Sim, a curadoria foi da pessoa que conduz os destinos desta casa, Rui Miguel Abreu, mas isso não nos impede de olharmos para o que ao longo de três dias tomou conta da Praça Marquês de Pombal, em Aveiro. JAM – Hip Hop & Jazz foi a designação escolhida para um programa que levou concertos, DJ sets, conversas e workshops à cidade dos canais. O curador do evento teve, durante uma das conversas que conduziu, aliás, a oportunidade de explicar ao público presente que teria sido “fácil demais” limitar o programa a espectáculos e DJ sets, mas que entendia que esta era uma oportunidade demasiado boa para não fazer “algo mais ambicioso”: “estes momentos de conversa e partilha, as oficinas, são o que oferecemos a uma cidade quando em troca lhe pedimos atenção”, explicou.
O JAM teve lugar num sítio deveras curioso: a arejada Praça Marquês de Pombal é ladeada por uma belíssima igreja do século XVII — cuja visita muito se recomenda —, a Igreja das Carmelitas, por um edifício que centraliza os serviços da Polícia de Segurança Pública e pelo Tribunal. E o curioso é que num lugar tão “vigiado” — moral e judicialmente — sentiu-se verdadeira liberdade em três dias de actividade ao longo dos quais, coisa digna de nota, toda a gente andava de sorriso bem largo estampado no rosto.
O primeiro dia começou com uma fantástica palestra do rapper Maze. O veterano dos Dealema conduziu os presentes — muitos deles ligados à comunidade hip hop local — através da sua carreira, falou da sua abordagem à escrita, do livro em que reuniu algumas das palavras que rimou, de como encontrou a sua distinta voz e partilhou de forma generosa o seu amplo conhecimento sobre esta cultura. Um primeiro momento bonito a que se seguiu uma conversa para a qual foram também convidados os locais Outsiderz, colectivo que se apresentou ao final da tarde, distribuindo com carisma barras e batidas que falam daquele território e se prendem àquelas gentes. Os aplausos generosos foram mais do que merecidos.
Depois de jantar, subiu ao palco primeiro o trio de Sérgio Alves, aka Azar Azar. O artista da Jazzego fez-se acompanhar por Hugo Danin na bateria e Pedro Ferreira no baixo, duas máquinas potentes de groove que forneceram a base que Sérgio coloriu melódica e harmonicamente com os seus teclados, num jazz de fusão que nunca se esqueceu que havia por perto um MC que sabe como e quando encaixar as palavras. O bounce do hip hop esteve sempre presente. Partindo do cruzamento que rendeu disco em Sub-Urbe Vol. 1 (Maze prometeu-nos que haverá volume 2), editado pela Monster Jinx, Maze e Azar Azar — que ali assinaram a sua primeira apresentação conjunta de sempre! — foram mais longe. A dada altura, ouviram-se as imortais rimas de “Brilhantes Diamantes” por cima de uma versão de um clássico de J Dilla e foi como se aquela canção nunca tivesse conhecido outras roupagens. Que estes dois mestres tenham feito tudo isto sem um único ensaio, gizando o plano de “ataque” apenas durante o soundcheck, é a mais clara prova de que a ideia proposta pelo JAM de facto funciona: é que tanto o jazz como o hip hop — como, aliás, se ouviu repetidamente nas conversas ao longo dos três dias — partilham uma mesma paixão pela criação instantânea, pelo improviso. E com Maze e Azar Azar tal prática rendeu momentos de brilho intenso.
A noite terminou com um DJ set de Rui Miguel Abreu que só tocou discos de vinil de 45 rotações de jazz e arredores (ouviram-se também malhas clássicas dos De La Soul, por exemplo), mas que teve mais um momento de claro improviso quando desafiou MCs presentes a virem ao palco — algo não planeado — para deixarem as suas rimas em cima de temas de jazz com swing pronunciado. Que tenha resultado tão bem é apenas mais uma prova de que estas são duas culturas comunicantes. Na fachada do edifício da polícia que servia de fundo ao palco estavam a ser projectadas as criações em tempo real de Carlos Quitério, artista plástico que foi criando ilustrações ao vivo, umas mais claras, outras mais abstractas, respondendo de improviso ao que a música lhe ia sugerindo. O Instagram agradece, claro.
O concerto de LANA GASPARØTTI com o DJ Gijoe foi o ponto alto da segunda jornada do JAM. A pianista, teclista, compositora e cantora trouxe consigo Sebastião Bergman na bateria e Pedro Barroso no baixo eléctrico e convidou ainda o seu produtor Rafael Correia, que assina produções como Sickonce e responde ao nome Gijoe quando actua como DJ, para a acompanhar em palco, como scratcher.
