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Fotografia: Ana Viotti
Publicado a: 14/06/2024

O artista mostrou as suas Pisaduras no primeiro disco em nome próprio.

Hélio Morais: “Na música que fiz antes, nunca me expus desta maneira”

Fotografia: Ana Viotti
Publicado a: 14/06/2024

Murais antes. Hélio Morais agora. O motor de Linda Martini que é também metade da máquina que faz trovões nos PAUS mostra uma outra faceta no tocante Pisaduras, álbum que se faz de uma íntima viagem ao encontro das próprias memórias, com dor e luz, com mágoas resolvidas e tanta outra matéria que não é assim tão usual encontrar nas canções que por cá se fazem neste tempo inconstante e estranho. Mas Hélio, que sonha coisas proibidas com olhos salgados, faz questão de abrir o livro e de ser transparente e de não esconder nada nas mangas.

Este Pisaduras, gravado nas duas margens de um oceano Atlântico que afinal não é tão grande assim, anda por estes dias a ser mostrado nos auditórios das FNACs:

[19 Junho] FNAC Sta. Catarina – 18h30
[20 Junho] FNAC NorteShopping – 18h30
[23 Junho] FNAC Leiria – 17h
[27 Junho] FNAC Chiado – 18h30
[28 Junho] FNAC Cascais – 18h30
[29 Junho] FNAC Almada – 18h30

Depois, a 11 de Agosto, Hélio leva as canções e gente amiga até ao Festival Bons Sons, para uma apresentação que se deseja intimista, para fazer justiça às memórias de pisaduras que já não doem na carne, mas ainda fazem tremer pelo menos quem as escuta e com elas se identifica.



Há aquele adágio popular que diz que não se devem julgar livros pela capa. Mas eu cá sempre julguei discos pela capa e posso dizer-te que se visse numa loja um disco com uma capa como a que tu apresentas no Pisaduras, ficaria suficientemente intrigado para, pelo menos, virar ao contrário, ler os títulos das músicas e as informações que ali viessem. Há uma história por trás daquela fotografia, não há?

Há. Aquela foto… Quando pensei na capa para este disco, pensei em várias coisas, e uma das hipóteses era eu, meio esmurrado. Ainda fiz essas fotos com a Ana Viotti, mas sempre desconfortável, porque por mais que eu saiba que a minha história é assim, normalmente a violência de género e tudo o mais não é sobre um homem, é mais sobre uma mulher. Sempre tive algum receio em usar uma foto dessas, porque algumas das pessoas que não estivessem conectadas com a história podiam pensar que eu estava a aproveitar-me de alguma coisa, de um lugar que não era meu. Tive sempre esse desconforto. De repente, cruzei-me com esta foto minha, em miúdo, atrás de uma série de troféus que não são meus, meio ocultado por esses troféus, e no canto esquerdo está o meu pai a olhar para mim com um ar super controlador, que eu reconheço facilmente. Tive a certeza que tinha de ser aquela foto. Até porque várias das histórias e situações que eu narro andam um bocadinho à volta de quando eu tinha essa idade — devia ter uns 6 ou 8 anos naquela foto. O que eu narro neste disco acontece ali, talvez, entre os meus 3 e 12 anos.

O que te lembras desses teus 3 anos de idade? São memórias muito remotas, não é?

Muito, mesmo. Eu tenho duas memórias com 3 anos. Uma é um bocadinho o que eu narro no “Pra que chegue ao fim”. Lembro-me de uma situação particular, porque deve ter sido bastante vívida, dos meus pais a discutirem imenso. Daí eu cantar “E eu de gatas no chão a chorar”, porque é assim que eu me lembro dessa situação. Lembro-me também de como era essa casa onde morámos, entre a Charneca da Caparica e Vale Fetal. Na parte de fora havia uma rampa que eu descia com um triciclo. Curiosamente, há uns 4 ou 5 anos, pedi ao meu irmão, que mora na Charneca da Caparica, e à minha mãe para irmos visitar a casa, para eu ver se ela era tal e qual eu me lembrava. E era! Foi bué surpreendente. Porque eu tinha 3 anos, não é? Podia ser uma memória construída, não real. Mas não, eu lembrava-me de como era a casa. Lembro-me de muito poucas cosias, quase nada, mas lembro-me da história dessa discussão e da estrutura da casa.

