Há que admirar a entrega e constante demanda exploratória de João Branco, aka Kyron, músico que investe em diferentes frentes criativas, mas sempre com o mesmo impulso de generosa partilha dos resultados das suas pesquisas laboratoriais, na música, sobretudo, mas não só.
Incorporeal é o título mais recente na discografia dos Hidden Horse, dupla que mantém com Tony Watts, baterista e seu companheiro em Beautify Junkyards. O novo álbum acabado de lançar na lisboeta Holuzam inclui participações de Clothilde e Arianne Churchman e merecerá apresentação de palco já no próximo dia 28 de Outubro, sábado, na SMUP, Parede, e a 3 de Novembro no Passos Manuel, Porto.
A “conversa” presente resulta de troca de emails ao longo de um par de dias chuvosos neste arranque pintado de cinza e negro de Outubro.
Numa conversa reproduzida na antologia de escritos do k-punk, o Simon Reynolds e o Mark Fisher discutem o desaparecimento da ideia de futuro da música electrónica. O Reynolds fala na perda da “carga libidinal” da ideia de futuro, tanto para produtores como para ouvintes da música, e o Fisher argumenta que “o problema é que a palavra ‘futurístico’ já não tem ligação com qualquer futuro que alguém ainda espera que possa acontecer”. De facto, muita da música electrónica a que tenho prestado atenção, como é o caso da vossa, parece mais interessada em revisitar futuros que se imaginaram no passado do que em inventar novos futuros. É assim?
É um tema muito interessante e pertinente, que tem sido alvo de muita discussão e análise nos últimos anos. Ainda hoje em dia se mostrares a música dos Kraftwerk (produzida há mais de 50 anos) à maioria das pessoas, vão dizer que se trata de música “futurista” e só com esse exemplo se percebe que o termo “futurista” está ligado a uma projecção de futuro imaginado, futuro esse que nunca nos chegou e cuja expectativa acerca do mesmo tem vindo a desvanecer. Isso acontece em todas as expressões artísticas, vemo-nos a pairar numa era em que a tecnologia tornou todos os gêneros e estilos alcançáveis ao dedo no gatilho, toda a história, toda a bagagem, aqui e agora, todos esses fantasmas a habitar o espectro electrónico e a invadir os nossos sentidos através de ecrãs e colunas de som. Tudo isso gera com que, no campo criativo, o novo passe a ser reciclagem, obviamente com re-adaptação de discursos e temáticas à época que vivemos, mas mesmo assim uma reciclagem, um híbrido multi-temporal-geográfico. A nova electrónica de cariz mais experimental está repleta de criadores que utilizam sintetizadores analógicos modulares que reproduzem synths dos anos 70, na electrónica mais dançante proliferam projectos que utilizam sintetizadores polifónicos dos anos 80 e vemos cada mais empresas como a Behringer a apostar na produção e “democratização” desse tipo de maquinaria. Mas no fim de contas tudo se resume ao resultado, os ingredientes todos conhecem e têm acesso, mas o segredo é perceber os percurso dos mesmos, as raízes, as ramificações. Só assim se consegue produzir música que não seja unidimensional, superficial e estéril. E há também o elemento fundamental, a criatividade, há malta a fazer álbuns incríveis com “sintetizadores e drum machines de bolso”.
Quanto à última questão, acho que o regresso a um futuro imaginado no passado é uma questão de necessidade criativa, para quem possui esperança em inverter o rumo que tomámos, penso que muitas vezes isso acontece de forma subconsciente pela sensibilidade e vulnerabilidade de cada um de nós.
O que mudou ou se transformou ou evolui de Opala para este Incorporeal? A experiência de tocarem ao vivo teve algum peso nessa eventual mudança?
Assim que o álbum Opala foi lançado começámos a tocar bastante ao vivo e criou-se uma dinâmica mais forte e coesa, principalmente na vertente rítmica, a linguagem entre a bateria acústica, a bateria electrónica e os ritmos programados tornou-se mais orgânica. Esse factor foi determinante para o resultado do Incorporeal, associado ao facto de que também tivemos mais tempo para experimentar sons, texturas, samples, e mergulhar num trabalho de pesquisa sónica e temática mais envolvente à música que criamos, escolhas estéticas, visuais, que tornam o som dos Hidden Horse mais especial e enigmático. Lá está, resgatar fluxos interrompidos, canalizar a presença desses “fantasmas”, vestir a sua roupa e, como diz o Burroughs, “provar o que andaram a comer”.
Apesar do título do novo álbum, a vossa música soa-me extremamente física, densa até, como se fosse palpável. Como a sentem vocês?
O título Incorporeal vem de ligações multi-sensoriais, sentidas, partilhadas. Tornares-te transparente (invisível) numa pista de dança de um clube, habitares a tua dimensão mágica. Gerar arrepios e perplexidade ao injectar um poeta a declamar no circuito de CCTV de um banco ou um cavalo branco a percorrer os túneis no CCTV da rede de metro. Mas a música do disco é orgânica, explora as fronteiras do corpo com o pulsar das várias cidades que existem em cada uma delas, é como se o disco entregasse, de forma subliminar, coordenadas para sítios imaginários, onde nos possamos perder e reencontrar com outra forma.
Quanto a referências, que mapa nos podem traçar? Nas notas de lançamento, o já mencionado Simon Reynolds, que é pessoa de pontaria afinada, aponta gente como Cabaret Voltaire ou Chris & Cosey como pontos de comparação possíveis para o som que exploram agora. De facto, há uma certa “aspereza” de cariz industrial na música que aqui apresentam. É por aí que se movem? Foi resultado natural de trabalho desenvolvido organicamente, como já sugeriram, ou decisão consciente de quem escolheu uma direcção antes de se por a caminho?
