Na noite fria e líquida de Lisboa, a 23 de Janeiro, o Lux Frágil pulsava como um coração cósmico, dobrado sobre si mesmo, reverberando numa frequência inaudível aos ouvidos habituais. Ali, sob um tecto de néons que ondulavam como auroras boreais desenhadas em fumo e reflexos, juntou-se uma multidão maioritariamente jovem — rostos de olhos acesos, corpos pendurados no limiar da expectativa, todos numa comunhão de espíritos que ainda acreditam no poder transformador do som. Alguns bebiam cocktails translúcidos como vidros líquidos, outros seguravam copos escuros, quase opacos, que pareciam esconder tempestades dentro de si. O aroma de citrinos e ervas misturava-se ao eco de conversas entrecortadas — murmúrios ansiosos que aguardavam o momento em que a escuridão se partiria, e a guitarra falaria.
Quando Inóspita — esse nome carregado de mistério e desafio — subiu ao palco, um murmúrio colectivo ergueu-se como um vento que se torna tempestade. Era ela: Inês Matos, a guitarrista que tece, com as suas mãos de luz, universos inteiros em poucas notas. O palco era um altar onde as cordas do seu instrumento, quase invisíveis, pareciam não apenas vibrar, mas incendiar. As primeiras notas saíram da guitarra como um grito transformado em beleza, um relâmpago que atravessou o ar saturado da sala e tocou cada pessoa presente, como se as cordas fossem fios eléctricos ligados directamente ao coração do público.
As luzes, suaves como o brilho de um cometa a desvanecer-se, tingiam o espaço com cores líquidas — azuis hipnóticos, vermelhos subterrâneos, verdes impossíveis — enquanto o som se desdobrava em camadas, cada acorde surgindo como uma nova paisagem sonora. A guitarra não era apenas um instrumento; era uma voz, um campo magnético, uma explosão controlada que transmutava o estéril em fertilidade.
A plateia, imersa e rendida, parecia composta por viajantes de um tempo suspenso — jovens com cabelos pintados de tons impossíveis, óculos redondos que reflectiam o palco como espelhos pequenos, roupas que misturavam veludo e pele sintética, todos unidos numa comunhão silenciosa com a artista. Ninguém mexia um dedo quando Inóspita arrancava notas tão delicadas que pareciam desintegrar-se antes de tocar o ar, mas, ao mesmo tempo, todos vibravam com as explosões de energia melódica, quando ela arrastava acordes como tempestades por dentro de um oceano.
E havia a maneira como ela olhava para a guitarra, como se fosse uma criatura viva, ou talvez uma extensão de si mesma. Inóspita não tocava a guitarra; era como se a guitarra se tocasse a si mesma através dela, traduzindo sentimentos primordiais e verdades esquecidas numa linguagem feita de som e luz. Cada tema dos seus dois primeiros discos surgia como um fragmento de uma história maior — um mito que apenas ela conhecia por completo, mas que era generosa o suficiente para partilhar com quem quisesse ouvir.
Quando chegou ao fim do concerto, a sala estava suspensa, como se o tempo tivesse sido diluído e ninguém soubesse ao certo quanto tempo passara. Mas talvez isso não importasse. O que importava era a beleza rara e indescritível que todos tinham testemunhado. Os aplausos explodiram como uma onda de partículas de luz — gritos, palmas, pés batendo no chão —, mas mesmo no barulho havia uma reverência, uma gratidão silenciosa por ter vivido aquele momento que, por mais breve que fosse, ecoaria na memória de cada um como um acorde infinito.
O Lux, nessa noite, não foi apenas uma sala de concertos. Foi um portal para outro mundo, e Inóspita, a sua guia visionária, conduziu-nos a todos por terras onde o som é mais do que som: é um espelho da alma, um mapa para o inexplorado, um lembrete de que, mesmo no mais estéril dos espaços, a fertilidade da música pode florescer como um milagre.
[A Viagem de Uma Guitarrista que Reescreve Silêncios e Evoca Universos]
Inóspita, o alter ego sonoro da jovem lisboeta Inês Matos, é mais do que um projecto de guitarra solo; é uma exploração íntima e radical da relação entre som e existência.