O teu disco anterior assinaste-o como Murais, grafando o teu apelido de maneira diferente, e neste assumes o teu nome mesmo. Há também uma razão para isso, certamente. Isto foi para vincar ainda mais o quão pessoais são estas histórias, não é?

Sim. Seria estranho… Quando comecei a fazer as canções deste disco, ainda sem pensar muito bem o que é que tinha, nas pastas e nas notas tinha apontado que seria o segundo disco de Murais. Só que depois comecei a pensar um bocadinho… Era um bocado estranho eu estar a lançar um disco tão pessoal, a falar de… Mesmo que eu não mencione nomes, as pessoas que ainda estão vivas sabem dessas histórias — as minhas irmãs, a mãe delas e a minha mãe. Seria estranho eu estar a falar destas pessoas e esconder-me atrás de um pseudónimo. Não dava para fazer dessa forma. Decidi assumir. Essa foi a razão principal. A outra foi porque, pela primeira vez, senti que encontrei mais ou menos a minha forma de fazer canções. Depois deste disco já fiz mais algumas, já tenho mais uma série delas, e têm relação com estas. No Murais eu estava ainda muito à procura. O Murais foi feito ao longo de muitos anos, eu nem sabia que queria fazer um disco sequer. Fui fazendo umas coisas, e quando achei que já tinha suficiente, deitei-as cá para fora, para aprender. Neste Pisaduras não, eu já sabia que queria fazer estas músicas.

Exactamente por haver aqui acesso a memórias que são dolorosas e complicadas, houve algum tipo de alerta que fizeste a essas tais pessoas que vão atravessando as tuas canções antes delas as ouvirem? Houve algum tipo de intervenção familiar nesse sentido de: “Preparem-se, porque eu vou revelar isto ao mundo.” Como é que a coisa funcionou?

Falei, sim. A primeira pessoa com quem falei foi com a minha mãe. Na verdade, a primeira canção que eu fiz foi a “Olhos salgados”, porque senti que a minha mãe ainda sentia culpa. Ela achava que me tinha abandonado e sentia culpa por isso. Eu vivia com o meu pai, portanto eu sei que ela não me abandonou, teve só de sair de casa, porque senão o tivesse feito poderia já não estar aqui hoje. Eu nunca lhe atribui essa culpa. Nunca tive esse ressentimento para com a minha mãe. Até porque, depois, eu fiquei a viver com ele, portanto sei como foi viver com esta pessoa. Mas a minha mãe revelou isso à minha ex-companheira, que sentia essa culpa. E eu, quando veio a pandemia e me deu tempo para fazer coisas, fiz esta primeira canção a cantar como se fosse a minha mãe, para lhe mostrar que: “Eu consigo colocar-me nos teus sapatos.” E está tudo bem. Nós somos muito amigos. Fomos construindo uma relação de amizade ao longo dos anos e nunca senti esse ressentimento. Eu sei que, às vezes, há relações em que os filhos acham que os pais foram ausentes. Eu não senti propriamente isso, porque eu sabia exactamente quais eram as razões para ela não estar tão presente e para não viver eu com ela. Quando comecei a ter idade para tirar o passe e já me podia meter num comboio, ia visitá-la quando me apetecia. Eu fiz essa canção para lhe mostrar que tá-se bem. “Estamos juntos e a continuar a nossa relação de afecto.” E essa relação é fixe, é boa. Eu vivi a minha vida toda com o meu pai e, obviamente, tenho muito amor por ele. Ele já não está vivo, mas tenho muito amor por ele. Eu não consigo é fechar os olhos às coisas más. Mas eu também tenho muitas memórias boas com o meu pai, como é óbvio. Nenhuma pessoa é só uma coisa, não é? Mas eu sou muito mais amigo da minha mãe do que fui do meu pai. E eu disse-lhe isso. Nós temos uma relação de troca, de estarmos os dois num sítio semelhante a conversar, que é muito mais próxima do que aquela que tive com o meu pai, que foi com quem vivi a vida toda. Essa canção serviu para lhe dizer isso. Ou seja, a primeira pessoa a quem mostrei foi a minha mãe, porque fiz esta canção tentando pôr-me nos sapatos dela, para que ela entendesse que eu percebia o porquê das coisas terem acontecido desta forma. Eu fiz a canção em 2020 e ela passou os últimos 2 anos a perguntar quando é que a canção saía, andava desejosa que ela saísse [risos]. Ela até foi ao concerto. Eu sinto que houve ali um reconhecimento, uma validação do que ela sentiu. Com as minhas irmãs, também as avisei: “Vou fazer este disco e ele toca em algumas coisas do pai. Esta não é a história verdadeira, mas é a forma de como eu olho para ela e a senti. E eu sei que vocês talvez a sintam de outra forma.” Foi super engraçado, porque eu achava que a minha irmã que viveu mais tempo comigo e com o meu pai — eu tinha 16 anos quando ela nasceu, por isso foi quase como se fosse uma filha minha, também — tinha uma ideia muito romantizada dele. Quando lhe falei sobre isto, vi que não. Ela simplesmente preferia assinalar as partes boas do meu pai — no dia de anos dele, no dia do pai, no dia em que ele morreu. Foi mesmo fixe falar com ela sobre isso. A minha irmã do meio, eu achava que tinha uma relação muito distante com o meu pai, porque foi a que viveu menos tempo com ele, foi ao contrário. Há pouco tempo, ela veio ter comigo e disse-me: “Mano, tu tens de resolver isso do pai. Não podes ficar agarrado só ao lado negativo.” Foi fixe ela dizer isso. Mas eu não estou só agarrado a esse lado. Eu estou a contar esta história, mas no disco anterior, no Murais, eu tenho uma música do dia em que eu fui ao hospital despedir-me do meu pai, e essa música é só sobre coisas boas.

