pub

Fotografia: Homero Sergio / Folhapress
Publicado a: 10/10/2024

O trajeto ímpar de um malogrado músico que teria completado 75 anos de vida em setembro passado.

“Itamar Assumpção, artista brasileiro, o único verdadeiramente livre”

Fotografia: Homero Sergio / Folhapress
Publicado a: 10/10/2024

O bairro da Penha, em São Paulo, virou a extensão do quintal de Itamar Assumpção. Ali, ele vivia em comunidade, tipo nas cidades do interior. Virou seu reduto. Mas a identificação dele com o lugar não se restringe a estas questões. É bem provável que o destino tenha-o guiado. Se Itamar não morasse na Penha, nada faria sentido. Inclusive, é lá, na casa que ele morou com sua família, Dona Zena, Serena e Anelis Assumpção, que agora também se estabeleceu o acervo físico do MU.ITA, uma extensão do museu virtual em que pode-se conhecer a história, os feitos, as peças, objetos e artigos usados por este que autodeclarou-se artista livre brasileiro.

Para conhecê-lo, antes é necessário ter uma visão ampla do lugar que escolheu para viver, florescer sua arte e suas orquídeas. Como o próprio escreveu: “A senha é venha que eu sou da Penha”. 

“Tá com medo por que veio, ‘vacilão’? Não pega nada. A senha é venha e Sou Nenê Vila Matilde, minha parada é lá na quadra. Traga a Família! Pegue a Radial ou a Celso Garcia… Marginal, Parque São Jorge, um, dois, três, periferia. Venha da Lapa, da Grécia ou venha da Bahia. Aqui não tem rico nem pobre, aqui só tem alegria”. 

A então Vila de Santo André da Borda do Campo, que após a fundação do Colégio dos Jesuítas em 25 de janeiro de 1554 se transformou no povoado de São Paulo de Piratininga, uma homenagem do Padre Manoel da Nóbrega para o apóstolo São Paulo — supostamente convertido ao cristianismo no mesmo dia e mês —, entrou no trajeto dos Bandeirantes [exploradores sanguinários, responsáveis por fazer expedições no Brasil, abrindo caminhos e também dizimando indígenas e escravizados] nos séculos XVI e XVII.

Na busca por pedras preciosas, metais, escravizados fugitivos e indígenas para serem catequizados pela Igreja Católica, o grupo encabeçado por Fernão Dias Pais, Manuel Borba Gato, Bartolomeu Bueno da Silva (Anhanguera), Domingo Jorge Velho, Antônio Raposo Tavares, Nicolau Barreto, Manuel Preto, Jerônimo Leitão e Francisco Bueno abriu caminhos no vasto território tupiniquim, contribuindo assim para o seu desenvolvimento econômico.



É evidente que nada foi concretizado de forma pacífica. Os resistentes não tiveram uma segunda chance. Foram exterminados pelo “progresso” e em nome de deus.  

A colina que margeava o Ribeirão Aricanduva, o Rio Anhembi e o Rio Tietê se transformou em campo de guerra. As tribos indígenas contrárias à invasão de suas terras contra-atacaram as investidas dos colonos. Sem sucesso, criaram rotas entre os rios. E com o passar do tempo os sesmeiros estabeleceram pequenas comunidades. Dos que tomaram posse da terra estavam Domingos Leme, o padre licenciado Mateus Nunes de Siqueira e o seu irmão, também padre, Jacinto Nunes de Siqueira.

Na parte que os pertencia, os sacerdotes construíram a capela de Nossa Senhora da Penha de França. A referência do nome vem do termo francês “Notre Dame de France”, por causa do local montanhoso onde foi construída. Há quem diga que a nomeação teria sido feita a partir da lenda de um viajante francês, devoto de Nossa Senhora, que pernoitou na Penha.  

Com o passar dos anos, a igreja cresceu. O povoado em volta dela também, “pelo advento de novos sesmeiros e moradores e principalmente pela exaltação devocional dos homens da Vila de São Paulo e de outras partes da Capitania”. Assim, a Penha se tornou um “bairro formado sob o manto de Nossa Senhora da Penha de França, sob o qual, doravante e por sempre, permanecerá”. 

