[TEXTO] Rui Miguel Abreu [FOTO] Direitos Reservados
Capítulo sete da publicação periódica no Rimas e Batidas dos capítulos do livro “House – A História” assinado por Rui Miguel Abreu e editado em 2006.
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[THE MUSIC BOX]
No caminho para a implantação definitiva do house, um episódio curioso teve lugar, introduzindo na já muito particular equação de Chicago um nome novo – o de Ron Hardy (na foto). Hardy era um veterano da cena de Chicago e foi o antecessor de Knuckles no que à exploração do filão disco na Windy City dizia respeito. Mas em 1977, mais ou menos ao mesmo tempo que Knuckles se decidia a trocar Nova Iorque por Chicago, Hardy decidiu partir para a Califórnia, onde ficou durante os cinco anos seguintes.
Em finais de 1982, quando o som do Warehouse começou a transcender a sua clientela negra e gay e um público mais próximo do mainstream começou a surgir à porta do clube alterando a sua atmosfera original, Knuckles resolveu sair e abrir a sua própria casa numa antiga central eléctrica – Power Plant foi o (óbvio…) nome escolhido. Mas os donos do Warehouse demonstraram, uma vez mais, ter um belo sentido de negócio e de oportunidade e num dramático e teatral golpe de marketing renovaram o Warehouse, alteraram-lhe o nome para Music Box e deram a Ron Hardy – jovem, negro e gay como Knuckles – o lugar de patrão da cabine de DJ.
“O Music Box foi aquilo em que o Warehouse se transformou depois de eu sair”, explicou Knuckles a Bill Brewster e Frank Broughton num artigo sobre Ron Hardy (15). “É que nem chegou a haver competição. Eu já lá tinha estado, já tinha trabalhado aquela sala. E agora a multidão era completamente diferente. Tinha mudado drasticamente. Quando eu decidi sair, lá foram eles pedir-lhe para tomar o meu lugar. Ele veio ter comigo e perguntou-me o que pensava do convite deles. Eu disse-lhe: ‘Penso mesmo que devias aceitar. Mas toma atenção e mantém os teus olhos abertos e a tua concentração no máximo e não deixes que eles te ofereçam coisas que possas tu mesmo arranjar. Aceita e certifica-te que eles te dão tudo aquilo que precisas para te sentires bem. Não trabalhes com um sistema de som que não te satisfaça. Não deixes que eles te ofereçam drogas e isto e aquilo quando podes tu próprio ir comprá-las. Diz-lhes o que queres, quanto queres ganhar e o que precisas para trabalhar.’ Este foi o meu conselho para o Ron.”
Apesar de a memória retrospectiva de Knuckles conferir aos dias da “passagem de testemunho” uma certa aura de nobreza, a verdade é que a transição foi complicada: os fãs de Knuckles seguiram-no para o Power Plant, mas uma nova geração de clubbers estava a despontar e a Ron Hardy dedicaram um fervor ainda mais intenso, alimentando-lhe o seu enorme ego e correspondendo com entusiasmo desmedido a cada um dos seus selvagens sets onde temas de new wave, disco mais musculado, as primeiras experiências no domínio do house e muitas das produções que levariam o carimbo italo (16) surgiam em força.
As sessões no Music Box comandadas por Ron Hardy ganharam uma tal reputação que muita gente descreve-as de forma arrebatada, não se coibindo de lhes atribuir responsabilidades na transformação das suas vidas. Marshall Jefferson, produtor veterano de house, terá mesmo afirmado que nem sequer gostava de música de dança até ter ido ao Music Box e ter testemunhado uma das viagens comandadas por Ron Hardy: “Eu odiava música de dança. Só gostava de rock. Pensava que a música de dança era assim meio palerma até ter ido ao Music Box e ter ouvido essa música com aquele tremendo volume,” explicou Jefferson (17). Outro dos produtores pioneiros citado no mesmo artigo de Bill Brewster e Frank Broughton é DJ Pierre que recorda ter ouvido os seus primeiros temas de house num dos energéticos sets de Ron Hardy a que o público correspondia de forma intensa, gritando o seu nome.
Todas as personalidades citadas nas diversas fontes que evocam a atmosfera do Music Box são unânimes em diferenciar esse público daquele que seguia Knuckles em termos de classe. Chez Damier descreveu o Music Box como sendo “mais ghetto” e o público que ia ao Power Plant como “mais sofisticado”. A verdade é que acabavam os dois por ser faces alternativas de uma mesma realidade e em ambos o campo para a descoberta era muito generoso. Knuckles aproximou-se de produtores como Jamie Principle que estava a desenvolver um som mais acetinado, próximo de algumas das experiências de Prince. Já Hardy preferiu dar guarida a homens como Marshall Jefferson e DJ Pierre que estavam à beira de transportar o som para outra dimensão.
Quando faleceu, em 1992, Hardy deixou um legado enorme – a forma como dirigiu o Music Box, com um espírito aberto plenamente interessado na descoberta, permitiu que uma nova cultura florescesse e que uma série de artistas conquistassem espaço mesmo antes de haver editoras interessadas em lançar aquilo que andavam a fazer. Hardy inspirava-se na música e os músicos inspiravam-se em Hardy. Poucas vezes na história terá havido uma combinação tão perfeita!
[NOTAS]
15 – Publicado originalmente na Faith e disponível em www.djhistory.com.
16 – O género Italo Disco deve a sua designação a uma concentração geográfica de um determinado tipo de som, primeiramente assumido em “The Best of Italo Disco”, uma compilação editada na Alemanha em 1984 pela ZYX. As raízes desse som, no entanto, são anteriores e remontam ao final dos anos 70 quando uma série de músicos italianos, das mais diversas proveniências, mostraram um entendimento prático do negócio da música começando a produzir o tipo de som que as pessoas queriam ouvir, nomeadamente o Disco importado dos Estados Unidos. Destes músicos, gente como Claudio Simonetti, por exemplo, tinha a sua origem em áreas bastante distantes da música de dança. A sonoridade típica do Italo Disco clássico – carregada de sintetizadores – fica a dever-se não a uma consciente procura de um som mais electrónico, mas muito simplesmente à necessidade: não havendo acesso a orquestras com secções de cordas e metais, o produtor de Italo Disco foi forçado a procurar na tecnologia disponível (moogs, arps, oberheims, linndrums, tb 303, etc) as ferramentas necessárias para realizar a sua visão dançante.
Nomes como o de Alexander Robotnick ou compilações como “Unclassics” organizada por Morgan Geist são boas pistas para quem quiser explorar mais esta sonoridade.
17 – Mesmo artigo de Bill Brewster e Frank Broughton citado no número 15.