Desde os primeiros anos, a guitarra tornou-se na extensão natural das mãos de Inês. Uma relação que começou com a inocência de quem descobre as primeiras melodias e se aprofundou com o rigor do estudo na Academia de Guitarra, onde, ainda adolescente, já ensinava. Inês tornou-se uma arquitecta do som, alguém que molda o invisível com uma sensibilidade rara. Mais tarde, na escola de Jazz Luiz Villas-Boas do Hot Clube de Portugal, as possibilidades do instrumento expandiram-se, e o diálogo entre técnica e emoção tornou-se o eixo central do seu universo criativo.
Mas Inês não se contentou em habitar territórios já explorados. Desde a adolescência, em bandas como as de Chinaskee e João Borsch, a jovem guitarrista foi desenhando os contornos de um caminho próprio, uma estrada que não segue mapas pré-definidos. Inóspita, o seu pseudónimo artístico, não é apenas um nome; é um manifesto. Representa a busca pelo desconhecido, a transformação do que é árido em fértil, a criação de canções que transcendem a palavra para se tornarem narrativas melódicas. É a guitarra, nua e crua, quem conta as histórias — sem vocais, mas cheia de vozes.
O primeiro álbum, Porto Santo, é uma homenagem ao lugar onde as ideias de Inóspita germinaram e se cristalizaram. Cada faixa é uma ilha dentro de uma ilha, uma paisagem sonora onde a melancolia e a esperança coexistem, como o mar que envolve Porto Santo: sereno e, ao mesmo tempo, indomável. Este trabalho inaugural revelou uma artista profundamente comprometida com o formato da canção, mas determinada a subvertê-lo, moldando-o às suas próprias regras e sensibilidades.
Em Setembro de 2024, Inóspita lançou E Nós, Inóspita?, o seu segundo álbum de originais, que solidifica a sua identidade artística e, ao mesmo tempo, a desafia. Este disco, descrito como “uma segunda viagem solitária” com a sua fiel Telecaster e uns quantos pedais, é muito mais do que isso. É um convite para entrar no universo interior de Inês, onde as melodias são fragmentos de conversas — não apenas com os outros, mas também consigo mesma. As pessoas que cruzam a sua vida, com as suas visões e devaneios, tornam-se personagens invisíveis que habitam as suas composições, trazendo ecos de histórias não contadas. E, no entanto, mesmo rodeada por estas presenças, Inóspita encontra-se inevitavelmente só no fim do dia — uma solidão que, paradoxalmente, carrega consigo um conforto inesperado.
Na sua abordagem à guitarra, Inóspita parece desafiar o próprio instrumento a transcender os seus limites. A Telecaster transforma-se num narrador omnisciente, os pedais numa alquimia sonora que fragmenta o real e o reconstrói em texturas etéreas. Há um lirismo nas suas composições, mas também uma inquietação constante, um desejo de desconstruir o familiar para encontrar novas formas de beleza. Em cada acorde há uma pergunta, em cada melodia uma resposta incompleta — porque a música de Inóspita não procura resolver, mas revelar.
No fundo, o projecto Inóspita é mais do que música. É um diálogo com o tempo, com os silêncios que habitam o intervalo entre as notas, com a solidão que transforma o estéril em terreno fértil. É a prova de que a guitarra, tão profundamente enraizada na tradição, ainda pode ser um instrumento de descoberta e subversão. Com apenas dois álbuns, Inóspita já é uma das vozes mais originais da nova geração de músicos portugueses — uma guitarrista que, com os seus dedos de luz, acolhe a beleza e transforma a aridez em canções que nos lembram que, mesmo no silêncio, existe música.
[Ecos de Luz e Sombras: A Jornada de Inóspita no Palco do Infinito]
Depois de uma longa espera que parecia suspensa no limiar do tempo, como um acorde preso entre o silêncio e a explosão, Inóspita entregou ao mundo, uma vez mais, a profundidade do seu universo melódico. O palco escolhido para esta oferenda foi o mítico Lux Frágil, um espaço onde as noites lisboetas se desdobram em vertigens de cor e som. A data, 23 de Janeiro de 2025, torna-se um marco na trajectória da artista, um ponto de inflexão onde a simplicidade da sua Telecaster dialogou com a complexidade das suas composições, como se cada nota fosse uma partícula de luz a atravessar o cosmos.
