Se alguém tivesse dito a iolanda há um ano que teria ganho o Festival da Canção, terminado em 10º no Festival Eurovisão da Canção e esgotado dois Capitólios, o que responderia a artista? Certamente um valente “estás a gozar comigo mano, deixa-te de merdas”.
iolanda não passou de zero to hero do nada, mas a sua vida transformou-se de tal forma no último ano que se tornou necessário para a artista refletir sobre todos essas ocorrências. E se Cura, curta-duração de estreia lançado em 2023, provou algo, é que iolanda sabe transformar as tormentas e benesses da sua vida em grandes canções. Se já a sabíamos como uma das grandes vozes da nova pop portuguesa, o seu novo EP, OLHAR P’RA BAIXO, confirma tudo isso. É um curta-duração que aproveita as qualidades do universo de Cura — o R&B mortífero e doloroso, o hip hop com garra e os momentos à la “desfados da nova pop” — e conjuga-as com tudo o que aprendeu nestes últimos 365 dias.
Há um certo calculismo na forma como iolanda exterioriza sentimentos, mas sem nunca perder a sua humanidade. Quando a sua voz se levanta, submerje-nos numa vasta onda de sentimentos capazes de nos afogar. Podemos ser rodeados por uma tristeza incessante, um calor no coração, uma saudade que nunca parece desvanecer. Perdoe-se o clichê, mas isto ajuda com que iolanda tenha aura de “diva”. “Grito”, a canção que lhe permitiu vencer o Festival da Canção e popularizar-se mundo fora com a sua prestação na Eurovisão, é a maior demonstração até ao momento desse seu lado. Mas se “Grito” foi o que lhe permitiu chegar ao “topo”, OLHAR P’RA BAIXO é a forma que iolanda encontrou para regressar à Terra.
Tal como em Cura, iolanda volta a unir-se com múltiplos produtores capazes de potenciar as suas declamações. Luar, o seu mais recorrente partner in crime, oferece os seus serviços em “CALMA” (ao lado de DØR) e “COMPLICADO”; NED FLANGER surge como principal ajudante no baladesco maduro e emotivo de “P’RA SERMOS 1 AGORA”; Tayob J. cristaliza o R&B sentimental de “OLHAR P’RA BAIXO” e “ÁGUA”.
A parceria entre iolanda e Tayob J. é, sem dúvida, aquela que mais surpreende em OLHAR P’RA BAIXO. Se em Cura as parcerias Luar/iolanda e NED FLANGER/iolanda já se tinham demonstrado muito eficientes, a de Tayob J./iolanda surpreende por soar como se colaborassem há anos. “ÁGUA” é a faixa principal de destaque deste EP e não restam grandes dúvidas do porquê. Refrão delicioso, versos em constante jogo entre desejo (“O meu corpo anda dormente, precisa de carinho / E os teus dedos são lentes p’ra guiar o meu caminho”) e coração nas mãos (“E eu só queria perceber quando não me respondes / Se é medo de ficar p’ra sempre ou medo do que fomos”).
E se há coisa que iolanda demonstra em Cura e OLHAR P’RA BAIXO é como o desejo, as tristezas e as felicidades encontram-se presas no mesmo instante. Como as sentimos, contudo, depende apenas de nós. Haja alguém como iolanda para as musicar.
Em “CALMA”, refrão orelhudo a acompanhar, reflete sobre o seu percurso e dificuldades para chegar até aqui (“Farta de sentir a culpa quando eu luto em nome próprio / Nasci do trabalho duro, não cresci na luz da glória / Limpei muito prato sujo, hoje eu limpo as mãos às memórias”); em “COMPLICADO”, canta sobre o impacto que a sua obra tem em quem lhe rodeia (“ Cada vez ’tou mais tranquila, mais trabalho é mais comida / E eu tenho muita gente que depende do meu grito”); na faixa que dá título ao EP, desabafa tudo: “Passei anos a aguentar, mas hoje eu já só vou a 100 / No final não quero ganhar, eu só quero me’mo mudar o game / Eu canto a solo / Mas tenho tanta gente que me dá consolo / E a regra aqui é simples, se eu subo, subimos todos”.
Se Cura foi um desabafo perfecionista, OLHAR P’RA BAIXO é o resultado da sua urgência de confidenciar o impacto da fama e do reconhecimento. Se iolanda é uma pessoa que se mostra relacionável nas suas músicas, Cura e OLHAR P’RA BAIXO revelam dois lados opostos de uma mesma moeda: iolanda quer viver todos os dias como se fossem o último e cantá-los como se a sua vida dependesse isso. Neste momento, talvez dependa mesmo.