Foi um misto, havia a vontade de resgatar alguns fluxos sonoros de artistas, como os que o Simon citou na sua apreciação do álbum, não tanto na vertente mais industrial, mas na componente rítmica e de texturas e estruturas, foi algo que nos entusiasmou experimentar, mas também unir isso com sonoridades mais contemporâneas de artistas como Burial, Actress, Demdike Stare. Acho que há alguma aspereza, mas também uma certa desolação/decadência poética em todas essas referências. Depois, durante o processo surge o nosso cunho pessoal, os vários anos que levamos a tocar em conjunto (eu o baterista Tony Watts) trazem uma mística que não se traduz muito por palavras ou conversas estéticas, é algo que flui e que muitas vezes nos leva a lugares pouco explorados. No fim desse período de experimentação e gravação de ideias, há então uma confluência do que foi criado em direcção ao que almejamos enquanto Hidden Horse, o que faz com que só aproveitemos um fracção das bases criadas.
Como é que isto se conjuga com outro projecto que ambos integram? Os Beautify Junkyards sempre exploraram uma certa ideia de paraíso natural, bucólico, mais ligado ao campo do que à cidade, mas Hidden Horse habita, decididamente, outra dimensão… vá lá… psico-geográfica, bem mais nocturna e urbana. É assim?
Eu acho que são bandas complementares, mas com algumas características em comum, e também os Hidden Horse, sendo um projecto mais experimental e livre, funcionam como uma espécie de laboratório para os Beautify Junkyards. Em ambas as bandas há uma ideia de desconstrução, sendo que no caso dos BJ, as músicas assentam sobre uma estrutura pop, mas uma pop subvertida por elementos sonoros, poéticos e rítmicos que a personalizam à nossa maneira. Os Beautify Junkyards ao longo da sua carreira de 10 anos e 4 álbuns têm vindo a transmutar o seu som, com uma matriz folk mais acentuada no início mas em que aos poucos temos introduzido ligações à electrónica mais experimental. Também no universo lírico, as imagens mais bucólicas e pastorais têm vindo a ser contaminadas com outros universos, como por exemplo a “Zodiak Klub” ou a “The Sphinx” do álbum Cosmorama. Daí achar que existem algumas propriedades semelhantes, mas efectivamente os Hidden Horse habitam em territórios muito próprios, mais “slave to the rhythm”, e só assim faria sentido para nós, expormos facetas diferentes da nossa criatividade e explorar sons que gostamos há muito tempo e que ainda não tínhamos tido oportunidade de o fazer.
A ligação à Holuzam está a provar ser frutuosa e proporciona-vos um certo contexto, insere-vos numa cena mais ampla. Sentem-se parte de algo maior no que ao panorama nacional diz respeito?
Estamos bastante satisfeitos com a colaboração que iniciámos com a Holuzam, são amantes de música, melómanos e que nos dão total liberdade criativa. Sabem o que querem a nível sonoro e, além de editarem uma série de projectos contemporâneos na área da electrónica e electro-acústica, possuem também toda uma vertente meritória no resgate de pérolas mais esquecidas da música nacional (Telectu, Nuno Rebelo, Vítor Rua, etc.), o que é bastante meritório, num país que teima em desprezar os seus arquivos e historial musical (por onde andam os arquivos da Valentim?? da Movieplay?? etc, etc). Outro factor importante é a ligação que proporciona com outros projectos e músicos nacionais com os quais nos identificamos a diversos níveis, como por exemplo a Clothilde (que convidámos a participar no nosso álbum) ou o projecto Ondness do Bruno Silva com quem tocámos no aniversário da Flur. Este tipo de experiências, mais uma vez, acabam por ser complementares aos BJ, que estão ligados a uma editora britânica e em que o círculo criativo e colaborativo está mais sediado em Inglaterra. Mas no fim de contas, devido à ligação aos Beautify Junkyards, também os Hidden Horse acabam por ter visibilidade fora de Portugal, sendo que as cópias em vinil do álbum (que está quase esgotado) foram na grande maioria vendidas para o estrangeiro.
No que ao lado técnico da produção diz respeito, sentiram algo mudar no que diz respeito a ferramentas ou abordagens à produção. Experimentaram coisas novas?
Como sempre, trabalhámos com o nosso eng. de som de eleição, o Artur David, que é como se fosse uma elemento da banda. Eu trabalho muitos aspectos artísticos do som do disco, mas o Artur dá sempre sugestões que enriquecem os temas e, em relação à componente técnica, ele sabe perfeitamente o tipo de som que queremos alcançar. Uma novidade neste álbum é que finalmente consegui montar um estúdio caseiro no campo e foi lá que gravámos a bateria de todas as músicas, durante uma semana, sessões de gravação intensas, mas com algum tempo para saborear o vinho oferecido pelo vizinho e os petiscos da zona.
O que nos podem dizer sobre os vossos próximos concertos? Para lá de novo reporóorio, o que há de novo nestas expedições de palco?
Nos concertos as músicas ganham uma nova vida, há uma série de elementos novos e apresentamo-nos em formato trio com a companhia da Ana Farinha (baterista de Vaiapraia) que toca percussão, usa um prato de vinil com discos selecionados para cada música e é ainda responsável por intervenções vocais dadaístas. O concerto assenta no novo álbum, mas tocamos algumas músicas do anterior e também um par de peças novas. Depois há projecção de um vídeo que foi produzido por nós especialmente para os concertos e, depois dos concertos, a noite prolonga-se com um DJ set de Candy Diaz e Kyron, em que eu e a Ana tocamos um set com músicas próximas ao universo dos Hidden Horse (no wave, post-industrial, nu disco…)