A compositora e saxofonista Jasmine Myra vai apresentar-se neste domingo (dia 14) no Matosinhos em Jazz’24, festival que este ano conta também com as presenças de Moses Boyd (dia 13), Ego Ella May (dia 20) ou Eduardo Cardinho (dia 21). Os concertos acontecem no coreto do Jardim Basílio Teles, sempre às 18h.
A música de Myra é descrita como “som eufórico e edificante, influenciado por artistas tão diversos como Kenny Wheeler, Bonobo, Ólafur Arnalds e Moses Sumney”. Conta com dois registos de longa duração que a confirmam como autora de ideias brilhantes e cristalinas que devem ser tidas em conta da nova e criativa reformulação do jazz vindo de Inglaterra. É uma brisa de ar fresco, inspirada e com um poder de transporte imediato para a beleza das coisas simples.
Numa ligação à distância, antecipando a sua viagem até Matosinhos, foi possível conhecer ideias e motivações que traz com as suas composições. Num registo que transpôs a barreira da comunicação remota e criou a atmosfera de candura que a sua música deixa realmente transparecer.
Ambos os teus álbuns foram gravados para a Gondwana Records, a editora que Matthew Halsall tem vindo a construir com grande identidade. Se os ouvíssemos sem saber isso, tanto Horizons como Rising, seria consensual imaginá-los nessa editora. Gondwana é um daqueles casos que junta artistas de várias áreas, como o supercontinente que juntou várias placas tectónicas que hoje são continentes separados. Como é fazer parte dessa turma e ajudar a contar a história do jazz atual?
É muito interessante o comentário que fizeste sobre a música que faço. Sinto-me tão bem por fazer parte da Gondwana. E é interessante, antes de ter assinado com eles e antes de ter feito estes álbuns, o meu plano, como um sonho meu, era trabalhar com a Gondwana. Eu conhecia-os e tinha planeado fazer um álbum e depois abordá-los. E foi por coincidência que o Matthew Halsall me contactou antes dessa altura e perguntou se podíamos trabalhar juntos, porque ele estava familiarizado com a música que eu estava a fazer em Leeds na altura. Por isso, parece-me muito correto trabalhar com eles e quase como se estivesse destinado a acontecer. Eu, o Matthew e toda a gente da editora damo-nos muito bem e sinto que somos pessoas muito parecidas, na medida em que somos apaixonados pela música, mas bastante descontraídos. Damo-nos todos muito bem e, por isso, funciona tão bem e estou muito grata por fazer parte dessa família.
A Gondwana Records é um caso claro de editora que nos desafia ao ponto de nos deixar com uma dupla possibilidade de saber se são os artistas que a definem ou se é a sua identidade sonora que molda aqueles que nela publicam. Como é que vês isto? Qual é a tua perspetiva?
Não sei se há uma resposta única. Acho que é provavelmente uma combinação das duas, e isso é o que é tão brilhante no Matthew e em toda a gente que gere a editora, é que eles permitem que ela se desenvolva e cresça através da audição e do acompanhamento dos seus artistas. E é como se, ao longo dessa viagem, estivessem a convidar novas pessoas para se juntarem, e elas podem trazer um sabor diferente à mistura, e são bem-vindas e ouvidas e depois continua a crescer e é assim que a música deve ser, certo. É bela na medida em que está sempre a moldar-se e a desenvolver-se e reflecte o que está a acontecer nas nossas vidas, nas nossas sociedades e nas nossas diferentes culturas, e é assim que deve ser. Quero dizer, na Gondwana fazem-no de uma forma tão inteligente porque têm um som tão forte e é tudo muito coeso. Mas se olharmos para os diferentes artistas da editora, cada um tem o seu próprio estilo. Acho que não dá para comparar muito cada artista, mas todos nós nos encaixamos nesse som de certa forma. Isso é muito claro.
Ouvir Rising, que tem recebido críticas entusiasmantes, transporta-nos imediatamente para o mundo natural. Ainda ontem, enquanto ouvia novamente o álbum, um bando de garças brancas sobrevoava o exterior, uma espécie de ligação perfeita. Parece que somos transportados na asa de um desses pássaros, voando alto sobre a paisagem. Quando compões canções como “Rising”, em que tipo de ambiente te colocas?
Essa é uma óptima pergunta. É engraçado porque estava a falar sobre isto recentemente. Vivo com outras pessoas criativas e elas também escrevem a sua própria música. Por isso, é bom. Às vezes, sentamo-nos juntos ao jantar ou assim, e estamos sempre a falar dos nossos processos criativos. E eu escrevo música na minha casa e é um processo muito pessoal e solitário, em que gosto de estar sozinha e ter espaço para pensar, por isso, quando estou a escrever, não me inspiro no que me rodeia. Mas eu e os meus colegas de casa estávamos a discutir recentemente a importância de ter de sair de casa e ir lá para fora para nos inspirarmos. Temos de nos inspirar para que a inspiração flua para fora de nós. Por isso, acho que me esforço muito para me inspirar e é engraçado o que estás a dizer sobre a ligação com a natureza. Uma coisa que tenho achado muito útil recentemente é ir e estar em lugares muito pacíficos que se sentem desligados da sociedade e das cidades e apenas têm esse ar fresco e espaços verdes, e acho que isso é algo que me tem inspirado bastante e me faz sentir muito calma, de modo que quando chego a casa, sinto-me cheia e pronta para colocar as coisas no papel. Por isso, quando estou a escrever, não vou a espaços bonitos, mas tento fazer isso pelo meio.
