pub

Fotografia: Pedro Mkk
Publicado a: 18/07/2024

Os coretos ainda são o lugar da música.

Jasmine Myra no Matosinhos em Jazz’24: elevação directa em discurso confesso

Fotografia: Pedro Mkk
Publicado a: 18/07/2024

Domingo é dia de sair, de casa, da rotina — é o dia mais consensual para desopilar. É o dia da semana quando, culturalmente e mesmo entre doutrinas dominantes, se descansa. Sendo muitas vezes o momento quando maior disponibilidade há para receber o que traz a elevação do espirito — a música, pois então. Os jardins das cidades, vilas e aldeias estão entre os locais predilectos onde os que passeiam num domingo à tarde se encontram. Jardins há — e são ainda mais do que se imagina — os que têm ao centro um belo e estimado coreto. Porém são menos — poucos até — aqueles que ainda servem a função para que foram feitos — serem palco da música. O ciclo Matosinhos em Jazz, em mais uma edição, faz do coreto do Jardim Basílio Teles uma vez mais o palco para a sua programação. A excepção será a dos concertos de encerramento do festival dias 25 e 26, onde encontram na Praça Guilhermina Suggia outro placo. Mas isso porque será o momento das Orquestras, de Jazz de Matosinhos com Nick Marchione (dia 25) e a Sinfónica do Porto Casa da Música e DJ Switch (dia 26). E como as Bandas Filarmónica aqui do burgo, as Orquestras cresceram muito em músicos e já não cabem nos convencionais coretos. 

Jasmine Myra é uma das vozes autorais que o novo jazz britânico tem revelado. Na companhia de uma jovem formação de músicos que reuniu para corporizar a sua música, apresentou-se em estreia absoluta em Portugal em Matosinhos, no coreto num domingo festivo e timidamente ameno. Myra tem registados na Gondwana Records dois cristalinos álbuns — Horizons de 2022 e Rising deste ano. Assim como se demonstrou na entrevista de antevisão do concerto, as ideias que a sua música transporta são de uma beleza sincera e confessa, razão para o que tem a revelar ser tão cristalino e de simplicidade cativante.

Myra em saxofone alto fez-se acompanhar no coreto com muitos dos que a acompanham no ultimo disco. Com ela subiram Arran Kent (flauta transversal e clarinete baixo), Jasper Green (teclado Nord), Ben Haskins (guitarra eléctrica), Alice Roberts (harpa), Sam Quintana (contrabaixo) e Greg Burns (bateria). Com Jasmine no coreto, estava corporizado um septeto de jazz, com uma frescura assumida, pela música e pelos músicos que faziam crescer. E para isso mesmo o começo é assumido com “Rising”, tema-título do recente registo. Ficamos de pronto sob os desígnios sedutores de uma melodia servida para elevar, onde a voz do saxofone alto, do clarinete baixo e harpa fazem subir o espectro a pique. Jasmine Myra na sua composição concebe o espaço para os demais instrumentos que a acompanham e neste primeiro é Green que sobressai em fraseados cintilantes desprendidos tema adiante. 

Myra aproveita o concerto de estreia entre nós para revelar assumidamente a sua música e mais ainda a sua ética na música. Há uma aura de candura que a acompanha e que se traduz numa “música muito pessoal” que conta “sobre processos de crescimento pessoal e autoconfiança”, assim é confesso em discurso directo e devidamente aproveitado pela saxofonista de viva-voz honesta nas palavras entre músicas. “Still Waters”, fala dos processos de passagem de introversão à extroversão. Do desprendimento portanto, fulcral em Jasmine Myra, pessoa e autora. A melodia em flauta com que o tema descola é deveras um balanço sem volta a trás, um impulso. Em disco e na composição é o de Myra, ali no coreto faz-se no silvo de Kent, mas é invariável no propósito. Música sincera, de melodia assertiva, directa ao lugar. 

O processo pessoal de Myra e da sua música nessa construção já havia começado a desenhar-se em Horizons, é por isso que alinhado estava “New Beginnings”, como elo de ligação no discurso. Esse tema final de Horizons trata “da importância do recomeço”, perante os momentos adversos há num recomeço o lugar vital. Uma vez é a interlocutora Myra que o assume, apresentando na razão o que se vai ouvir. “Glimmers” de volta a Rising, tem uma matriz de guitarra harpejada em avanços lampejantes e que faz luzir o caminho. Esse mesmo caminho que se faz, “sair para caminhar” para “se ser confiante, para ultrapassar o obstáculo pela perda do emprego e a do inseparável amigo canino” — Myra conta-nos tudo, porque assim a música ainda se torna mais transparente, translúcida e cristalina. Hás vezes nesses momentos em que batemos no fundo, e é a voz a melhor amiga que, com a eficácia precisa, vem dizer que isso é o impulso para emergir, relembra Jasmine Myra para ligar o discurso à música “How Tall The Mountains”. Neste tema o clarinete baixo tem uma expressão essencial a par do alto, Myra sabe-o bem, e que interpretamos que a voz grave se ocupa do desenhar da grandeza e da raiz do relevo rochoso ao passo que os cristalinos fraseados do alto mostram os cumes e além deles. Dos uníssonos das vozes se dança tema afora uma melodia em ritmo crescendo. 

A identidade autoral da música de Jasmine Myra — ainda que como saxofonista — é em muito devida à impressão cravada pela matriz de ligação harpa e clarinete baixo. “Knowingness” é disso mesmo um notável exemplo, tema que fecha o lado A em disco e a prestação de estreia no Matosinhos em Jazz. A harpa de Alice Roberts que Myra tem como imprescindível na sua música é, uma vez mais, força motriz, e entre cadências e glissandos leva-nos em longuíssima viagem para onde importa ir — ainda que sem saber para onde. Afinal, e como transpõem as palavras da autora: na música “importa mais a viagem que o final… Que o destino”, num adágio do que o que está para acontecer valha muito menos que o que se está a viver no instante. Este momento, aqui e agora é (foi) feito de coisas assim, simples e belas, da natureza humana confessa.


pub

Últimos da categoria: Reportagem

RBTV

Últimos artigos