Na serena aldeia do Pesinho, um pequeno enclave de telhados de ardósia e campos ondulantes, onde o tempo parece esculpido no silêncio e no som das árvores sussurrantes, nasceu João Clemente. Ali, onde a melodia da vida se inscreve nos ritmos da terra, a música não era apenas um ofício, mas um eco natural da existência. O crepitar da lenha nas noites frias, o tilintar metálico dos utensílios no quotidiano agrícola e o sopro do vento que serpenteava entre as serranias compunham a sinfonia inicial que haveria de moldar a sua escuta e sensibilidade.
Desde os primeiros anos, João manifestava uma relação instintiva com os sons que o rodeavam. A curiosidade pelo ritmo começou na infância, batendo padrões improvisados nas mesas da cozinha, experimentando ressonâncias em superfícies distintas, escutando o eco dos passos sobre a calçada irregular da aldeia. Mas foi na adolescência, em plena explosão sensorial e rebeldia criativa, que o impulso musical se tornou visceral. A guitarra, primeiro rudimentar, depois com cordas que se quebravam e renasciam sob os seus dedos inquietos, tornou-se o seu veículo de expressão.
O rock e o punk foram os primeiros territórios sonoros que explorou, talvez pela sua urgência crua e visceral, pela energia descomprometida e pela necessidade de rasgar os silêncios rurais. Entre amigos, entre amplificadores improvisados e salas de ensaio efémeras, João absorvia as texturas eléctricas e as dissonâncias urbanas. Mas, cedo, o desejo de expansão levou-o para além do pulsar imediato dos power chords e dos refrões explosivos.
Aos 15 anos, este instinto foi canalizado para um estudo mais estruturado. Ingressou na Escola Profissional de Artes da Beira Interior, onde o mundo musical se revelou num horizonte mais amplo e complexo. Foi aqui que descobriu a percussão e a sua relação primordial com o tempo e a ressonância dos corpos. O piano surgiu como um território novo, uma paisagem de possibilidades harmónicas que expandiam o seu entendimento do som e da composição. Mas foi na guitarra clássica que encontrou uma espécie de síntese, um equilíbrio entre a precisão e a emotividade, entre a disciplina e a liberdade.
Mais tarde, com a necessidade de compreender a música para além do instrumento, aprofundou os seus estudos na Escola Superior de Artes Aplicadas, onde mergulhou na Produção Musical e na Música Electrónica. Este percurso permitiu-lhe desmontar e reconstruir os sons, compreender a sua engenharia interna, explorar o cruzamento entre a matéria orgânica dos instrumentos e as possibilidades infinitas da manipulação digital. Foi aqui que a sua visão sonora se consolidou, não apenas como intérprete ou compositor, mas como um escultor do som, alguém capaz de transfigurar frequências e dar corpo ao inaudito.
Se o Pesinho lhe deu as raízes e a escuta primordial, foi neste percurso de aprendizagem que João Clemente encontrou as asas para voar e redesenhar o seu universo sonoro.
[A Improvisação como Essência]
A improvisação nunca foi, para João Clemente, um mero exercício técnico ou um desvio lúdico dentro da rigidez da composição tradicional. Pelo contrário, tornou-se o seu método, a sua filosofia, o alicerce de um pensamento musical que se constrói e desconstrói em tempo real. Desde cedo, percebeu que a música não era um objecto fixo, mas um organismo vivo, pulsante, em constante mutação. E foi nesse território de imprevisibilidade e risco que encontrou a liberdade que nenhuma partitura poderia oferecer.
Ainda na juventude, entre os primeiros amplificadores ruidosos e salas de ensaio improvisadas, João começou a compreender a improvisação não apenas como um acto espontâneo, mas como um espaço de escuta profunda, onde o som não é apenas produzido, mas descoberto. Mais do que tocar, tratava-se de aprender a reagir, a habitar o silêncio entre as notas, a compreender o instante como matéria-prima de criação. Este entendimento levou-o rapidamente para os domínios da música experimental, onde a intuição e o acaso dialogam com a intenção e a estrutura.
As primeiras sessões de gravação foram marcadas por essa busca incessante por novas texturas sonoras. Armado com uma guitarra e um espírito de explorador, João começou a gravar os seus próprios diálogos musicais, sobrepondo camadas de som, distorcendo limites, criando atmosferas que pareciam nascer entre o caos e a geometria oculta do ruído. As apresentações ao vivo tornaram-se autênticas viagens sonoras, onde cada performance era única e irrepetível, onde cada nota surgia como um lampejo efémero e cada erro potencializava novas direções.
