pub

Texto: Vítor Rua
Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 31/01/2025

Das raízes ao horizonte sonoro.

himalion na Galeria Zé dos Bois: um sopro de intimidade e transcendência

Texto: Vítor Rua
Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 31/01/2025

[Raízes em Movimento]

Aveiro, um mapa de mar e sal, um lamento de chuva a escorrer nas gôndolas de uma Veneza atlântica. himalion nasceu aqui, não por acaso, mas por destino de cordas invisíveis que o empurraram para a música, como um rio que encontra o mar sem hesitar. No sangue, uma herança materna feita de sons, ecos, harmonias que nunca cessam. A mãe tocava, os avôs cantavam, e no meio dessa casa sem silêncio, um jovem Diogo Sarabando escutava.

Aos catorze anos, o primeiro gesto de autodeterminação: comprar uma guitarra. Um acto quase ritual, uma promessa a si mesmo. O mundo à sua volta ainda não sabia, mas nascia ali uma voz sem rosto, um projecto sem tempo. himalion não estava ainda nomeado, mas já existia.

[Ondas de Indigo e Outras Marés]

O começo foi um reflexo do que existia: as canções dos outros, repisadas e devolvidas ao mundo. Primeiro covers, depois Indigo Waves, a banda que era um pórtico para algo mais. O rock psicadélico como uma casa de espelhos, onde cada nota ecoava para territórios inexplorados. Mas o desejo de autonomia espreitava.

No quarto, a gravação caseira começava a ser ofício. James Davidson foi o primeiro pseudónimo que usou, um disfarce para uma voz ainda por consolidar. Depois, veio um outro nome, um outro rumo. Nos The Lemon Lovers, a experiência de tocar para uma audiência alheia, de se fundir num som colectivo. Mas himalion, a identidade futura, crescia em subterrâneo.

[O Primeiro Rasto: EGRESS]

himalion ergueu-se com um primeiro sopro: EGRESS, um EP, um limiar. Oito canções que se tornaram portal, entrada e saída simultâneas. No indie-folk que encontrou como casa, soaram os anos 60 e 70, e no entanto, a música portuguesa, a música de longe, a world music, teciam um manto invisível. himalion não era uma ilha, mas um arquipélago de influências em colisão e fusão.

EGRESS abriu portas, mas o mundo fechava-se. O ano 2020 transformou as cidades em desertos e os estúdios em refúgios. himalion não parou. Entre quatro paredes, com o tempo suspenso, surgiram as sementes de um próximo disco. Um novo lugar para a esperança.

[Florescimento na Tempestade: BLOOMING]

BLOOMING não é só um disco, é um jardim. Cresceu no Puppy Garden Studios, um nome que é casa e estúdio ao mesmo tempo. Cresceu também na Casa da Música, em Ílhavo, com a intuição de um jardineiro que sabe quando podar e quando deixar crescer.

Se EGRESS era um sussurro de isolamento, BLOOMING é uma carta de Primavera, um chamamento para a renovação. A percussão despontou como nova folhagem, a guitarra clássica ganhou protagonismo. O disco teve raiz na ingenuidade, como se a arte naïf se infiltrasse na música. Músicos de Aveiro e Porto moldaram este solo fértil, e no fim a mão de Paulo Mouta Pereira deu-lhe a forma definitiva.

E foi através deste disco que himalion se tornou aquilo que sempre procurava: um nome com raiz, um som com morada.

[O Que Vês É Tudo O Que Existe: WYSIATI]

Nos picos e vales da história, himalion encontrou um refúgio. Numa casa chamada Lost in Pico, na ilha onde a montanha toca o Atlântico, começou o esboço do novo disco. WYSIATIWhat You See Is All There Is. Um conceito de Daniel Kahneman, um viés cognitivo, um aviso: o mundo é mais do que parece.

Ali, entre criptomérias e areia vulcânica, himalion escreveu sobre aquilo que não se vê: a mudança, o futuro que não cabe na lógica do passado.

Num curso guiado por Robin Pecknold (Fleet Foxes), encontrou-se na ideia de comunidade, e a comunidade respondeu. Robin financiou a gravação, a vontade abriu caminho. Nos estúdios Sugar Mountain, Phil Weinrobe misturou o disco, Josh Bonati masterizou em Brooklyn. himalion agora estava ligado a um mapa sem fronteiras.