Eu nunca fiz psicoterapia, mas duas pessoas que me são muito próximas já o fizeram. Em ambos os casos os tratamentos foram positivos. Eu convivi com estes dois casos muito de perto e, ao ouvir o teu disco, tenho esta sensação de que ele resulta quase de uma instrução de um psicoterapeuta — “Deverias escrever estas coisas.” Quão aproximada da realidade é essa sensação?

Na verdade, foi ao contrário. Eu já tinha feito terapia há bastantes anos, e fiz também terapia de casal durante 2 anos. Na altura em que comecei o disco estava ainda na terapia de casal, mas isso é uma coisa focada no casal, eu não falava nas minhas coisas do passado. Quanto muito, só se fizessem sentido por causa de alguns comportamentos da relação. Eu parti para este disco com alguma arrogância. Desde que eu sou adulto — e é por isso que há uma viragem no disco, a partir do “Tábuas, pregos e flores” — que me considero uma pessoa bastante feliz, com muita sorte. Então não queria que o disco fosse só isso. Mas eu achava que esta parte da dor não me ia impactar da forma que impactou. Em paralelo, ando a tentar escrever alguma história só sobre mim e o meu pai, sem as minhas irmãs. Em conversa com a Alexandra Lucas Coelho falei-lhe sobre isso e que também andava a fazer o disco. A história que eu ando a tentar escrever, já foi escrita e apagada. A minha cena era muito simples: “Uso ou não os nomes reais? E as profissões?” Ela virou-se para mim e disse: “Não tenho nada a dizer-te sobre isso. Mas estás a fazer terapia?” E eu: “Estou, mas de casal.” Eu não fazia terapia sozinho porque sentia que não era algo que me impactasse no dia-a-dia. E ela: “Pois, mas eu acho que te estás a meter aí num sítio e, por precaução, devias fazer.” Aquilo ficou atrás da orelha, sabes? Não fui logo, mas passado um mês: “Vou fazer terapia. Eu já faço terapia de casal e lá não há espaço para eu falar sobre como é que me vejo nesta relação. Se fizer terapia sozinho, se calhar tenho espaço para falar também sobre isso.” Para aí nas minhas primeiras 12 sessões, devo ter falado uma ou duas vezes sobre a minha relação. Foi tudo praticamente sobre o meu pai. Ainda bem que eu comecei a fazer terapia por conselho da Alexandra. Foi mesmo super importante. Portanto, eu já tinha escrito as letras, mas foi fixe analisar as letras uma a uma. Há uma canção, a “Almoço de domingo”, que para mim era uma canção feliz — e continua a ser, já lhe consigo atribuir esse sentimento de felicidade outra vez. Aquilo sou eu a narrar a história de quando eu ía a casa da minha bisavó — o lado da família da minha mãe é todo angolano. Quando comecei a terapia, a minha terapeuta pediu-me para eu lhe enviar 3 letras do disco, e eu enviei-lhe a “Olhos salgados”, o “Sonhei coisa proibida” e o “Almoço de domingo”, que era a música feliz. Ela pede-me para ler os versos da música, e há uma parte em que digo: “Mas eu queria também fazer parte dessa arte de não chorar só.” E ela: “O que é que queres dizer com isto?” Eu desmanchei-me a chorar… Percebi que não fazia parte daquela história, estava a narrá-la de fora. Isso foi muito fora para mim. Eu achava que aquilo era uma música feliz, mas não, é uma música de uma felicidade desejada, não necessariamente uma felicidade alcançada naquela momento. Então foi bué… Desmontou-me todo nesse momento.