Foi este espírito inovador que o levou a fundar o Salad Ensemble, um colectivo que não é apenas uma banda, mas um laboratório sonoro onde músicos se encontram para criar sem amarras. Neste espaço de experimentação, a composição dissolve-se na improvisação, e a música assume a forma líquida de um organismo em metamorfose.
Além do Salad Ensemble, João integrou múltiplos projectos que reforçam a sua identidade artística fragmentária e expansiva. Made of Bones, com as suas sonoridades densas e percursivas, explora a relação entre estrutura rítmica e caos melódico. Slow is Possible, num registo mais contemplativo, joga com a lentidão como estratégia de resistência contra a aceleração do tempo contemporâneo. Golden Dark, por sua vez, inscreve-se numa linhagem de música híbrida, onde texturas acústicas e electrónicas se entrelaçam numa espécie de neblina sonora.
Mas não se trata apenas de multiplicidade de projectos — trata-se de uma tapeçaria musical onde cada fio sonoro se interliga com os outros. João Clemente construiu uma rede de colaborações que funciona como um ecossistema criativo, onde cada músico contribui para a expansão de um universo sonoro que não se fixa em géneros, mas se alimenta da fricção entre tradição e vanguarda, entre o estrutural e o imprevisível.
Improvisar, para João, não é apenas um acto musical — é um modo de vida, uma forma de estar no mundo. A sua música não procura apenas preencher o espaço, mas escutá-lo, amplificá-lo, torná-lo visível através do som. E, nesse processo, continua a desafiar convenções, a explorar novas fronteiras e a transformar cada performance numa experiência singular e irrepetível.
[Comunidade e Colaboração]
Para João Clemente, a música nunca foi um acto solitário. Desde os primeiros acordes dedilhados na adolescência até às suas mais recentes incursões sonoras, a partilha e a colaboração foram sempre os pilares da sua criação. A sua música nasce do encontro, do diálogo entre sensibilidades distintas, da fusão de linguagens que se contaminam e se transformam mutuamente. Se a improvisação lhe deu liberdade, foi a comunidade que lhe deu raízes.
As parcerias que forjou durante a sua formação não se perderam no tempo; pelo contrário, expandiram-se como um rizoma, interligando músicos, compositores e ouvintes numa rede invisível, mas essencial. Muitos dos amigos e cúmplices musicais que encontrou nos primeiros anos continuam a ser companheiros de viagem, colaboradores recorrentes nos seus projectos. Esta continuidade não é casual, mas um reflexo da forma como João encara a música: não como um produto individual, mas como um organismo colectivo, onde cada contribuição molda a identidade do todo.
O seu trabalho ultrapassa o simples acto de tocar ou gravar juntos; é um processo de construção conjunta, um espaço de experimentação onde a escuta se torna tão importante quanto a execução. João não procura apenas músicos para os seus projectos — procura vozes singulares que possam expandir a sua visão, que tragam algo inesperado e imprevisível para a equação.
A sua estadia em Berlim, entre 2017 e 2022, foi um ponto de viragem nesse processo. A cidade, com a sua tradição de música experimental, improvisação livre e cruzamento de géneros, abriu-lhe novos horizontes e novas possibilidades criativas. Em Berlim, encontrou um território fértil onde a tradição europeia da música electroacústica e do free jazz se cruzava com as influências globais trazidas por músicos de todo o mundo.
Foi nesse contexto que aprofundou o seu trabalho com artistas internacionais, expandindo o seu repertório e explorando novas formas de interacção sonora. Os diálogos musicais que estabeleceu na capital alemã não ficaram confinados àqueles anos: continuam a ressoar nas suas colaborações actuais, nas redes que construiu entre Portugal e a Alemanha, nas ligações que manteve vivas mesmo após o seu regresso.
Seja nos palcos, nos estúdios ou nas ruas onde a música acontece de forma espontânea, João Clemente continua a ser um artista profundamente ligado ao colectivo. A sua obra não se fecha em fronteiras geográficas ou estilísticas — é uma cartografia em constante expansão, desenhada pelas colaborações que cultivou ao longo dos anos. E é nessa intersecção entre o pessoal e o partilhado, entre o individual e o colectivo, que a sua música encontra a sua verdadeira força.