WYSIATI é um ciclo que se completa. O presente visto do passado. O passado transformado em canções que não são memórias, mas movimentos, começos, desdobramentos.

[O Som Como Horizonte]

himalion não é um lugar fixo. É uma música que se move entre a terra e o oceano, entre a infância e o desconhecido.

Cada disco é um lugar, mas também um caminho. Aveiro não ficou para trás, Ilha do Pico é uma escala, Brooklyn é um eco. A música de himalion existe entre o visível e o invisível, entre o que se vê e o que se intui.

E nisto, himalion floresce, ancora-se, respira.



[Uma Geografia Sonora Entre o Tempo e o Espaço]
O Silêncio e a Imaginação: A Dança Invisível

[O Primeiro Passo: Uma Sala, Um Nome, Um Encontro]

No coração de Lisboa, escondida entre ruas que guardam segredos de noites infinitas, ergue-se a Galeria Zé dos Bois. Um nome sussurrado entre os que sabem, os que procuram, os que sentem. Ali, onde o som se enraíza nas paredes e ressoa pelos tectos altos, himalion ergueu-se num palco despido de tudo, excepto do essencial: a sua guitarra, um amplificador Fender, um punhado de pedais de efeitos e um universo inteiro dentro de si.

Era o seu primeiro concerto a solo em Lisboa para a apresentação do seu novo LP. E essa palavra — solo — não significava isolamento, mas sim uma abertura total. Estava ali, perante nós, a oferecer-se sem filtro, sem banda, sem outra pele que não a sua própria voz e os sons arrancados à madeira e ao metal da sua Epiphone.

[A Matéria do Som: Silêncio, Destreza e Vôo]

“Imaginem uma banda”, pediu-nos. E fechámos os olhos, aceitando o desafio. Mas o que aconteceu foi o inverso: ao invés de preencher o vazio com fantasmas de bateria e baixos invisíveis, foi o próprio himalion quem nos preencheu. Não precisávamos da banda que ele evocava — ele era inteiro.

A sua técnica era um rendilhado minucioso, um tear de sons onde os dedos percorriam as cordas num fingerpicking preciso, alternando entre notas nítidas e dedilhados etéreos que se dissolviam no ar. Do clean ao crunch, dos sons etéreos aos estalidos de distorção subtil, jogava com a dinâmica como um alquimista sonoro. As notas nasciam como gotas de orvalho antes de se transformarem em tempestades.

[O Repertório: Canto, Memória e Paisagem]

As primeiras notas de “white whale” abriram um portal. A sua voz, transparente e densa ao mesmo tempo, invadia-nos sem pedir permissão, como um rio subterrâneo que encontra uma fissura na terra e desagua no inesperado. himalion cantava, e os versos flutuavam em espirais sobre nós.

Seguiram-se “lighter than air”, “wind rose”, “the long wave”. No meio dos intervalos, com a guitarra a descansar no colo, ele falava connosco, não como um artista distante, mas como um amigo. Contava-nos que ao criar WYSIATI imaginava uma música para dançar. Mas seria mesmo? “Vocês dançam?”, perguntou, rindo. E rimos com ele. A dança aconteceu dentro de cada um, na sinapse de um ritmo que se fez movimento interno, um balé neuronal.

E depois, um desvio inesperado: um tema em português. De repente, a língua mudava, mas a essência não. Era como se sempre tivesse estado ali, camuflada entre as sílabas do inglês. himalion deslizava entre idiomas com a fluidez de quem entende que a música é um idioma próprio, sem fronteiras nem gramáticas estanques.

[A Voz, Ouro Líquido e Metamorfose]

A voz de himalion era um espelho em mutação. No canto normal, havia firmeza e melancolia. No falsete, algo inumano, um espectro de luz onde se entrelaçavam notas masculinas e femininas, um jogo de identidades sonoras. Quando nos pediu para imaginarmos uma voz feminina ao seu lado, uma Nico invisível, sentimos a presença dela no ar.

O público, atónito, deixou-se levar. E a música tornou-se carne.

[O Fecho: A Arte da Simplicidade]

himalion terminou. Mas o som continuava. Um eco na ZDB, um brilho persistente em cada um de nós.

A simplicidade gerou complexidade. O que parecia um concerto solitário foi, na verdade, uma experiência de plenitude absoluta. himalion é um ser de rara inteligência, e a sua música é feita de verdades escondidas em melodias.

