Hatis Noit, cujo nome se traduz no caule da flor de lótus do folclore japonês, é uma artista vocal cuja música transcende o tempo e a cultura. Originária da remota cidade de Shiretoko, na ilha de Hokkaido, o seu extraordinário alcance vocal é fruto de uma rica tapeçaria de influências, incluindo os estilos Gagaku e operático, cantos búlgaros e gregorianos, e elementos tanto da música avant-garde como da música pop. Numa ligação Zoom sem a câmara activada, Noit deixa que a voz faça todo o trabalho de comunicação e preserva a aura de mistério que a envolve.
Hatis Noit, pode dizer-se, desenvolveu uma profunda compreensão do alcance da voz humana. Para ela, a voz é um instrumento primordial e instintivo, que nos liga profundamente à humanidade, à natureza e ao universo, facto que se torna ainda mais claro no seu discurso. O seu primeiro EP, Illogical Dance, lançado pela Erased Tapes, revelou ao mundo a sua capacidade única de criar paisagens musicais imersivas. Nas suas interpretações adivinham-se ecos de tradições clássicas ocidentais, do folclore japonês e de sons da própria natureza.
Em 2022, Hatis Noit lançou seu álbum de estreia Aura, trabalho que lhe valeu justos elogios por parte da crítica especializada. Com essa obra, Hatis Noit solidificou o seu estatuto na cena musical de vanguarda, e inspirou algumas reinterpretações por parte de artistas como William Basinski. De acordo com o que nos revela em conversa, há outros nomes de peso na calha envolvidos em remisturas que deverão ser reveladas nos próximos meses.
A música de Hatis Noit é uma ponte entre tradições antigas e sons contemporâneos, sendo a sua voz um poderoso canal de ligação e transformação. Em apresentação no CCC das Caldas da Rainha, no âmbito da Season Impulso, será possível escutar material de Aura e algumas peças novas.
Gostava de começar por lhe perguntar qual o repertório que trará para o seu próximo espectáculo em Portugal.
Interpretarei maioritariamente canções do meu álbum Aura, que já foi lançado há dois anos. Durante esse período eu já compus novas canções e provavelmente tocarei algumas delas também.
Já referiu que o período da pandemia foi muito complicado para si, pois sente-se inspirada pelas pessoas, por ocupar os mesmos espaços que elas. Como é que lidou com o isolamento nessa altura?
Tocar ao vivo é a minha parte favorita enquanto autora de canções. Eu não sou muito boa a trabalhar dentro de portas, numa sala ou assim. Eu não me sinto verdadeiramente inspirada quando estou em frente ao computador. Prefiro muito mais o estar com as pessoas num local onde possa ver e escutar o que é natural desse espaço. Gosto muito de sentir a vibração das pessoas. Essas coisas são muito importantes para mim, tanto para compor como até para cantar. Eu preciso disso. Durante o confinamento, foi-me proposto tocar num festival de música online. Eu actuei em frente a pessoas, mas, basicamente, através da câmera do meu telemóvel. Era a primeira vez que ia actuar online e pensei: “Porque não experimentar?” Mas fiquei muito triste ao fazê-lo. Pareceu-me tudo muito frio. Eu sei que estão pessoas a ver-me, mas dei por mim a pensar: “Para quem é que eu estou a cantar?” Senti-me triste, sozinha e um bocado deprimida. Essa experiência fez-me mesmo perceber o quanto as pessoas são importantes para eu cantar. Tenho tido a felicidade de actuar várias vezes em Portugal, e em todas elas sou recebida em salas portuguesas muito boas. Uma dessas vezes foi em Viseu, numa catedral construída no século XII, se não estou em erro. Foi tão, tão bonito. Até mesmo o backstage, onde eu me preparava antes do espectáculo, era lindíssimo. São espaços assim que realmente me inspiram a actuar.
A catedral é lindíssima. Estou plenamente de acordo consigo. Ainda nessa altura da pandemia, a voz também se tornou numa espécie de bem raro. Era quase uma forma de expressão radical, pois estávamos todos obrigados a usar máscaras e a estar afastados uns dos outros. É engraçado pensarmos em como algo tão necessário para a partilha entre comunidades se tornou quase num acto de agressividade.
Isso é uma grande verdade. E eu creio que não tem só a ver com o usar a voz. Para mim, a coisa mais crucial era o partilhar o mesmo espaço físico com outras pessoas, e só nos era permitido utilizar o espaço digital para comunicar. Mas a comunicação não tem só a ver com a língua ou com o que dizemos. Ela também se baseia em linguagem não verbal, como o movimento do corpo. Não apenas enquanto fonte visual, mas também pela sua temperatura ou qualquer outro tipo de informação subtil que conseguimos sentir quando estamos uns com os outros. Nessa altura a comunicação com os outros ficou muito limitada ao som e imagem no digital. Essas coisas que sentimos fisicamente são cruciais. Portanto, nessa altura, sem dúvida que existiu uma lacuna na interação e troca através dessas informações super-orgânicas. Nós andámos a desesperar com isso.
Depois de o escutar em 2022, andei recentemente a redescobrir o seu álbum Aura. Eu consigo escutar muita coisa na forma como canta e estrutura a sua voz — dos cantos gregorianos a vários tipos de folk. Do ponto-de-vista estético, de onde acha que a sua música vem?
Se eu tivesse de usar apenas uma palavra, eu diria que ela vem da humanidade. “O que é ser humano? O que é ser-se humano neste belo mundo natural?” É isso que eu tento descrever através da voz. A voz é um instrumento muito especial para o ser humano. Eu uso o instrumento mais antigo e também o mais íntimo da humanidade, porque ele está dentro do nosso corpo. É através desses instrumento especial que eu, com a minha música, tento descrever a humanidade. É uma coisa que, por vezes, pode ser muito vulnerável, mas rica. E adoro a voz.
Isso é bem verdade. A sua música tem inspirado muitos produtores da esfera electrónica como o Kevin Richard Martin, William Basinski ou Matthew Herbert — todos eles assinaram remisturas para peças originais da sua autoria. Como é que se deram essas remisturas?
Eu sempre senti muita curiosidade em saber como é que a minha voz soaria com outros instrumentos. Porque eu só uso voz no meu projecto — eu gosto desse conceito na música. Mas, ao mesmo tempo, tenho muita curiosidade em saber como a minha voz soa a outros artistas e músicos, e em como é que eles vão reagir ao brincar com ela. Isso conduziu-me naturalmente até às remisturas. E é algo que tem vindo a ter continuidade. Quando eu ouço esses trabalhos… É como que uma reacção química. É diferente e é bom.
Gosto especialmente do “Jomon”, com o Preservation e os Armand Hammer. Definitivamente não estava à espera dessa.
Nem eu [risos]. É incrível, não é?
É sim. E tem mais lançamentos planeados para o que resta do ano?
Tenho sim. Não posso ainda entrar em muitos detalhes, mas estamos a planear alguns lançamentos bem entusiasmantes.