, acarreiam-se as imagens em movimento da tela, mas sendo lentas e adensando a atmosfera. A matriz das imagens que Eduardo Brito faz acompanhar permitem respirar outras sonoridades na mesma medida que os sons de piano e electrónica vislumbram outras imagens que não as visionadas diante. Há nisto um dialogo aparentemente desligado, mas agregado, como quando se descrevem os estratos, entre anisotropias e pontos ligantes, entre a matéria cristalina e a matriz amorfa.
Dá-se um ponto crítico, onde se esclarece visualmente a dramaturgia dos sons e imagens em palco. Há um plano diametral, vertical e que varre o cenário, contendo em igual medida uma mediana esclarecedora. Notável desenho de luz de Frederico Rompante. E fica inscrita em cena uma diaclase ciânica na tonalidade, nebulosa na textura e brilhante na leitura da narrativa. E passamos ao campo das ilusões, uma vez que a natureza das fissuras dos estratos define-se pela ausência da matéria, aqui assumido, e que conduz ao um leitmotif, os recorrentes temas, quer na melodia do piano, quer nas imagens — os silêncios.
Aqui em Strata, em palco como corpo de música e das imagens em movimento, há um processo de lentidão em curso, onde impera a natureza sedimentar de entre os processos que levam à estratificação. E quando percorremos a sucessão sedimentar trazida pelo empilhamento dos estratos, nisso se desvela um passado longínquo, assim se traduz na construção a criação em palco. Um processo retomado pela ligação das gravações de campo, com texturas da electrónica modular e percorridas pelas melodias do piano de Joana Gama, que escutam esparsas, entre marés, que respondem a ciclos (pre)escutados. Esta alternância ondulante, materializa-se nas camadas que se vão acumulando e registam o tempo vivido — as linhas cronológicas. Também na estratigrafia das rochas se podem evidenciar elementos como padrões evolutivos e passamos a desvendar uma história. Nesta, que o palco transporta, há camadas que unificam uma cronologia vivida, pelos desenhos sonoros — sincrónicas. Outras há onde se ligam tempos sonoros desfasados — sons gravados acompanham os que se desenvolvem no tempo presente, e ainda quando dos sons, na mesa de trabalho adjacente ao piano se fazem recolhas de campo em tempo real. Um detalhe e minúcia num desenho de som que se deve a Suse Ribeiro. Tudo isso junto, no mesmo estrato sonoro, remete para eloquentes diacronismos.
Estes campos de diálogos traduzem a abertura a novas e magníficas possibilidades na música do duo Joana Gama e Luís Fernandes. Se até aqui, em muito dos seus percursos artísticos, tinham feito da abstracção electrónica e harmonia em piano um modelo transmissor de mundos possíveis dados a conhecer, daqui mostram uma concreta forma do que se ouve e vê, precisamente inscrita em estratos, como arquivos que permitem ajudar a contar como foi.