Alguma vez tiveste o desejo ou foi-te proposto compores uma banda sonora de um documentário sobre a vida selvagem? Esta ideia parece-me muito plausível, muito bonita de facto, se acontecer.
É uma óptima ideia. Sabes, eu sempre quis e espero que um dia no futuro eu possa fazer trabalhos comissariados, talvez escrever para filmes ou algo do género. É um sonho que tenho para o futuro. Mas também para um programa sobre natureza, é uma óptima ideia. Eu adoraria fazer isso.
Tocas a maior parte das canções em saxofone alto, mas em “Still Waters” revelas-te uma Jasmine flautista que é absolutamente capaz de nos fazer voar. O que é que te inspira e em que voz pensas imediatamente quando compões? Quando sonhas em tocar, qual é o teu instrumento?
Estas são todas perguntas muito boas que não me fazem muitas vezes, como quando me sento a escrever. Quero dizer, penso em mim primeiro como compositora e depois como saxofonista, para ser completamente honesta, o que é estranho, tendo em conta que comecei a aprender saxofone e mais tarde percebi o quanto gosto de escrever. Mas quando me sento e escrevo, nunca tenho o meu saxofone comigo. Escrevo com, bem… uso o Sibelius, o software para anotar tudo, e através dele ligo-me a um teclado MIDI para poder ouvir os diferentes instrumentos. Os sons MIDI são terríveis, mas consigo ouvir o baixo e a harpa e tudo o que quero neste teclado, e é assim que escrevo. Nunca é igual, muda sempre, depende realmente do que me vem à cabeça primeiro. Quero dizer, quando estou a escrever, sigo muito o meu ouvido e tento não filtrar muito, e deixo sair tudo. Por isso, pode começar com qualquer instrumento, dependendo de como me estou a sentir. Talvez pense numa melodia ou num riff ou algo do género, e posso até experimentar com que instrumento quero que comece, ou com diferentes combinações, mas nesse momento não estou a pensar em mim como música ou no saxofone a liderar nada, e isso é provavelmente audível na minha música. O saxofone não lidera sempre e eu gosto de dar aos diferentes membros da banda o seu momento de brilhar e de celebrar os diferentes instrumentos e a forma como penso que isso faz realmente diferença na canção e no som da energia, dependendo do instrumento que está a tocar a melodia. Isso é algo em que tento pensar muito quando estou a compor.
“Knowingness” mostra-nos desde o início que Alice Roberts é uma harpista inspirada e inspiradora. Tive a oportunidade de a ouvir na formação que Matthew Halsall trouxe a Lisboa no inverno passado no Misty Fest, e foi maravilhosa em palco. Tem o nome de uma harpista — e que harpista —, que foi Alice Coltrane no jazz. Podes falar-nos mais sobre esta Alice Roberts? É essencial tê-la na tua música, não é?
Oh, sim, a Alice é incrível! Eu adoro trabalhar com ela. “Roubei-a” ao Matthew. Conheci-a através dele. Ele sugeriu que eu começasse… Bem, eu tinha escrito uma melodia para harpa. Quando estava a escrever Horizons, estava a pensar nas possibilidades mais antigas em que este projeto e esta banda se poderiam tornar. E estava a escrever escolhendo instrumentos de músicos com quem queria tocar e que conhecia no Reino Unido, e então escrevi uma melodia para harpa. Não era realmente para a Alice, e nunca tinha escrito para harpa antes, mas adorei tanto. Adorei escrever para harpa e adorei o seu som. Lembro-me de discutir isso com o Matthew e ele aconselhou-me a continuar a escrever para harpa, porque não só é linda, como fica incrível em palco e não há muitas bandas que tenham harpa e isso é um atrativo. Por isso, continuei a escrever para harpa e a sua natureza etérea encaixou tão bem na minha música que me pareceu mesmo correto. Depois comecei a trabalhar com a Alice a tempo inteiro e ela é simplesmente… sim, ela é incrível! É uma pessoa brilhante para se trabalhar com. Tem uma atitude tão boa. Ela é engraçada, ela é… Adoro-a como pessoa, mas no palco ela tem esta confiança e é simplesmente… Sim, estou um pouco sem palavras para o que posso dizer sobre ela, porque ela é tão… Tens razão, preciso dela na minha banda, ela é brilhante!