No começo do século XIX, o “progresso” populacional gerou grandes transformações na Penha. A distância do centro de São Paulo era considerável. Isso dificultava a visita de muitos fiéis à Catedral da Sé (Catedral Metropolitana Nossa Senhora da Assunção e São Paulo, principal templo católico da cidade), principalmente os negros católicos que não tinham acesso à Igreja da Penha.

Por isso, a “Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Penha de França”, formada por pretos alforriados [libertos], solicitou ao Bispo de São Paulo, em 16 de junho de 1802, autorização para construir sua própria capela. Sem restrições, a concessão foi dada.

Essa é a única igreja católica construída “de costas” para o centro — e consequentemente para a Catedral da Sé —, por ter sido edificada pelas mãos dos escravizados. Virou um marco da resistência negra — inclusive, muitos deles foram sepultados no entorno do templo.


Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Penha de França

“Quem sabe pode, não se faça de rogado. Zona Leste somos nós e nossos considerados. Quem sabe sobe conosco neste tablado. Sangue bom aqui tem vez, sangue ruim só comportado”. 

Itamar não subiu as ladeiras da Penha por acaso. Foi por amor. Mas antes de se estabelecer, viveu a vida artística no Paraná. 

A saga começa em 1961, quando a família sai de Tietê, interior do distrito de São Paulo, em direção a Arapongas, no Paraná. Ele tinha a idade de 12 anos. A música já fazia parte do seu cotidiano por causa das reuniões de candomblé celebradas pelo pai Januário Assumpção.

Já com domínio no toque do atabaque, logo se tornou autodidata no violão e baixo, influenciado por Jimi Hendrix. As veias pulsavam arte. Por isso, se enveredou no teatro. No GRUTA (Grupo Teatral de Arapongas), sob a direção da médica psiquiatra e diretora Nitis Jacon, protagonizou em 1971 o “Arena Conta Tiradentes” (de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri).

Era o Tiradentes negro. Obviamente, não passou despercebido. Arrigo Barnabé, que logo se tornaria amigo e parceiro musical de Itamar — o qual homenageia no álbum Arrigo Visita Itamar (Ao Vivo) [2024] —, relembra o momento: “Ele entrava do fundo do teatro. Então, eu nunca tinha visto isso, era uma coisa moderna. A gente via as pessoas no palco, e via muito pouco teatro. Não tinha teatro em Londrina. E aí, de repente entra o cara [cantando]: ‘Dez vidas eu tivesse, dez vidas eu daria’… Todo vestido de branco, com uma roupa meio de saco… Aí vem o Itamar com aquela presença cênica”, revelou Arrigo ao programa Ensaio, da TV Cultura.  

A performance no Festival Internacional de Londrina (FILO) gerou debates sobre ter um preto no papel de José Joaquim da Silva Xavier, um homem branco. Porém, Nitis não escolheu Itamar com base na cor, mas sim por ser o seu melhor ator. É nesse período que a Penha entra indiretamente na vida dele. Quem o guiou até lá foi Elizena Brigo (Zena). 

“Eu o conheci na casa da minha cunhada, Celimar. Já o tinha visto em um velório e notei o tião dele — alto, magro. Até perguntei para a Celimar se ‘palmeira andava’… E como andava. […] Um dia eu o vi de novo com Celimar e fui cumprimentá-lo. Ele me beijou. Aí rolou uma coisa…”  

O namoro aflorou, mas teve de ser por debaixo dos panos. Irene Cozza Brigo, mãe de Zena, não aceitou a relação dos dois. “Preto, para a italiana, era coisa feia. Era muita pressão, mas éramos muito apaixonados. Ele era uma doçura, tinha uma ingenuidade impressionante”, afirma Zena em depoimento ao Songbook Petrobras.

Não se sabe ao certo se Itamar era ingênuo ou extremamente confiante. Independente do adjetivo, o fato é que ele já sabia qual rumo tomar. Centroavante do Arapongas Esporte Clube, tentou jogar no Santos. Não passou no teste. Desistiu da carreira de jogador de futebol. Abandonou o curso de contabilidade. Deixou de lado o teatro. Emergiu de vez na música.  