[Majestade Interior: Uma Odisseia Sonora]
Entre Maio de 2022 e Maio de 2023, João Clemente concebeu uma obra monumental: “Majestade Interior”, um projecto que se inscreve na linhagem das grandes peças de música exploratória, onde o tempo se dilata e a escuta se torna uma experiência imersiva. Com uma duração total de seis horas, apresentada em seis partes ao longo de um ano, esta criação não é apenas um exercício de resistência musical, mas um manifesto sonoro que desafia convenções e expande as fronteiras da percepção auditiva.
A génese de “Majestade Interior” reside na busca de João por uma música que não seja apenas ouvida, mas habitada. A obra não se impõe como um objecto fechado, mas como um território vasto onde cada performance se desdobra em novas possibilidades, fruto da interacção entre os músicos e o espaço acústico em que se encontram. Cada parte, embora autónoma, dialoga com as restantes, formando um ciclo que se completa apenas na escuta integral da peça.
Este projeto nasceu com o apoio da bolsa [Re]cri’Arte, permitindo a João reunir um ensemble de 14 músicos, escolhidos não apenas pela sua técnica, mas pela sua sensibilidade e afinidade com a linguagem da improvisação e da música experimental. Cada intérprete trouxe consigo um universo sonoro próprio, que se fundiu num fluxo contínuo de texturas, harmonias e dissonâncias, numa espécie de topografia musical onde o previsível se dissolve no inesperado.
“Majestade Interior” é, antes de mais, um estudo sobre a temporalidade na música. A duração prolongada da peça não é um capricho, mas uma estratégia deliberada para desafiar a percepção tradicional do tempo musical. Ao longo das seis horas, a repetição e a variação coexistem num jogo subtil, onde pequenos detalhes se tornam revelações e onde a escuta activa se transforma numa experiência quase meditativa.
A estrutura da obra não segue uma narrativa linear, mas desenha um percurso sonoro que remete para estados de suspensão e de fluxo, alternando momentos de densidade textural com passagens de silêncio e rarefação. Há trechos em que os sons se acumulam como camadas geológicas, construindo paisagens de ressonância, e outros onde a música se reduz a um fio ténue, desafiando o ouvinte a escutar o que está para além do audível.
Ao longo das apresentações, “Majestade Interior” tornou-se mais do que uma peça musical: transformou-se num ritual de escuta, um espaço onde público e músicos partilham uma experiência sensorial e imersiva. A obra não se impõe com a força do volume ou da intensidade, mas pela sua capacidade de envolver, de absorver quem a ouve num processo de transformação interior.
O título não é acidental: “Majestade Interior” sugere um movimento para dentro, um convite à introspecção e à descoberta de camadas sonoras que existem para além da superfície imediata da audição. Mais do que um concerto, esta odisseia sonora propõe uma imersão profunda, um percurso por territórios onde a música se torna paisagem, atmosfera e experiência sensorial.
Com esta peça, João Clemente reafirma a sua dedicação à música como um espaço de exploração e reinvenção. “Majestade Interior” não é apenas um momento singular na sua carreira, mas a continuação de um percurso onde a improvisação, a colaboração e a escuta atenta se tornam ferramentas essenciais para mapear novos horizontes sonoros.
[Profound Whatever: Um Legado Criativo]
Em 2005, João Clemente lançou as bases para aquilo que viria a tornar-se um dos projectos mais singulares e prolíficos da música exploratória em Portugal: o colectivo Profound Whatever. Mais do que uma editora, uma banda ou um simples grupo de músicos, o Profound Whatever é um ecossistema criativo em permanente ebulição, um espaço onde a experimentação sonora se encontra com a liberdade absoluta da improvisação.
A filosofia do colectivo assenta na ideia de que a música não deve ser restringida por géneros, formatos ou estruturas convencionais. Desde a sua fundação, o Profound Whatever tem servido como um ponto de encontro para músicos, compositores e artistas sonoros que partilham uma visão comum: a busca por uma linguagem musical que seja radicalmente livre, aberta e sem concessões ao que é previsível.
O catálogo impressionante de 98 discos editados não é apenas um número — é a prova de uma actividade incessante, de uma necessidade quase vital de documentar o efémero, de captar momentos de criação espontânea e transformá-los em objectos sonoros. Cada disco lançado pelo colectivo é um fragmento de uma cartografia em expansão, onde o som se apresenta nas suas formas mais diversas: gravações ao vivo, peças de estúdio, improvisações desconstruídas, colagens electroacústicas, drones hipnóticos e texturas granulares. A discografia do Profound Whatever não obedece a um plano ou a uma lógica sequencial, mas sim a um impulso contínuo de exploração, onde cada lançamento é uma peça autónoma num puzzle sonoro em perpétua mutação.
