Entende-se que Sun Ra acreditasse que o espaço era o lugar. Nessa projecção pioneira de um libertário afro-futurismo, o espaço era onde seria possível uma reinvenção para lá do peso de um violento passado. Lá para os lados de Saturno não havia repressão policial, segregação, racismo estrutural, acreditava o notório compositor e cosmonauta.
De igual modo, a selva pode agora servir como esse utópico lugar, mais longínquo ainda do capitalismo opressor do que o espaço, porque já não deve faltar muito para que Elon Musk instale um gigantesco sinal luminoso da Tesla em Marte (já disse que gostaria de morrer lá…) ou para que Donald Trump abra um “Mar da Tranquilidade-a-Lago” na Lua. Já dá para acreditar em tudo…
Mas falávamos da selva, esse lugar para onde tanta música tem recentemente remetido: escutámos os seus densos ruídos (e, em boa verdade, até a chegamos a vislumbrar, a sentir e respirar) em concertos de Amaro Freitas ou Iúri Oliveira. Voltamos a ouvi-la no passado sábado, 15 de Fevereiro, novamente no Centro Cultural de Belém, com a estreia em palco de GRIOT 3000.
Rodrigo Brandão auscultou os orixás e trouxe os seus encantamentos através da palavra para o palco onde se fez ladear pelo guitarrista brasileiro (baseado agora em Itália) Thiago Leiros Costa, pelo percussionista senegalês Dudu Kouatê, pelo korista guineense Braima Galissa e ainda pelos portugueses Luís Vicente, trompetista, e Carla Santana, electrónicas.
Ficou muito claro que este foi um concerto exploratório: os seis músicos encontraram-se pela primeira vez apenas no dia anterior e pouco mais tempo tiveram para gizar a sua “estratégia” de mergulho na floresta densa do que o que lhes foi disponibilizado durante o ensaio de som, na tarde que antecedeu a apresentação que teve lugar às 19 horas num Auditório 2 do CCB praticamente esgotado. Essa circunstância poderá ter tido reflexos na cautela com que o colectivo se entregou à música e será curioso perceber como poderá o espectáculo evoluir agora (há uma residência de criação a correr em Coimbra neste momento e apresentações programadas para 21 de Fevereiro no Salão Brazil e, no dia seguinte, 22 de Fevereiro, no gnration, em Braga). Mas é inegável que deste encontro luso-afro-brasileiro poderão surgir coisas incríveis, a julgar pelas qualidades individuais de todos aqueles músicos.
O concerto começou no silêncio, com Rodrigo Brandão a gesticular, como quem convoca espíritos ou afasta rama densa para poder avançar. Luís Vicente aplicou diferentes surdinas ao trompete que soou “hasselliano” na forma como desenhou atmosferas; Carla Santana foi a mais discreta presença, mas a sua névoa electrónica revelou-se fundamental para ligar os diferentes elementos e para, juntamente com a guitarra de Thiago Leiros Costa, criar uma densa teia harmónica em cima da qual tudo o resto aconteceu. O guitarrista alternou entre uma guitarra acústica de 12 cordas e uma eléctrica que fez ressoar com arco, numa busca por essas atmosferas evocativas de florestas habitadas por espíritos arcanos e corpos presentes e naturais. A kora de Braima Galissa soou como a luz que se escapa por entre a folhagem densa e as percussões de Dudu Kouatê mostraram ser o elemento mais “livre” do conjunto, capazes de se esgueirarem entre o tempo rítmico mais rígido para assumirem uma função de coloração que contribuiu para essa evocação de um mágico lugar verde.
Por cima disso tudo, Rodrigo Brandão, no seu registo de spoken word algures entre o rap e a narração de filme noir, evocou três mestres da percussão — Ivan “Mamão” Conti dos Azymuth, Tony Allen, aliado de Fela Kuti na invenção do afrobeat, e Naná Vasconcelos, essoutro viajante do universo natural que tocou com, entre tantas outras grandes figuras do jazz, Don Cherry, o criador da Organic Music Society que é assumida inspiração destes GRIOT 3000.
No final ficou sobretudo a vontade de conferir para onde caminham estes GRIOT 3000, algo a conferir em breve, nos futuros concertos ou na gravação que deverão concluir em Coimbra. Para já fica o interesse numa música que não vive do sobressalto, e que pareceu correr tranquila rumo a um lugar melhor, como um riacho animado pelas águas de uma Primavera que todos desejamos.