Santa Hildegarda de Bingen, abadessa de Rupertsberg, é aquilo a que comumente apelidamos de polímata: teóloga, compositora, poetisa, naturalista, dramaturga, escritora, mística. O arquétipo do homem renascentista, na figura de uma mulher que nasceu séculos antes de génios como Galileu, da Vinci ou Miguel Ângelo. Durante os seus 86 anos de vida pregou, fundou conventos e compôs inúmeras peças para voz e coros, algumas delas interpretadas ainda hoje por reputados ensembles especializados nos assuntos relativos às músicas medievais. Além das suas sagradas monofonias, tão importantes para visionárias deste século como Holly Herndon e Antonina Nowacka, é responsável pela criação de um novo e misterioso vocabulário, a lingua ignota (latim para “idioma desconhecido”), composta por um conjunto de 23 caracteres que tinham por objetivo reproduzir uma ideia universal de linguagem, eliminando as suas falhas formais.
Helena Deland e Ourielle Auvé (aka Ouri), que juntas conjuram mundos pop sumptuosos sob a designação Hildegard, podem não ter criado o seu próprio idioma, mas têm léxico e espessura suficientes para se esquivarem a leituras fáceis. O álbum de estreia homónimo, editado em plena pandemia, trouxe o abandono hedonista da pista para a experiência privada do quarto, corpos suados recriados em formas pop movidas pelo embalo da bass music, em contraponto com o aconchego da música ambiental. Foi a primeira junção entre duas figuras de esferas muito distantes: Deland conquistou sorrateiramente o seu lugar nos campos do novo cancioneiro indie, verbalizando com acutilância sobre as temáticas do luto e da passagem inevitável do tempo; Ouri contribuiu com passagens de harpa, voz e violoncelo em trabalhos de Jonah Yano, Tess Roby e Nosaj Thing, desenvolvendo uma ideia insular de R&B futurista em paralelo.
Ao segundo álbum, a dupla não descura das fórmulas exploradas com sucesso no passado, aperfeiçoando a arte de escrever pequenas canções sobre grandes questões, sempre de forma descomplicada. Jour 1596 é um tour de force pelas formas sintéticas da pop de lavra moderna, em confluência com as silhuetas do R&B de raiz clássica. Mas há algo na estreia de 2021, contida e selvática em iguais medidas, que se perde pelo meio. Se antes era a abstração a impor-se ao vocabulário denso de Hildegard, agora é o sincretismo a reclamar a sua posição. Perde-se o toque da textura, ganha-se a massa heterogénea do ecletismo. A este ideário juntam-se as formas livres do jazz, os ecos quartomundistas de Jon Hassell (na reta final de “Pour Your Heart Out”) e os interlúdios ao piano muito ao estilo de Duval Timothy (em “Beverly”), bem como as requintadas secções que Ouri desenhou para vários instrumentos de cordas, fruto de anos de aturado estudo em conservatórios.
A numeração que compõe parte do título de Jour 1596 corresponde ao número de dias que a dupla levou a concebê-lo. O antecessor, por oposição, foi escrito de forma orgânica em apenas oito dias. Segundo as notas que acompanham o disco, Jour 1596 marca esse contraste entre a “espontaneidade” do primeiro álbum e o moroso processo que levou à concepção do último. O resultado, ironicamente, é um disco de rápido processamento: 26 minutos de cetim e beleza desarmante que, não tecendo vernáculos novos, desoculta mundos libidinosos de camadas e candura pop.