O álbum E Nós, Inóspita?, lançado em Setembro de 2024, é mais do que uma colecção de canções; é um espelho onde a artista reflecte as suas inquietações, memórias e esperanças. Desde o seu lançamento, tem sido saudado como um trabalho de rara autenticidade, uma obra em que a sensibilidade musical de Inóspita brilha com uma força delicada, mas irresistível. A Blitz descreveu-o poeticamente como “um beijo na face dado por seis cordas” — uma descrição que capta o paradoxo entre o nome árido da artista e a calorosa intimidade que a sua música oferece.
Neste concerto, que prometia ser uma experiência imersiva, Inóspita não esteve sozinha. Convidou duas cúmplices artísticas para expandir os horizontes do seu som e da sua visão: Ana Lua Caiano, uma força criativa no formato de one-woman show, e Inês Aires, cuja mestria nas projecções visuais transformaram o palco num caleidoscópio de imagens em constante mutação. Juntas, criaram um espectáculo onde música, palavra e imagem se entrelaçaram como uma tapeçaria viva, um sonho que pulsa no ritmo da guitarra.
O alinhamento de E Nós, Inóspita? é, por si só, uma narrativa complexa, uma viagem que percorre paisagens emocionais e criativas. A abertura, “Inós”, é uma introdução delicada, como uma flor que desabrocha na madrugada. As notas iniciais crescem em espirais sonoras, uma balada simples, mas esperançosa, que anuncia a metamorfose que se segue. Depois vem “Colinho”, uma canção com raízes folk, onde o ritmo marcado ecoa as melodias do padrasto da artista — uma homenagem íntima que termina em acordes intensos, como se as tensões familiares encontrassem resolução na música.
“O Retrato de Cid Rosa” é um momento de profunda introspecção. Inspirada na mãe de Inóspita e no controverso livro de Oscar Wilde, esta peça tece dedilhados nostálgicos que transportam o ouvinte para um tempo passado, onde a memória e o sonho se confundem. Em “Fofocas”, a guitarra transforma-se numa voz social, explorando dinâmicas humanas com uma mistura ousada de jazz e rock, enriquecida por efeitos de pedais que criam paisagens sonoras multifacetadas.
“Canção para Bruce” é um tributo ao eterno Bruce Springsteen, mas vai além da homenagem; é uma meditação sobre resiliência e esperança, um retrato sonoro da luta de quem encontra beleza mesmo nas adversidades. A viagem continua com “Cintra I & II”, uma ode à Serra de Sintra, onde a dualidade entre a beleza crua da paisagem e a fragilidade emocional se traduz em loops e dedilhados melancólicos que ecoam na vastidão.
“Musa Ausente” é um interlúdio que quebra a narrativa melódica para introduzir a palavra falada. Aqui, Inóspita recita um desabafo íntimo, uma reflexão sobre os limites da criatividade e a aceitação das fraquezas humanas. Mas não há resignação — apenas uma aceitação que é, ela mesma, uma forma de transcendência.
Inóspita encerra com “Só”, uma reinterpretação de Jorge Palma que destila introspecção e empatia. A canção, simples mas profundamente evocativa, é um lembrete da importância de encontrar paz no caos do mundo moderno — um tema que ressoa com particular força numa época cada vez mais marcada pela alienação e pela busca incessante de sentido.
Neste concerto no Lux, Inóspita criou um espaço onde a música transcendeu a mera audição e se tornou numa experiência transformadora. Foi um momento onde cada acorde, cada projecção de luz e cada pausa carregou o peso e a leveza de uma artista em pleno domínio da sua arte. Foi uma noite onde o inóspito se tornou fértil, e a música, com todas as suas fragilidades e potências, reafirmou-se como uma das linguagens mais puras da humanidade.
