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Fotografia: Adriano Ferreira Borges
Publicado a: 13/02/2025

Agregação de sons e culturas.

GRIOT 3000: “Árvore sem raiz não gera frutos”

Fotografia: Adriano Ferreira Borges
Publicado a: 13/02/2025

Rodrigo Brandão é um agitador no melhor sentido da palavra, um espírito de corpo presente que em cada novo projecto sacode a poeira do conformismo, que não acredita em fronteiras ou linhas que separam, antes em actos que congregam, que unem. E isso tem estado muito patente na sua obra recente, um conjunto de explorações de diferentes “outros”: Outros Barato, de 2018, Outros Espaço, com elementos da Sun Ra Arkestra, em 2021, e Outros Estado, de 2023, ambicioso projecto em que reuniu num mesmo lugar criativo os consideráveis talentos de Rodrigo Amado, Hernâni Faustino, Thiago França, Fabio Freire, José Braima Galissa, Marcos Gerez, Yedo Gibson, Guilherme Granado, Pedro Melo Alves, Carla Santana, João Valinho, Luís Vicente e Felipe Zenicola, notável conjunto transatlântico de exploradores das possibilidades da invenção repentista.

Agora, Brandão encabeça liricamente um novo projecto, GRIOT 3000, recrutando novos e já testados aliados e aliadas dessa permanente busca libertária: Luís Vicente (colaborador frequente de importantes mentes criativas como William Parker, Hamid Drake ou Tony Malaby), Carla Santana (descrita no programa oficial como “alquimista electrónica descendente do minimalismo de Terry Rilley”) e o mestre guineense da kora, Braima Galissa. Neste projecto surgem ainda o percussionista senegalês Dudù Kouate (que trabalhou com a lendária Art Ensemble Of Chicago e também com Moor Mother) e Thiago Leiros Costa, guitarrista paraibano sediado em Itália (líder do projecto Onça Combo e companheiro de aventuras de Juçara Marçal).

Uma promissora confluência de talentos que já no próximo sábado, dia 15 de Fevereiro, se estreia ao vivo no Centro Cultural de Belém, antes de seguir para Coimbra para uma performance a 21 de Fevereiro no Salão Brazil (lugar onde aconteceu uma residência artística para a gravação de um álbum de estreia que será lançado com selo JACC) e, no dia seguinte, 22 de Fevereiro no gnration, em Braga.

O Rimas e Batidas conversou sobre a criação deste GRIOT 3000 com Rodrigo Brandão que por aqui explica a sua filiação nos preceitos afro-futuristas e elabora sobre a força da comunidade nestes dias dominados pelo individualismo.



Comecemos pela palavra “Griot”: a tradição africana dos griots, que carregavam na sua voz o peso da História, das histórias, das tradições e acontecimentos, apresentando-se de forma itinerante, é ancestral. Eleger essa palavra para a designação de um novo projecto deixa crer que a palavra e a transmissão oral de ideias e histórias continuam a ser ferramentas importantes na construção de comunidades. É nisso que acreditam?

Totalmente, e cada vez mais! Ancestralidade e oralidade são palavras-chave aqui. Árvore sem raiz não gera frutos. Quanto mais a gente conhece nossa história, a caminhada dos nossos ancestrais, mais a gente sabe sobre os erros que podem ser evitados e devem ser corrigidos, sobre os acertos que merecem ser repetidos, é natural ser mais forte e ter mais sabedoria. E numa época de normalização das fake news e das narrativas deliberadamente distorcidas de extrema direita, a oralidade é antídoto. É a verdade passada em modo presencial, olho no olho, à revelia do algoritmo.

Por outro lado, o numeral 3000 remete-nos imediatamente para o futuro, dando uma espessura afro-futurista a este projecto. O afrofuturismo, que se estende de Sun Ra a Basquiat, de Rammellzee a George Clinton, é uma inspiração?

Sem dúvida alguma! Esses quatro totens que você mencionou são parte do meu panteão pessoal, assim como Lee Scratch Perry, Betty Davis, Pedro “Sorongo” Santos e mais um punhado de bambas. E depois de toda a vivência com Marshall Allen e a turma da Arkestra, tal visão é inexorável de qualquer coisa que eu faça, não tem como voltar atrás.

Nos GRIOT 3000, ao seu lado, há uma série de músicos que deverão ter sido seleccionados, eleitos, por razões distintas. Pode explicar-nos porque chamou cada um deles?