Ainda há dias, nas compras num hipermercado, estava a tocar uma daquelas playlists com as músicas portuguesas que estão sempre a rodar. Eu dizia à minha mulher: “Estas pessoas cantam todas da mesma maneira e estão todas a falar do mesmo. Nota-se que são canções escritas por 10 pessoas e que, enfim, não dizem nada.” Parece que anda toda a gente de máscara. E tu, como esta conversa está a revelar, não temes expor-te assim e assumires-te como um livro aberto, literalmente.

O meu único receio era precisamente para com as pessoas que estão vivas e que fazem parte dele. Uma vez que falei com elas e elas estavam ok… Não só estavam ok, como me deram muita força para lançar este disco. Qualquer outra preocupação, como a forma como as outras pessoas olham para mim ou não, caiu um bocadinho por terra. É a primeira vez que eu falo de coisas tão íntimas, e eu sempre tive algum… Imagina, eu tive um blog durante muito tempo, e aí falava de coisas mais pessoais, só que ninguém lia aquilo. Na música que eu fiz antes, nunca me expus desta maneira. Eu cresci num bairro duro, no Bairro Alto dos Moínhos, no Pendão, um bairro social. Mas a vida foi-me sorrindo, apesar de tudo. E particularmente, a uma dada altura, sempre estive muito rodeado de pessoas atentas e que cuidaram. Isso foi super fixe, todos os amigos e mais alguma coisa. Então, nunca gostei daquela coisa da autocomiseração. Sempre tive receio de, na arte, estar a puxar por aí, porque não queria que as pessoas gostassem de mim pela minha história, nesse sentido. Queria que as pessoas gostassem pelo que estavam a ouvir, a ler, não necessariamente pela coisa do coitadinho que passou por isto. Mas eu já tenho 44 anos, já fiz muita música, já tenho vários discos que não têm nada a ver com isso… Portanto, acho que estava ok, era um momento fixe para me permitir fazer isso sem estar preocupado com mais nada.



Sobre o lado musical: como é que tu organizaste o disco? Tu foste trabalhar com Benke Ferraz, entre Lisboa, Pernambuco e mais não sei onde.

Sim [risos].

Depois de teres aquele material todo escrito, como é que mapeaste o resto do disco? É que também há esta ideia disto ser um disco ultra-pessoal, só que tu rodeaste-te de amigos para o concretizar.