Mas o impacto do colectivo não se limita ao registo fonográfico. Todos os anos, a cidade do Fundão torna-se o epicentro deste universo musical através do Festival Profound Whatever, um evento que transforma a Moagem num verdadeiro santuário da música criativa. Durante três dias, o festival reúne músicos, ouvintes e improvisadores num espaço de experimentação pura, onde o palco se torna um laboratório vivo e onde a música se constrói e se dissolve em tempo real.
O festival não segue uma programação tradicional—não há cartazes fechados, não há hierarquias rígidas entre artistas principais e secundários. Pelo contrário, o evento funciona como uma grande sessão de improvisação alargada, onde as colaborações inesperadas e os encontros fortuitos são o verdadeiro motor da experiência. Aqui, os músicos não se limitam a apresentar obras concluídas, mas embarcam em processos criativos ao vivo, deixando-se conduzir pelo fluxo sonoro do momento.
Para João Clemente, o Profound Whatever é mais do que um projecto pessoal — é um organismo vivo, uma comunidade de artistas unidos pela vontade de expandir as possibilidades da música. O colectivo não impõe estilos nem formatos, mas oferece um território onde a criação pode acontecer sem amarras, onde o som pode existir na sua forma mais crua e autêntica.
Ao longo dos anos, esta abordagem fez do Profound Whatever uma referência na cena musical exploratória, tanto em Portugal como no estrangeiro. Músicos de diferentes origens, estéticas e linguagens passaram pelo colectivo, deixando a sua marca e, ao mesmo tempo, absorvendo a energia criativa que dele emana. A influência do projecto estende-se para além dos discos e dos concertos — está presente na forma como os seus participantes encaram a música, na maneira como se relacionam com a improvisação e na consciência de que a verdadeira criação acontece nos interstícios, nos momentos de risco e de descoberta.
Com quase duas décadas de actividade, o Profound Whatever continua a ser um farol para aqueles que acreditam que a música não deve ter fronteiras. E enquanto houver sons por explorar e encontros por acontecer, João Clemente e o seu colectivo continuarão a traçar novos caminhos, redefinindo o que significa criar, ouvir e viver a música.
[A Música como Narrativa Visual e Teatral]
A música de João Clemente não se limita ao domínio do som puro; pelo contrário, expande-se para outras linguagens artísticas, assumindo-se como um elemento narrativo que transcende a escuta e se torna experiência visual, emocional e cénica. Se a improvisação e a experimentação lhe deram um espaço ilimitado para explorar o som enquanto matéria viva, foi no cinema e no teatro que encontrou novas formas de expressão, onde a música se torna veículo de narrativa, de atmosfera e de profundidade emocional.
Ao longo da sua carreira, João tem contribuído significativamente para o cinema e o teatro, colaborando com realizadores como José Oliveira e Marta Ramos e encenadores como José Garcia. Estas incursões artísticas demonstram a sua capacidade de traduzir sentimentos, espaços e silêncios em composições que não apenas acompanham a imagem e a acção, mas acrescentam camadas de significado à obra final. A sua música, nestes contextos, não funciona apenas como banda sonora, mas como um elemento que respira e interage com a dramaturgia, tornando-se parte orgânica da narrativa.
No cinema, a sua abordagem musical não se prende à tradicional composição de bandas sonoras. João não escreve temas ilustrativos, nem segue as convenções clássicas da música incidental. Em vez disso, trabalha o som como um elemento atmosférico, criando paisagens sonoras que se infiltram subtilmente nas cenas, ampliando a intensidade emocional e conduzindo o espectador para uma escuta mais profunda da imagem. Muitas das suas colaborações cinematográficas exploram o som como textura, recorrendo a drones etéreos, ruídos orgânicos manipulados e camadas de harmonia fragmentada que sugerem mais do que descrevem.
No teatro, a sua música ganha outra dimensão: não apenas acompanha, mas molda a cena, intervindo diretamente na forma como os atores se movimentam e interagem. O som torna-se um elemento cénico, um corpo invisível que dita o ritmo da acção e estabelece o tom emocional da peça. Muitas das suas composições teatrais nascem de improvisações em ensaios, onde João escuta os diálogos, os gestos, os silêncios, e constrói uma teia sonora que envolve os intérpretes, reforçando ou desafiando as suas intenções dramáticas.
