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Fotografia: Nuno Martins
Publicado a: 10/04/2025

De Belém rumo à Europa.

Humanization 4tet no Centro Cultural de Belém: um passo à frente nessa Lisboa-Texas

Fotografia: Nuno Martins
Publicado a: 10/04/2025

Foi Wim Wenders quem um belo dia conjurou a ideia de ponte diáfana entre a Europa e a América. Com essa libélula película Paris, Texas, dava asas para voar ao sonho, anos antes das asas se traduzirem em desejo, nessa outra Berlim. Na ligação texano-parisiense, Wenders conta-nos sobre “um vagabundo sem rumo que está desaparecido há quatro anos, que vagueia pelo deserto e que tem de se reencontrar com a sociedade, consigo próprio, com a sua vida e com a sua família.”  

Foi o guitarrista e compositor Luís Lopes quem conjurou esta outra ligação ao mistério do Texas. Com a transposição ao real nuns Humanization 4tet, criou essa ponte jazzística, numa Lisboa-Texas. Quarteto que conta, além de Luís Lopes na guitarra eléctrica, com um imprescindível soprador Rodrigo Amado no saxofone tenor (ambos de Lisboa) ligados aos irmãos texanos Gonzalez, Aaron e Stefan (contrabaixo e bateria), fulgurantes sintonias de tempo e ritmo. Haverá nesta formulação esse reencontro com a vida enquanto se vagueiam pela estrada, estrada fora kerouacquiana, alimentando da poesia do jazz, e do nervo dos concertos.  A “viver a orgia dos excessos de tudo o que está para lá dos limites da ‘normalidade’”, como revelava em entrevista Luís Lopes sobre como (se) vive(m) Humanization 4tet.

Esta formação que tem Lopes como timoneiro, é feita de muito palco, é aí que vive, é para isso que existe. A provar isso mesmo ficam as edições dos já 5 capítulos da sua existência discográfica, em grande medida registos gravados em palco, pois claro. E aí está mais um, o novo e quinto registo Saarbrüncken, via Clean Feed (2024). Gravado  em 2021, aquando do Saar Free Jazz Fest em Saarbrücken, na Alemanha. 

No passado dia 5 de Abril, subiram ao palco do pequeno auditório do Centro Cultural de Belém para um concerto que vinha sendo adiado desde há cerca de 4 anos. Pandemia, desacertos de agendas e aí por diante… Haveria de chegar a hora, é aqui e agora. Comenta Luís Lopes mais adiante, em modo de epílogo, que ensaiaram novos temas. É o que ouvimos em palco. Um disco recém lançado, mas um concerto todo ele feito de novas composições. É uma formação que está um passo à frente se si própria. 

Um primeiro tema que traz uma suspensão do tempo e da melodia. Expressão sentida através do contínuo sopro do saxofone. Um arranque a denotar contenção. Parece haver um não tempo no ar, uma verticalidade no rumo. Lembramos esse errante vagabundo de Paris, Texas, transposto a este Lisboa-Texas. Trazemos a ideia de estampagem de Stefan Gonzalez — “Texas Tenor”. Texas toma redobrado lugar em Lisboa. O tenor do Texas desse The Budy Tate Quartet trazido em evocativa presença para este quarteto de humanização em acção. 

A dupla de tempo e ritmo dos irmãos Gonzalez é um transbordante êmbolo que tudo possibilita. Quer no trabalho motor, em conjunto, quer por separado. Aaron trouxe pulso groove até mais não, deslumbrou na criatividade do contrabaixo, explorando possibilidades, e nunca abdicou de expressar vocalmente o seu grito de satisfação sempre que a harmonia lhe batia perfeita. A Lopes cabia um papel de timoneiro, que contudo não se fez notar naquilo que as lideranças têm de bacoco e de desinteresse, isto é sem destaque nem protagonismo algum, indo além no conjunto. Isto é algo a quatro e essa coesão é notável na música, em palco e na estrada (ouvimos já muitas e boas histórias das road trips destes quatro).

Houve diversão, compromisso e cumplicidade em palco. Escrevemos sobre uma das formações de jazz que mais comunhão podemos comprovar. Houve duetos entre os 4, como também uníssonos entre guitarra e tenor. Mas voltámos a escutar no seio de uma formação coesa um dos mais destacados saxofones tenores do nosso tempo. Amado deslumbra a cada passagem, força criativa. Soube surpreender com recortes de densidade minimal e até de uma certa palheta drone em alguns momentos. Mas sem abdicar do seu primor de fraseados intensos e poéticos, que ilustram paisagens, como o olhar de fotógrafo que o é. 

Este quarteto faz justiça ao nome que transporta, demonstra como a música tem esse papel de tornar humano no acontecer, de um sem concessões num reencontro entre as partes, no seio da humanidade. É tão bom fazer parte desta celebração. Mas há ainda o lugar imprescindível da intervenção. Lopes, de microfone na mão, adverte que estes dois (Aaron e Stefan) vieram do Texas. “Olhem que no Texas já se mataram dois presidentes…” E fica o resto assumido entre o que nem é preciso ficar expresso em palavras. Pudesse a música assim mesmo matar fascistas, como indicado na mensagem colada nessa longínqua guitarra de Woody Guthrie com “This Machine Kills Fascists”. Assim fosse de simples e imediato, no apontar do dedo, no sopro de um tenor, no riff de uma guitarra, entre o desprender de uma linha de baixo, contra um rufar da tarola. Um mundo que (assim) humanizado serviria melhor o seu propósito.


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