Por isso, ela virá convosco no domingo, de certeza.
Sim, ela vai lá estar!
Mas, claro, há mais músicos que te acompanham nesta viagem, como Jasper Green nos teclados, que também se juntou a Halsall nesse concerto que falava. Podes revelar quais os músicos que vão fazer parte do concerto de estreia em Portugal no Matosinhos em Jazz, no domingo?
Sim, claro. Então, sim, Jasper Green, que o Matthew me roubou [risos]. Sim, está 1 a 1, está bem! Estará Sam Quintana no baixo, contrabaixo. Trago toda a banda exceto o meu baterista, que não pode vir — mas todos os outros gravaram comigo os álbuns. O Ben Haskins na guitarra, que eu conheço de Leeds. A Alice vive em Manchester, mas a maior parte destes músicos vive em Leeds, que é de onde eu sou e onde nos conhecemos todos. E, sim, normalmente é o George Hall na bateria, mas temos um substituto este domingo, um grande amigo meu chamado Greg Burns, que é um baterista fantástico. Estará o Arran Kent na flauta e no clarinete baixo. O Arran toca o solo em “Knowingness”, e em “Rising”.
Então, vais estar dedicada apenas ao saxofone alto, suponho.
Sim, exactamente.
Imagino que será uma espécie de impossibilidade voltar a ter, como no disco, as cordas, os quartetos ou os instrumentos de corda em palco.
Não, infelizmente. Esse é um sonho meu. Nem sempre é viável, mas um dia será.
Bem, talvez nem te tenhas apercebido, mas vais tocar num coreto no meio de um jardim, no domingo.
Suspeitei que sim, tinha visto algumas fotografias. Estou realmente ansiosa.
Os coretos são sítios que estão tão esquecidos entre nós, foram feitos para que a música acontecesse, e estão aí nos jardins, espalhados pelas cidades e aldeias. Os domingos eram os dias para isso. Parece que tudo se encaixa na perfeição para o vosso concerto.
Vai ser lindo! Vi uma fotografia de pessoas sentadas a ver a música e espero mesmo que as pessoas se possam sentar na relva enquanto tocamos, e vai ser muito descontraído e casual, e o sol vai estar presente. Sim, mal posso esperar, vai ser lindo.
O teu jazz é descrito por muitos como jazz espiritual, ou como novo novo jazz britânico, o que pode parecer uma forma limitadora de rotular a tua música. São dois grandes chavões. Como é que o vês isso por dentro? É mais uma estratégia útil para a música ser partilhada ou sentes que é um lugar confortável de se estar? É claro que a presença de uma harpa ajuda imediatamente nessa rotulagem do espiritual…
Sim, não me importo nada que lhe chamem isso. Eu não o teria rotulado. Nunca pensei que fosse jazz espiritual até as pessoas começarem a chamar-lhe isso e então pensei… Bem, sim, acho que é. É espiritual, e suponho que sou uma pessoa espiritual. Sabes, sou muito positiva nesse sentido e estou a pensar na atenção plena e em como estamos ligados uns aos outros, ligados a este mundo. E suponho que, de certa forma, essa é uma maneira espiritual de pensar. Eu, na verdade, chamaria a minha música de jazz contemporâneo, porque sinto que é daí que vêm as minhas influências. Estou sempre a falar do Kenny Wheeler, que é a minha maior influência, e ele faz música jazz contemporânea. Por isso, é assim que o vejo, mas acho que é espiritual. Mas às vezes até me questiono se é música jazz, pois é influenciada por outros géneros, como a folk, e acho que a minha música é uma forma de jazz bastante acessível. Por isso, às vezes até me pergunto se o rótulo de jazz é completamente apropriado, sabes? Mas não me importo com os rótulos e acho que os rótulos podem ser úteis, mas também podem ser limitadores ao mesmo tempo.
Actualmente, os lançamentos em vinil têm uma merecida relevância editorial, embora exista também um mercado especulativo associado que estraga um pouco esse lado mais bonito. Rising conta com uma edição em BioVinyl, um tipo de material apresentado como uma alternativa sustentável e responsável ao vinil tradicional. Será que todos nós, que consumimos música em PVC, podemos ser mais conscientes do ponto de vista ambiental com esta solução? Estás consciente disto ou foi apenas algo que veio da editora?
Quero dizer, honestamente, que também não sei muito sobre isso [risos]. É algo que a editora quis avançar e aconteceu que o meu registo foi o primeiro a ser lançado no novo material, mas não sei muito sobre isso.
E, claro, é inevitável perguntar: haverá discos disponíveis depois do concerto? Acho óptimo poder-se comprar música diretamente aos músicos, é como comprar fruta e legumes locais diretamente ao produtor e, neste caso, “biológicos” ou algo próximo disso, dentro do tema que mencionei atrás.
Sim, vou ter alguns vinis e CDs depois do espetáculo. Quer dizer, se isso for permitido — presumo que não haverá problema.