Esse segundo dia começou com Rafael a usar o seu chapéu de produtor para, em palco e rodeado de gente atenta — muitos beatmakers da zona compareceram —, desmontar vários dos seus beats explicando a sua criativa abordagem ao sampling. Deu para perceber, por exemplo, o que é que acontece quando Sickonce se enamora de um clássico de Caetano Veloso com os Mutantes… Em momento de verdadeira partilha, houve espaço para perguntas e para revelação de “truques” que tantos outros artistas gostam de resguardar. Generosidade total por parte de Rafael Correia. À conversa compareceram Gijoe, LANA GASPARØTTI e ainda GOTY, falando-se sobre o percurso académico da pianista e as práticas musicais que tendem a estabelecer pontes entre culturas e escolas diferenciadas.
Nessa tarde, foi a GOTY, DJ local, que competiu fechar a primeira parte dessa segunda jornada, com um set elegante de batidas de personalidade clássica bem vincada. Depois de jantar, LANA GASPARØTTI subiu ao palco com o seu power trio e desfilou temas do seu trabalho de estreia, Dimensions, revelando uma desenvoltura plena, uma invulgar capacidade de comunicação e uma energia imparável. Gijoe encaixou-se na dinâmica do trio com os seus certeiros scratches, adicionando uma camada de verniz hip hop no conjunto musical em que LANA dispõe peças de jazz, de house, de electrónica obtusa e até de drum’n’bass, fazendo com que tudo faça pleno sentido. O público aplaudia-a efusivamente. O resto da noite húmida teve como banda sonora mais um set sabedor de Gijoe, que entre clássicos e modernos temas de hip hop dispôs desvios em derrapagem por alguma electrónica.
O último dia voltou a levar os interessados na oficina para o palco. Desta vez, Rui Miguel Abreu e João Romão, o baterista dos Mazarin, propuseram uma viagem pelas diferentes nuances do ritmo: Como nasceu a bateria? Porque respondemos nós naturalmente a certas cadências? O que são polirritmias? O que existe para lá do 4/4? O que é o swing? A todas estas perguntas a dupla foi respondendo com exemplos, desafiando os muitos presentes ultra-interessados para pequenos exercícios com as mãos e os joelhos como instrumentos. Ao fim de uma hora ninguém se queria levantar e passar para o momento de conversa do dia.
Com o MC aveirense Navega a abordar a cena local e a frisar o quão importante foi para essa comunidade de Aveiro que este evento lhes tenha aberto o palco também, ao seu lado estiveram ainda Vicente Booth e João Spencer, guitarrista e baixista de Mazarin, respectivamente, e Carlos Quitério: falou-se da arte do improviso, do momento especial que este novo jazz atravessa e do estímulo que encontros inesperados por vezes proporcionam.
Depois de jantar, houve então tempo para o último desses encontros: o rapper da Margem Sul TNT subiu ao palco acompanhado pelo pianista e teclista Monksmith, solução original para resolver o problema da apresentação de um solitário MC ao vivo. Normalmente, a solução clássica é a do DJ, tantas vezes remetido apenas ao papel de “disparador” de beats, mas o homem forte da Mano a Mano convidou um teclista que adicionou uma dimensão jazzy e bem soulful aos seus beats, passando por diferentes momentos do seu reportório mais recente aos quais era adicionada uma camada de brilhante melodismo, fazendo cada tema ganhar um argumento de atracção extra. TNT depois cruzou-se com os Mazarin antes de os deixar a solo para um empolgante concerto em que passaram em revista vários dos seus temas de Pendular, álbum que lançaram já em 2024.
Os Mazarin têm crescido de concerto para concerto e exibem uma desenvoltura que ainda assim não esconde a séria complexidade da música que propõem, espaço de encontro entre jazz e África, tradição e futuro, meditação e dança. A música dos Mazarin é muita coisa ao mesmo tempo, mas é, sobretudo, fresca e solta e muito capaz de conquistar mesmo quem a desconhece em absoluto, como se provou na terceira noite do JAM.
No final, uma belíssima versão de “Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades” de José Mário Branco voltou a juntar TNT a João Romão (bateria), João Spencer (baixista), Vicente Booth (guitarra), Leo Vrillaud (teclados) e Francisco Bettencourt (flauta e saxofone), num coroar perfeito de uma belíssima actuação.
A noite fechou com as M3DUSA, dupla de Agnes e Inês Condeço que desfilou R&B clássico e hip hop, sempre com acento tónico no talento feminino, permitindo que a viagem de três dias do JAM tivesse terminado em positiva e dançante nota, com os presentes a resistirem em permanente movimento até à derradeira batida.
O balanço destes três dias de JAM é por isso meso extremamente positivo. Na primeira das três conversas, Sérgio Gomes da Costa, do Teatro Aveirense, a entidade que produziu este evento, explicava que esta é uma ideia que se pretende com futuro e que o JAM deverá voltar, mesmo que o ambicioso programa de Aveiro – Capital Portuguesa da Cultura já tenha fim à vista em Dezembro próximo: “As boas iniciativas têm sempre espaço para se impor”, garantiu. Dedos cruzados deste lado.