A grande ovação final foi mais do que um aplauso: foi o reconhecimento de que estivemos, por um breve momento, dentro de uma obra-prima efémera.



[O Vento Canta Ondas Invisíveis: Cartografia Poética de himalion]
A Perseguição do Eco: Fragmentos de Um Horizonte Sonoro

[A Caça ao Inatingível: “white whale”]

Uma obsessão, um mito, um espelho. O branco cintilante de um animal que não se deixa capturar. himalion navega na sina de Ahab, perseguindo um ideal de perfeição ou um fantasma de si mesmo. “I hunt for the white whale” é um murmúrio incansável, uma promessa de que o horizonte nunca será alcançado.

A caça é um eco interminável de um desejo nunca satisfeito. O poeta está sempre “only miles away”, sempre à beira daquilo que nunca chega. A distância não é um espaço físico, mas um véu, uma barreira de luz fina, leve como um “white veil”, e no entanto tão opaca como a própria densa monomania.

Será esta busca apenas fé? Ou uma promessa vazia que nos consome? himalion questiona, mas nunca responde. No mar limpo, sem sombras, ficamos apenas com as nossas próprias ilusões.

[O Peso do Ar: “lighter than air”]

Se tudo o que sabemos é tudo o que existe, então o que fica fora do olhar? himalion explora a leveza, mas também o vazio. “All I know is all there is”. Um aforismo ou um limite? A consciência própria parece um oceano calmo, sem perturbação, sem véu de ilustração.

Mas o ar pode pesar. A sensação de flutuar, de ser “lighter than air”, não é liberdade, mas desorientação. Como um eco que se cita a si mesmo, como palavras que se perdem na sua própria repetição, o poeta interroga-se se o seu conhecimento é uma certeza ou apenas um reflexo turvo.

A quietude do oceano não é conforto, mas um silêncio onde os outros já partiram. Quem fica para dizer se a leveza é leveza mesmo, ou apenas ausência?

[A Rosa dos Ventos e o Paradoxo do Ser: “wind rose”]

O vento levanta, mas também pesa. himalion encontra-se na dialéctica do movimento e da imobilidade. “War on Zephyr, shielded by a dandelion” é um paradoxo, uma contradição que define o que significa estar vivo. Podemos resistir ao vento, mas com um escudo tão frágil quanto um dente-de-leão?

A mudança é apenas ilusão. “You’re the same within, still no Theseus’ ship”. Não somos um navio reconstruído, mas um corpo onde cada parte foi trocada lentamente, sem nunca deixarmos de ser nós. himalion escreve sobre a identidade e a perenidade dentro do fluxo do tempo. Mudamos? Ou apenas dançamos na mesma corrente, disfarçando-nos de novos?

O vento não decide, mas move-se. O poeta aceita a incerteza e confia no impulso. Talvez a resposta esteja na própria deriva.

[O Vazio e a Onda: WYSIATI]
Fragmentos de um Azul Imenso

No início, há um mar calmo, uma respiração lenta do mundo. “A sea so calm”, murmura a canção, e é nesse espaço de suspensão que nos encontramos, à espera de um som, de um gesto, de um sinal.

Mas o silêncio não é paz, é um vazio expectante. Cada onda tem um nome, cada ondulação guarda uma memória. O mar parece imóvel, mas sob a sua superfície algo se move, uma inquietação invisível. himalion constrói este cenário de serenidade aparente onde cada verso é um eco de algo prestes a acontecer.

“Godless ocean, empty canvas”. O oceano sem deuses, sem mitos, sem narrativas. A ausência de uma presença divina transforma a paisagem em tela vazia, onde tudo pode ser projectado, mas onde nada está fixo. A água já não é espelho, mas um véu opaco.

Aqui, o tempo dissolve-se. O passado é apenas um espectro, um fragmento longínquo que o presente tenta reter. “What is unknown is keeping you from letting go”. O desconhecido paralisa, mantém-nos presos ao que já passou, porque o que vem a seguir é sempre um precipício. O medo do vazio confunde-se com apego.

O vento levanta-se e tudo ganha movimento. “When there is wind, there is a wave”. Uma regra física e existencial. Quando algo sopra dentro de nós, não há como evitar a mudança. Mas alinhar-se com esse fluxo não é fácil: “When you align, so does the tide”. A maré obedece, mas só se nos entregarmos ao ritmo do indizível.

