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Texto: Paulo Pena
Fotografia: Guilherme Cabral
Publicado a: 21/10/2024

Há espectáculos que pedem — e merecem — uma plateia livre.

Janeiro no Capitólio: sentado, com gente à minha volta…

Texto: Paulo Pena
Fotografia: Guilherme Cabral
Publicado a: 21/10/2024

Incompreensível. Inconcebível, na verdade. De certa forma, obsceno, até: que a irremediável boa-disposição de Janeiro, a inesgotável energia que o autor de FUGACIDADE trouxe à apresentação, em Lisboa, do seu mais recente trabalho em nome próprio esbarre num Capitólio a fervilhar em assentos mandatórios. Nada que, felizmente, impedisse o músico e compositor de Coimbra, com a sua banda e o seu público, de fazer a festa noite de sábado passado adentro. Mas que essa festa poderia — e deveria — ter tido outros contornos, dessa certeza não se duvide. Afinal, “fazer a festa”, como vulgarmente se populariza, é coisa que Henrique Janeiro leva à letra desde que se apresentou de forma homónima faz em Abril uma década. Quase dez anos depois, já com o seu segundo longa-duração a solo em mãos, a folia continua, agora em dose reforçada, porque FUGACIDADE assim o exige. Ou exigiria… Não fosse o Capitólio inusitadamente transfigurado.

Longe de fatalismos, apesar de tudo. Bem pelo contrário, o que fica desta noite é um tom inolvidável de celebração que se instalou do palco à plateia ao longo da hora em que Janeiro e companhia tocaram velhas e novas canções. E, em boa verdade, a disposição da sala, preenchida por fileiras de cadeiras de uma ponta à outra, não chegou para conter a euforia da esmagadora maioria dos espectadores pregados às bancadas. Pregados quanto baste, mesmo assim… “Solidão”, como seria de antever, serviu de “basta!” generalizado e fez levantar, finalmente, as centenas de fãs de Janeiro, reféns dos seus próprios lugares, nesse momento em rebelião ao som do hino que, nas entrelinhas, apela justamente ao que neste cenário — remotamente pandémico… — se afigura contraditório: “Calado, com gente à minha volta / Não, não sinto nada na multidão (…)”.

Nem calados, nem apáticos. O completo oposto desse marasmo: manifestações em alto e bom som de todos os cantos, desde “És lindo!” às mais variadas e estridentes interjeições a puxar pelo jogo de cintura de Janeiro. Do lado de lá, respondia ele com todo o entusiasmo que o caracteriza, um ímpeto renovado pela dimensão funky do seu novo disco — por aqui dissecado em entrevista recentemente publicada —, sem, no entanto, perder esse fulgor na viagem de regresso às cantigas de amor que cedo conquistaram estas gentes.

E se não podíamos nós, audiência, abandonar os nossos lugares em prol do ritmo e da melodia, veio Janeiro ter connosco, como magnânimo anfitrião que é; como Maomé que vai à montanha, porque a montanha, aqui, não teve outra escolha que não sê-la. O descontentamento de quem se viu impedido de dançar a seu bel-prazer, de circular, encontrar e saudar caras conhecidas à vontade, de ir buscar uma bebida e não ter de esperar pela faixa seguinte no alinhamento para poder voltar ao seu desapropriado lugar, era manifestamente visível, ainda para mais do alto das bancadas traseiras, de onde tal perspectiva panorâmica nos distraía do que realmente importava.

Novamente, insuficiente para, ainda assim, defraudar as expectativas de quem acompanha Janeiro desde, pelo menos, Fragmentos — disco com o qual o autor nos garantiu já ter feito as pazes, depois de uma primeira saturação inevitável —, e que tudo fez ao seu alcance, dentro dos inexplicáveis limites normativos, para aproveitar ao máximo a presença solar de um músico francamente cândido e virtuoso. Nessa medida, todo o seu espectáculo se proporcionou à sua imagem: por um lado, honesto; por outro, contagiante. Mas merecia, ainda assim, um pouco mais que isso. Porque fugaz é o momento que nos distrai indefinidamente da solidão. Quanto mais se mal aproveitado.


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