A sua abordagem não convencional faz com que cada colaboração seja única, adaptando-se à linguagem específica de cada realizador ou encenador. Num filme contemplativo, a sua música pode tornar-se uma espécie de pulsação lenta, um subtexto sonoro que ecoa as imagens; numa peça experimental, pode assumir um papel central, interagindo diretamente com os atores e até com o próprio público.
Mais do que um compositor para imagem, João Clemente é um criador de experiências sonoras cinematográficas e teatrais, onde o som deixa de ser um mero complemento e passa a ser um protagonista invisível. As suas colaborações no cinema e no teatro não são desvios na sua carreira musical, mas extensões naturais do seu universo criativo, onde a música não se limita a ser ouvida — ela é sentida, vista e vivida.
[Um Legado em Construção]
Com mais de 300 álbuns no seu currículo, seja como compositor, músico, produtor ou engenheiro de som, João Clemente não é apenas um nome na música contemporânea portuguesa — é uma força criativa que desafia as noções convencionais de produção musical e expressão artística. A sua obra não se confina a um estilo ou a uma era; pelo contrário, é um organismo vivo, em permanente mutação, reflectindo a inquietação de um artista que nunca se acomoda.
Desde os primeiros acordes experimentados na sua aldeia natal do Pesinho, até às colaborações com músicos espalhados pelo mundo, a sua trajectória é marcada por um impulso incessante de descoberta e reinvenção. Se o seu trabalho pode ser descrito como um laboratório sonoro, é porque a sua abordagem nunca se cristalizou em fórmulas pré-definidas. A cada álbum, a cada concerto, João reconfigura as regras do jogo, explorando novos territórios sonoros, desafiando a escuta e expandindo os limites do que a música pode ser.
A sua produção prolífica não é mero reflexo de uma obsessão quantitativa, mas sim de uma necessidade vital de criar. Para João, cada projecto é uma nova peça num puzzle maior, uma peça de um mapa sonoro que nunca se completa porque a sua natureza é precisamente a de estar sempre em construção. Os seus discos — sejam gravações de improvisação livre, composições electroacústicas, incursões no rock experimental ou colaborações com outros artistas — constituem um arquivo de experiências que não apenas documenta a sua evolução, mas também traça uma narrativa da música exploratória contemporânea.
A sua influência estende-se muito para além dos seus próprios álbuns. Como produtor e engenheiro de som, João tem sido responsável por dar vida ao som de inúmeros artistas, guiando e moldando projectos com a sua sensibilidade única. O seu trabalho de curadoria no Profound Whatever e no Festival Profound Whatever consolidou a sua posição como um dos principais dinamizadores da música criativa em Portugal, proporcionando um espaço onde músicos podem arriscar, experimentar e desafiar-se mutuamente.
Mas o que define verdadeiramente João Clemente não é apenas o volume da sua obra, mas a forma como a sua música ressoa nos outros. Há algo de profundamente humano no seu percurso: uma busca constante pela expressão autêntica, pela comunhão através do som, pelo poder da improvisação como forma de diálogo. A sua música não é um monólogo, mas uma conversa aberta com o mundo, uma interrogação perpétua que se reinventa a cada nota.
O seu legado está longe de estar fechado. Se há algo que a sua carreira demonstra, é que João Clemente não é um artista de retrospecções, mas sim de avanços, de novas possibilidades e horizontes desconhecidos. A sua obra não é um monumento estático, mas uma corrente em movimento, uma sinfonia que continua a ser escrita em tempo real.
E enquanto houver espaço para a criação, para a experimentação e para o risco, João continuará a moldar o panorama musical contemporâneo, não apenas em Portugal, mas onde quer que a música o leve. A sua jornada, enraizada no Pesinho e expandida pelo mundo, é uma ponte entre tradição e vanguarda, entre o concreto e o efémero, entre o passado e um futuro que se escreve a cada instante.
Aqueles que têm o privilégio de experienciar a sua música não encontram apenas sons, mas uma visão, uma maneira única de ver (e ouvir) o mundo. E esse é, talvez, o maior legado que um artista pode deixar.