O ponto de virada aconteceu depois que ele conquistou o público e o jurados no V Festival Universitário de Londrina, em 1972, onde interpretou as canções “Queimada” e “Tempo Completo”.

Levou o prêmio de Melhor Apresentação Total. Contudo, a certeza veio depois da sua excêntrica apresentação no festival Na Boca do Bode, realizado nos dias 09, 10 e 11 de março de 1973 no Teatro Universitário de Londrina. Considerado transgressor para a época, o evento organizado por Domingos Pellegrini (co-compositor de “Prezadíssimos Ouvintes”) movimentou a pequena cidade rural, então com cerca de 200 mil habitantes. Para o estreante cantor, tornou-se um divisor de águas.  

“Nesse show participei como intérprete. Não mostrei meu trabalho de compositor, que estava no comecinho. Não sabia ainda pra que lado minha música iria”.



Cantando “Dos Cruces”, de Milton Nascimento, Itamar usou a experiência no teatro para impressionar. Logo após Chico Grillo sair do palco, ele surge do alto dos pilares de iluminação amarrado numa corda. Levantou a plateia com seu canto acapella. E daquele instante em diante decidiu que ganharia a vida cantando e compondo. Porém, apesar da ebulição, não agradou a crítica local. “Era como se surgisse um Raul Seixas subnutrido. Não era rock, não era nada. Muito barulho, muita percussão, mas sem qualquer malícia”, escreveu um crítico da Folha de Londrina. Fato é que a musicalidade dele ainda não havia aflorado.  

“Eu tinha a intenção de desenvolver os vários lados que já havia percebido em mim. O lado de compositor, cantor, intérprete, músico, enfim. […] Pensava numa linguagem geral de palco. De mexer com a música de uma forma mais completa. […] Eu me meti em música porque via possibilidade de fazer uma coisa diferente. Só por isso eu me meti. […] Eu já havia percebido que a minha música não era uma música qualquer. Nunca quis fazer uma música qualquer”, observou na conversa com o jornalista Ademir Assunção. 

Carregado de otimismo, ainda em 1973, Itamar parte para São Paulo com o objetivo de se dedicar totalmente à música. O convite partiu de Arrigo Barnabé. “Eu falei pro Itamar: “Ó, se você quiser ir pra São Paulo, a gente mora em república lá… poderia arrumar um lugar pra você ficar. E o Itamar acabou vindo”. Na companhia deles também estavam Paulo Barnabé (irmão do Arrigo) e Antônio Carlos Tonelli. Imediatamente, a cidade não os recebeu da maneira que imaginavam. Dos três, Itamar foi o que mais tomou banhos de água fria. 

“Quando cheguei em São Paulo, tive que reestruturar todo esse universo que me interessava e repensar a forma de trabalhar com ele. Porque achava que seria bem aceito, que o percurso seria fácil”, desabafou a Ademir Assunção em 1986. “Cheguei aqui com meu violão e ia para as gravadoras. Todas as gravadoras de São Paulo que você imaginar eu fui apresentando minhas músicas, que já eram estranhas. Levei uns dois anos pra entender que jamais poderia colocar o meu trabalho daquele jeito”. 

Sem aceitação na indústria, ele decidiu seguir sozinho. Deu o seu jeito. E ao mesmo tempo que tentava a sorte, fazendo de tudo para emplacar, mantinha o namoro à distância com Zena. “Ficou um ano, e me escrevia quase todo dia. Guardei caixas de cartas dessa fase”, observou ela.  

Em 1974, Elizena retorna a São Paulo com Celina, filha do seu primeiro casamento, para morar com sua família na Penha. Os encontros do casal eram secretos, por causa da não aceitação de Dona Irene. Zena afirma: “Nós nos encontrávamos em uns hoteis do Centro. A música ‘Luzia’ surgiu em um desses lugares. Tinha um casal brigando no quarto do lado, e Itamar pegou várias frases”. 