[A Sonosfera de Inóspita: Lirismo no Caos e a Alquimia de Um Vale Sónico Florescente]
Na noite de 23 de Janeiro de 2025, na sala icónica e mítica do Lux Frágil, Inóspita — essa cartógrafa de sons impossíveis — ergueu-se como uma presença paradoxal, ao mesmo tempo enraizada na terra e etérea como uma constelação distante. O público, composto por almas sedentas de novidade, foi subitamente inundado por uma energia que só poderia ser descrita como magnética, uma força irresistível que emergia da combinação improvável entre virtuosismo técnico e a humildade de quem entende que a música só respira quando partilhada.
Inóspita não se limita a tocar; ela habita o som. O seu carisma não é uma imposição, mas um convite. Ela recusa os ares de diva, preferindo o contacto directo e quase táctil com o seu público. Cada acorde, cada melodia, cada pausa é um gesto de aproximação, um sussurro cúmplice que ecoa no coração de quem ouve. Não há barreiras entre artista e plateia; há apenas a vibração comum, uma humidade quase tangível que une todos num só momento.
O virtuosismo de Inóspita não é daquele tipo que deslumbra apenas pela técnica; é uma alquimia idiossincrática que transforma cada nota num pequeno milagre. A sua destreza com as três Fender Telecaster, conectadas a um arsenal de pedais de efeitos, é de uma precisão quase cirúrgica, mas nunca desprovida de emoção. Ela domina tanto o som “clean”, cristalino como água de nascente, quanto o som “crunch”, áspero como rocha a ser talhada, transitando entre eles com a fluidez de quem conhece cada nuance da sua linguagem musical.
Naquela noite, o uso da reverberação foi particularmente notável, criando paisagens sonoras que se expandiam como ondas num lago infinito. A sala do Lux tornou-se um espaço suspenso entre a realidade e o sonho, uma catedral sonora onde cada acorde reverberava como um eco de algo maior, algo inominável. Houve um único momento em que utilizou o pedal de loop — um instante tão inovador que pareceu rasgar o tecido do tempo, multiplicando camadas de som como fractais sonoros. Foi como assistir a um truque de magia que não esconde o seu segredo, mas o revela com orgulho, desafiando-nos a acreditar no impossível.
A técnica de fingerpicking de Inóspita, em que a mão direita dança sobre as cordas com uma precisão desconcertante, é um espectáculo em si. Os dedos, em favor do plectrum, transformam-se em escultores, esculpindo acordes e arpejos que oscilam entre a consonância e a dissonância. Há um lirismo intrínseco na sua música, mas também uma aceitação do caos — uma união rara e preciosa entre beleza e desordem. Os acordes inventivos que cria são pontes entre mundos, passagens entre o conhecido e o desconhecido, e os seus pequenos solos, inseridos com naturalidade, tornam-se diálogos dentro da narrativa maior de cada canção.
O som de Inóspita não é somente música; é um espaço. É uma sonosfera — um universo fértil e acolhedor, onde o inóspito desaparece e dá lugar a uma paisagem vibrante, um vale florescente de sons que nos abraçam e transformam. É impossível não sentir a presença dessa riqueza sonora, desse ecossistema vivo que brota das suas mãos como uma primavera interminável.
Inóspita é, acima de tudo, uma artista de identidade. Mesmo sendo jovem, a sua música já carrega um selo inconfundível, uma assinatura que se revela tanto na técnica como na criatividade sem limites. A maneira como manipula os pedais de efeitos e amplificadores não é meramente técnica; é uma forma de escultura sonora, onde cada som ganha textura, volume e cor. Através desta alquimia, ela cria uma paisagem única, um terreno onde a fertilidade sonora é a regra, e não a exceção.
Naquela noite no Lux, ficou claro que Inóspita merece não apenas a nossa atenção, mas a nossa devoção. Há algo brilhante, inovador e profundamente criativo nas suas mãos, algo que transcende o imediato e aponta para o futuro. Ela não é unicamente uma guitarrista; é uma visionária, uma exploradora de novos mundos sonoros que nos convida a embarcar nas suas viagens.
Ame-a, sim, quem quiser conhecê-la verdadeiramente, porque na música de Inóspita reside não apenas um reflexo do que somos, mas uma promessa do que podemos ser — um lembrete de que, mesmo no caos e na dissonância, há sempre espaço para o lirismo, para a beleza e para a transformação.