Na verdade a coisa foi-se formando organicamente… Entendo que começou numa conversa com o Eduardo Morais, da Unha, em que o Luís Vicente se mostrou aberto a formar um grupo de um certo “jazz não jazz” comigo, mencionou a Organic Music Society, e ainda nomeou tanto o Mestre Galissá quanto a Carla, duas pessoas que admiro — já não é de hoje. Quando soube disso, pirei na ideia, só pensei em um porém: preciso de percussão. Porque a macumba é inevitável no som que me move. Pouco tempo depois, o Edu escreveu com uma sugestão. Quando li o nome de Dudù Kowate, tive um flashback do meu irmão Guilherme Granado dizendo, em Novembro de 2019, após as datas comemorativas do cinquentenário do Art Ensemble Of Chicago em São Paulo, que conheceu o percussionista do grupo, e sentiu que a energia dele conecta com a minha. Cinco anos depois, surge esse mesmo nome… Desde o primeiro instante, percebi um senso de propósito nisso, sabe? Enfim, se estabeleceu o contato, mostrámos a ele os meus albums, e Dudù concordou em colaborar connosco. No entanto, paralelamente a isso, meu amigo Thiago Leiros Costa, linha de frente do Onça Combo, paraibano com escala em São Paulo e atualmente residente de Milão, já vinha desenvolvendo uma parceria com o mesmo. Pra completar, Thiago e eu já vínhamos conversando sobre fazer algo juntos há anos. Quando entendemos que estávamos conectados pelos mesmos tambores, o senso de propósito se confirmou, e a formação se consolidou.

A Organic Music Society imaginada por Don Cherry é outra inspiração directamente assumida. Que ensinamentos recolheram nessa experiência do visionário músico americano?

A valorização do coletivo é um ponto importante. A celebração das particularidades de cada integrante, com sua bagagem única de vivências e referências é outro. Mas também a liberdade e a vontade de agregar culturas e sons dos mais diversos povos, em tom de igualdade, sem a rigidez da hierarquia imposta pelo colonialismo. 

O GRIOT 3000 vão mostrar-se numa série de concertos, mas propõem-se criar música em residência artística em Coimbra. Há algum plano prévio? Ou trata-se apenas de juntar estes espíritos num mesmo lugar e deixar que o universo crie a sua magia?

Existe um plano prévio no âmbito lírico. A proposta temática informa a música, que por sua vez define a minha interpretação vocal. Mas fora isso, a ideia é, como você disse, confiar que os espíritos vão se fazer presentes na sala, e os talentos individuais de cada integrante vão estar em plenitude, e em harmonia, gerando unidade.

Entre a electrónica de Carla Santana, a electricidade de Thiago Costa e a vibração primordial da kora de Braima Galissá e das percussões de Dudù Kouate sente-se também a existência de dois mundos, um mais tecnológico e outro mais natural. Simbolicamente, o trompete de Luís Vicente estará algures no meio, simbolizando o jazz que sempre foi palco de encontro de diferentes linguagens e tradições. É esse o mapa que os GRIOT 3000 vão explorar?

Precisamente. 

É possível também, nesta proposta de experiência artística, entrever uma dimensão política? Afinal de contas vivemos dias de consagração do indivíduo, em que o artificio parece sobrepor-se à verdade. Sublinhar a participação colectiva, a ideia de comunidade, é uma forma de resistiência em 2025?

É inevitável ser ardentemente político numa época de guerra ideológica pós-futuro como essa. E sim, o coletivo, a comunidade, o comércio local, a cultura, as artes, tudo isso é resistência no aterrorizante agora. São Jedis em dias de império. Mas devo ressaltar que, apesar de toda maldade, de tanto veneno, tenho fé radiante na aurora de uma nova era!

Pode falar-nos dos textos que se vão ouvir nestes GRIOT 3000?

Nunca tive dúvida que esse projeto pede por conteúdo exclusivo, escrito especificamente para a ocasião. Quando tudo se configurou, eu comecei a buscar o ângulo exato, a abordagem mais sincera possível. Tanto Galissá quanto Dudù vêm de linhagens griot genuínas. E mesmo sendo vira-lata nesse sentido, eu natural e instintivamente carrego comigo os nomes de gente com quem tive a honra de viver, e que se foram. Procuro sempre celebrar a contribuição dos ancestrais musicais que me moldaram, especialmente após a passagem de cada qual, pra perpetuar suas histórias, e manter vivas suas memórias. Assim surgiu o conceito do “Réquiem Pra Três Reis Do Ritmo”. É minha singela  homenagem a uma trinca de artistas com quem pude conviver em seletas situações, e que mudaram minha vida para melhor em muitos aspectos: Naná Vasconcelos, Tony Allen e Ivan “Mamão” Conti.

Desta experiência vai resultar um disco, certo? Quais os planos para a sua posterior edição?

Exato. A gente tem esse álbum na mira, uma clareira na floresta pra realizar, e há-de ser flecha certeira, sim. O lançamento está programado pelo JACC, que abraçou generosamente o projeto, assim como o gnration e o Centro Cultural Belém.


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