[Sang Par Terre: Fragmentos de Um Sonho Estilhaçado]
Há discos que se revelam como paisagens e há discos que se impõem como ruínas. Sang Par Terre não é um nem outro — é o eco fantasmagórico do instante antes do colapso, o som de um espelho estilhaçado em câmara lenta, onde cada fragmento reflecte um mundo possível. Gravado entre Junho e Setembro de 2008, este trabalho de João Clemente não se submete a um tempo linear. Aqui, o passado não é nostalgia, o presente não é estático e o futuro dissolve-se em pulsos e silêncios.
Desde os primeiros acordes de Cour Révée em “Trois Cents Seize Segondes”, percebe-se que esta não é uma experiência comum. O título, uma promessa de um sonho cortado ao fim de 316 segundos, entrega-nos a um espaço onírico, onde a realidade se dobra sobre si mesma. Os sons parecem vir de um lugar intermédio — entre o analógico e o digital, entre o improviso e o cálculo, entre o espectral e o táctil.
“Porquoi Marquis” ecoa como um murmúrio arrancado a um teatro abandonado. O piano tropeça sobre si mesmo, como se procurasse um caminho dentro de um labirinto de fitas magnéticas. É um jazz destituído de urgência, um suspiro melódico entrecortado por sombras rítmicas.
Em “Déserts en Expansion Commun”, João Clemente não compõe paisagens, mas vestígios delas. Os desertos aqui não são de areia, mas de memória: espaços vazios deixados pelo que já foi dito, pelo que já foi tocado. Cada nota parece emergir de uma gravação reencontrada num sótão, um som gasto pelo tempo, transformado pela erosão do esquecimento.
A influência de Morton Feldman é evidente na peça “Visions sur Morton Feldman em Papier Végétal”. Mas Clemente não o cita directamente — em vez disso, reescreve-o com papel reciclado, com notas que se desdobram como folhas frágeis, prontas a serem sopradas para fora do pentagrama. Há um silêncio que ressoa mais alto do que os próprios acordes, uma quietude que ocupa os espaços entre as notas como um nevoeiro denso.
“Des Langues Différentes” é um jogo de desconstrução. Ouvimos fragmentos de algo familiar, mas as palavras dissolvem-se antes de ganharem sentido. Aqui, Clemente trabalha a linguagem não como veículo de comunicação, mas como matéria-prima sonora. O que importa não é o que se diz, mas como o som das palavras se transforma em música, em ruído, em textura.
“Mompou em Piano Racomodé” é talvez o momento mais delicado do disco. Um tributo de gestos mínimos, onde os silêncios pesam tanto quanto as notas. A música não avança, mas paira, sustentada por um equilíbrio precário, como uma ponte que se desfaz ao ser atravessada. A figura de Mompou, mestre da simplicidade e da sugestão, reaparece aqui num estado fragmentado, como se as suas melodias fossem reconstruídas a partir de memórias incompletas.
“Un Léger Vol em Amical Direction sur Respirations de Alex Grey” é a peça mais extensa e, talvez, a mais cinematográfica. Há algo de translúcido na sua construção — como se os sons fossem sombras projectadas numa tela branca. Ouvimos respirações, ecos distantes, drones suspensos no vazio. É uma peça de levitação sonora, onde os instrumentos parecem libertar-se da sua fisicalidade, tornando-se meras vibrações no ar.
“Objet qu’ill Est du Dernier” é um esboço, um fragmento, um interlúdio de 49 segundos que parece evaporar-se antes mesmo de ser completamente apreendido.
“Sans Composition” e “À L’Article de la Mort” encerram o disco com um sentido de fim que não é resolução, mas abandono. O primeiro, um estudo de ausência, um vazio preenchido por vestígios sonoros. O segundo, uma despedida que nunca se completa—porque a morte, aqui, não é um ponto final, mas uma hesitação no limiar da última nota.
A capa do disco, baseada no quadro Blood on the Floor de Francis Bacon, é o seu reflexo visual perfeito. Como a pintura, a música de Sang Par Terre é feita de rasgos, de camadas sobrepostas, de espaços que sugerem violência, mas também contemplação. A montagem, as colagens sonoras, os pianos destemperados, os sintetizadores empoeirados e as guitarras que ressoam como fantasmas—tudo se funde num disco que não se escuta de forma linear, mas como um palimpsesto sonoro.
O que João Clemente nos oferece aqui não é apenas um álbum, mas um corpo sonoro em estado de mutação, um retracto de algo que não pode ser fixado. Em Sang Par Terre, a música é sempre um passo à frente da sua própria compreensão. E talvez seja esse o seu maior fascínio: um disco que se ouve como quem persegue um reflexo num espelho partido.