Sim, porque foi isso que a vida me deu, o estar rodeado de pessoas. Até costumo brincar e dizer que deus me salvou a vida mesmo sendo ateu. Eu aprendi a tocar bateria numa igreja, estava longe de imaginar que o tocar bateria numa igreja ia ditar o meu futuro. Eu ainda tirei Engenharia Electrotécnica, mas nunca exerci e acabei por trabalhar sempre na música. Então acho que tem que ver com isso. Quando morei nesse bairro em Queluz eu já tinha uma base de amigos muito sólida e tinha muitos afectos. Eu tinha uma família fora da família de minha casa. Tinha uma data de pessoas que estavam ali para o que fosse preciso. Mas no bairro anterior, em Massamá, também era um bairro pequeno e tudo girava ali à volta de um ringue, que ficava à frente da tal igreja onde acabei por tocar bateria. Toda a gente cuidava uns dos outros, sei lá… Havia uma senhora que sabia que eu morava sozinho com o meu pai e que o meu pai trabalhava por turnos — com 8 anos ficava sozinho em casa à noite e o meu pai não me deixava ir dormir a casa de ninguém. Então essa senhora dizia-me: “Uma hora depois do teu pai sair, vestes uma roupinha por cima do pijama, vens ter a minha casa, dormes cá e, de manhã, eu acordo-te antes do teu pai chegar. Voltas para casa, metes-te na cama e pronto.” Havia este cuidado no bairro. E como esta mãe de um amigo eu haviam outras mães que, noutras circunstâncias, também foram cuidando. E não cuidavam só de mim, era a todas as crianças daquele bairro. Estamos a falar dum bairro em que, nos anos 90, muita gente se perdeu para a heroína e assim. Aquilo foi uma coisa… Então, acho que as pessoas aprenderam a cuidar muito umas das outras. Para o bem e para o mal, eu tive sorte por crescer naquele bairro. Então, também me fez sentido trazer isso para o disco, porque eu nunca teria conseguido fazer nada na vida sozinho. Há alguma força que vem de mim, é da minha personalidade, mas isso por si só, sem o resto à volta… Quantas pessoas eu não conheci por aí com imenso potencial, mas que não tinham ninguém ao lado naquele momento a dizer a coisa certa? Deu merda para muita gente. Também quis trazer isso para o disco, essas pessoas todas, com outros nomes.

E em relação aos convidados, já tinhas uma lista feita com as pessoas com quem querias trabalhar?

Foi tudo mais ou menos por acaso. Eu comecei por fazer as canções, mas ainda antes de as ter todas, peguei em tudo e pedi a casa emprestada a uns amigos, no Alentejo. Peguei no estúdio todo — telclados, viola, bateria, material de gravação… — e fui. Sozinho. Cheguei, montei tudo e fui ao supermercado, fiz um panelão de sopa gigante para que, pelo menos, não tivesse de me preocupar com uma das refeições do dia — assim só cozinhava uma vez por dia, que era o meu escape para libertar a cabeça. Acabei de compor o disco, fiz os arranjos, toquei percussões nas músicas todas, mas só para assinalar ao Benke quem é que poderíamos convidar para as músicas. Eu queria, também… Os meus pais são angolanos e eu queria, de certa forma, resgatar a memória rítmica das canções que ouvia em casa deles. Mas não queria que fosse pastiche. Não queria estar a fazer um disco de semba ou de kizomba, mas ao mesmo tempo eu queria que a assinatura rítmica me lembrasse isso. E como ia produzir o disco com o Benke, que vive em Recife, pensei: Recife, Pernambuco e mesmo a Bahia têm uma matriz rítmica que tem muito que ver, também, com a música que vem de Angola. Por outro lado, podia ser eu a gravar os ritmos, mas aí ia estar a fazer apropriação cultural. Já que eu ia até Recife para gravar com o Benke, então queria mostrar as canções a percussionistas de lá e, se eles se identificassem com o projecto, ver se podiam gravar no disco. A primeira pessoa que entrou no disco foi a LUMANZIN, uma cantora e compositora paulistana, mas que estava a viver em Londres na altura. Antes de ir ter com o Benke, mandei-lhe duas músicas, só assim numa de: “Olha, o que é que achas de pôr aqui umas vozes? Tenho estas referências.” Mandei-lhe Sopa de Pedra e Vozes Búlgaras. E ela: “Pá, fixe!” Na mesma tarde, ela mandou-me duas ideias para as duas músicas. Eu mandei para o Benke e: “Depois diz-me do que é que gostaste para eu gravar isto em bom.” E o Benke: “Gravar em bom? Isto está feito [risos]. Nem sequer vamos mexer nisto.” Quando fui ter com ele, nós já andámos a fazer pesquisa. Primeiro pensámos ir gravar à escola de Maracatu, só que depois veio a dúvida: “E como é que eu remunero estas pessoas? Sendo um grupo, era mais complicado.” E pensei: “Estamos na terra de Nação Zumbi, ‘bora falar com o Toca Ogan, que ainda por cima é um gajo do maracatu, nação Angola…” Fazia todo o sentido. Então o Patrick Tor4, um radialista e DJ amigo meu, fez a ponte com o Toca Ogan. O Toca Ogan diz-me: “Só tenho duas horas neste dia. ‘Bora lá.” Chegou lá, gravou as músicas em duas horas e ficou feito. Foi bué fixe. Depois gravei com o Benke o resto das coisas. Entretanto ia para São Paulo e pensei: “Vou estar em São Paulo e não vou convidar o Kastrup para este disco? Não faz muito sentido…” Ele já tinha produzido um disco de PAUS, então ficámos muito amigos. Pronto, fui ter com ele, gravou duas músicas no estúdio dele. No meio do processo, lembrei-me: “Porque é que não convidas a ÀIYÉ para o ‘Olhos salgados’?” Ela não só é percussionista como canta bem. Ela gravou as percussões do “Olhos salgados” e os coros. De repente, foi-se construindo tudo. O “Voltas e voltas e voltas” foi o que entrou mais tarde no disco. O Kastrup estava em Lisboa e gravou também nessa. Foi tudo meio por acaso. A Cláudia e o Rui não, eu queria mesmo tê-los no disco.