A canção de himalion fala-nos de uma aceitação hesitante. Como quem caminha sobre areia molhada sem saber se a maré está a subir ou a descer, o poeta joga-se na incerteza. Não há destino, apenas a promessa de movimento.

“Hallowed? It’s just the past…”. A sacralização do passado é um truque da mente. O que se foi parece sagrado, mas só porque nos recusamos a libertá-lo. O presente escoa-se entre os dedos e deixamo-nos hipnotizar pelo que já não está.

A pergunta final paira no ar: “How long do you think you’ll let it last?”. Quanto tempo deixaremos que as sombras do passado governem o agora? O que sabemos é apenas o que vemos, mas haverá sempre algo por detrás, algo por descobrir, algo que não se vê e, por isso, parece não existir.

No fim, ficamos com um mar sem resposta. O que sabemos é sempre insuficiente, o que sentimos nunca é definitivo. himalion desenha uma paisagem onde tudo se move, mas onde a nossa mente insiste em procurar estabilidade.

O oceano canta sem memória. Cada onda, um novo começo. Cada sopro, uma despedida. E nós, ouvintes errantes, deixamo-nos levar, sempre na fronteira entre o que sabemos e o que nunca veremos.

O que vês é tudo o que existe. O mar sem deuses, a tela vazia, um céu azul que se desdobra em calma. himalion coloca-nos perante um oceano de ausência, um espaço sem símbolos nem mitos. “Here every wave has its own name”. A individualidade existe, mas dissolve-se na mesma imensidão.

A nossa própria imobilidade é um mito. O mar, tão calmo, sussurra uma resposta: nada está parado. Tudo, no fim, se move.

O que vemos é tudo o que existe? Ou existe sempre um vento a levantar a próxima onda?

[O Som Que Desaparece Antes de Ser Ouvido]
A Travessia Sem Horizonte

Os poemas de himalion são viagens sem chegada. São mapas desenhados em ondas, são rastos no ar que desaparecem antes de serem fixados. Entre a obsessão pelo inalcançável, a ilusão da leveza, o paradoxo do eu, e a fluidez do tempo, himalion traça um percurso onde a dúvida é o próprio norte.

Há músicos que escrevem canções e há músicos que escrevem geometrias invisíveis no ar.

Diogo Sarabando é um desses cartógrafos do efémero, desenhando mapas sem bússola, onde as coordenadas não são fixas, onde cada nota é uma despedida e um regresso simultâneo.

O seu percurso não se mede em palcos percorridos, mas no modo como a memória se entranha nas melodias, como se cada som fosse um eco de algo que nunca chegou a acontecer.

O que significa lançar âncora num lugar onde a terra treme? Construir um estúdio num sótão de madeira sobre um arquipélago vulcânico? Ouvir o Atlântico antes de compor?

Diogo não procura respostas, mas o instante antes da pergunta. Há um desejo de permanência na sua música, mas também um entendimento silencioso de que tudo escapa.

O azul que cobre a sua obra não é só cor — é linguagem, é ausência e promessa. A cyanotype que veste WYSIATI não é só oceano, é o esquecimento das margens, a certeza de que nada do que fixamos se mantém.

Há um erro fundamental na nossa percepção do tempo: confiamos demasiado naquilo que já vimos. O passado cola-se ao presente como uma sombra persistente, e no entanto, há sempre um vento que empurra o horizonte um pouco mais longe.

A música de Diogo compreende essa ilusão. Cada composição é uma tentativa de segurar um instante, sabendo de antemão que ele se dissolverá. Mas não há tristeza nesta transitoriedade – há aceitação, há um murmúrio de esperança nas entrelinhas, um eco de que a mudança não é uma ameaça, mas um ciclo inevitável.

Na quietude do estúdio, entre o ruído da gravação e a expectativa do que virá, algo se revela. A colaboração, a voz dos outros, o gesto generoso de quem empresta sons para que uma paisagem maior se desenhe.

A música de himalion nunca está só, mesmo quando parece solitária. É uma conversa entre silêncios, um coro de invisibilidades. Uma voz que se desfaz no vento, mas que, por um instante, ecoa mais alto do que o próprio tempo.


pub

Últimos da categoria: Reportagem

RBTV

Últimos artigos