É com essa música que Itamar vence o Projeto Guarani, festival de música realizado no Teatro Castro Mendes em Campinas, no interior de São Paulo. E é com Elizena Brigo que ele se casa depois de três anos vivendo em São Paulo. A chegada de Serena adiantou a oficialização. Só assim a família Brigo aceitou a entrada dele no seu rol de membros. Batalha vencida, porém, a guerra ainda estava em curso. Na sequência, Anelis nasceu.  

Com dinheiro contado, eles levavam a vida. De uma casa de um cômodo, eles se mudaram para outra um pouco maior. Mesmo não sendo dono da residência na época, Itamar decidiu reformá-la. Gastou o que não tinha, mas deixou do jeito que queria. Zena disse: “O Itamar pôs na cabeça dele que a casa lhe pertencia, mas era alugada. Não propôs nada, não negociou com o proprietário. Foi lá e ergueu um muro alto pra ninguém ver o que acontecia aqui dentro. Queria privacidade. Tirou 28 caminhões de terra do quintal e oito árvores”.

Desse jeito, o domicílio se tornou o lugar onde o artista compôs suas canções, escreveu cartas, desenvolveu ideias, ensaiou, criou suas filhas, cultivou e conversou com as orquídeas, fez seus cafés, cozinhou, jogou conversas fora, deu comida para os pássaros que os visitavam. 

“Não preciso ficar fazendo conchavos. Mas moro modestamente. Não tenho piano, que é um instrumento de trabalho. Não importa. O que importa é que até agora eu trabalhei com o mínimo e do mínimo fiz o máximo”.  

Sem muita estrutura, mas com disposição de sobra, Itamar era totalmente influenciado pelo ambiente, do aroma do café ao desabrochar de uma orquídea, muito aguardado até o amanhecer do dia, quando acordava a todos para que também presenciassem a bela obra da natureza. Essa aura inspiracional não ficava restrita às quatro paredes.

O bairro virou seu quintal. Sempre bem-vestido, caminhava sem rumo. Aos sábados, batia ponto no Bar da Jandira para apreciar uma feijoada, conversar com os amigos e até jogar boccia. Ia frequentemente à feira escolher seus ingredientes, frutas, peixes e, claro, flores.

Sem a Penha, talvez Itamar não seria o Itamar. Mas a genialidade dele poderia aflorar em qualquer lugar, e apesar de estar à frente de seu tempo, afro-futurista de fato, foi injustiçado, não compreendido, chamado de marginal, maldito, vanguardista. “Títulos” estes que renegava. “Vanguarda é um termo que vem do francês, um termo europeu, uma coisa branca. Sou negro mesmo. A minha arma pra lutar na vida é minha cultura. Procurei desenvolver a minha linguagem, só isso”.

Por ser quem era, Itamar Assumpção não ganhou o destaque que merecia, mas não deixou de fazer “barulho”. Imagina só ser líder da banda Isca de Polícia e gravar com a Orquestra Sinfônica da Polícia Militar. Ele fez isso no álbum Intercontinental! Quem Diria! Era Só O Que Faltava!!!, que teve regência do maestro Jamil Maluf.

Artista livre, como gostava de enfatizar, antou Ataulfo Alves, fez parceria com Naná Vasconcelos. As composições dele também foram gravadas por Rita Lee, Ney Matogrosso, Cássia Eller, Zélia Duncan. Chegaram ao mainstream renegado a ele, porque sua linguagem musical e poética inovadora “não se encaixava no padrão das rádios”. Mas como o próprio escreveu na poesia “Ondas da Vida”: “À risca, meu barco segue as ondas da vida… Vida de artista… Às vezes deriva… Enfim, o coração que resista. Portanto até terra à vista. E viva!”

Se estivesse vivo, Itamar Assumpção teria 75 anos, completados em 13 de setembro. Na verdade, ele vive e viverá eternamente. “Itamar Assumpção, artista brasileiro, o único verdadeiramente livre”. Me cite outro.


pub

Últimos da categoria: Ensaios

RBTV

Últimos artigos