Não é por acaso. Tu tens noção de que o universo sabe o que faz, não é?

Sim. Começo a acreditar nisso [risos].

Estivemos a falar nas pisaduras do teu passado, mas nós todos fomos muito calcados nestes últimos tempos com as notícias do resultado das eleições. Já escreveste alguma canção depois de constatares que haverá 50 deputados a representar o Chega nesta legislatura que agora se inicia?

Eu ainda não escrevi nada sobre isso. Nas últimas semanas temos estado focados no disco de Linda Martini. E mesmo não tendo nenhuma canção escrita depois das eleições, posso dizer-te que esse assunto está muito presente neste disco, de uma forma ou de outra, porque já prevíamos este crescimento grande.

A ideia do combate está presente, é isso que queres dizer?

Está, está. E acho que cada vez mais. Se bem que eu continuo a achar uma coisa: o combate maior a ser feito é no dia-a-dia, porta-a-porta, pessoa-a-pessoa. Pode parecer um grande cliché, e se calhar é, mas eu sei que o amor e o carinho me salvaram. Portanto eu sei que é possível. E se conseguirmos todos dar um bocadinho, se calhar torna-se mais fácil, não sei.

Depois do concerto no CCB, tens mais alguma coisa planeada para este disco?

Sim. Queria fazer… O disco acaba por sair num timing tramado, porque eu já ia para a Catalunha logo a seguir gravar com Linda Martini. Também não podia fazer mais concertos a seguir. Mas estamos a marcar mais algumas coisas. Há aí um festival que ainda não posso revelar, uma cena super-importante para mim. Estou muito feliz e era o festival que eu mais queria fazer, sinceramente.

E quem é que te acompanha em palco neste projecto?

Tenho o Miguel Ferrador, que já me acompanhava em Murais. Ele está nas teclas. O João Vairinhos tocava bateria, mas agora toca uma SPD e algumas percussões. Tenho a Emile e a Méli, do Coletivo Gira, precisamente porque são pessoas com propriedade para tocar maracatu e ritmos mais próximos dos que têm os bateristas que gravaram o disco. E tenho LARIE, que anteriormente era conhecido como Labaq, a tocar violão e a cantar. Em palco somos 6.

Uau. Quase uma mini big band, para os dias que correm.

É verdade [risos]. E estou mesmo feliz. Eu sei que estou a dificultar muito a minha vida com isso, mas é que soube-me tão bem fazer o concerto assim, com estas pessoas. Pontualmente talvez tenha de fazer uma coisa ou outra sem ser com a banda toda, mas vou puxar sempre para conseguir fazer com toda a gente.


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