O gnration, a sala bracarense que mais se atreve e arrisca, trouxe para dias de criação e desenvolvimento um dos mais destemidos contrabaixistas da actualidade. Escrevemos de Gonçalo Almeida como lanterna que vai na frente, dessas mesmo que iluminam duas vezes. Presente para uma estadia, em contexto de residência artística, celebrada com a partilha do resultado no dia 22 de Março.
Almeida programado em concerto com “States Of Restraint”, o mesmo título do último disco lançado pela combativa Clean Feed em meados de 2024. Nesse trabalho, gravado na portuense Sonoscopia, o contrabaixista e compositor contou com as cumplicidades instrumentais de Susana Santos Silva (trompete) e Gustavo Costa (percussão). Um disco marcante na composição contemporânea da arte dos sons mais recentes entre nós. Registo infelizmente sem os palcos que merecia. Um disco apresentado, nas palavras de Spencer Grady, como partindo “de notáveis poemas sonoros minimalistas que se distinguem pela sua intensidade rastejante e pela sua estética meditativa austera.” Entende-se de caras a denominação escolhida, reside aí a restrição, imposta a si mesmo pelo compositor na criação. Nada que ver com restrições sonoras e muito menos com intensidade.
Se dúvidas houvesse quanto ao sentido dos estados (de alma) dessa designada restrição, tínhamos neste presente concerto um teste presencial, num averiguar de perto — ou não. E de pronto se revela esse “não”, embora estejamos sentados, de facto, muito perto — quase em cima, literalmente, do que estava a acontecer. Uma plateia deliciosamente colocada em modo moldura em torno dos músicos, e todos assim estamos no mesmo plano de chão — o pedestal de palco desta blackbox fica para encher de som, “apenas”. Mas referíamos que esse “ou não” era contrastado com a pronta execução de novas composições. Relação ao disco de igual nome, talvez somente por estarem em plano os mesmos ingredientes — os músicos e a ideia criativa. No resto estamos a ouvir um algo consequente, tipo “States Of Restraint 2.0″.
Uma suite apresentado numa estrutura, que concerto adiante se assume, de um solo mais 4 andamentos (capítulos) ou “restraints”, como em disco, onde se contam 5, mas onde não há solo — é sempre um trio a operar. Este “novo” solo de Almeida neste contexto de trabalho é um prelúdio por definição precisa dos termos aquando das suites, sejam as para violoncelo do magistral Bach, ou todas as outras que assim se estruturem. Neste solo ouvimos a mais minimal redução das possibilidades de um contrabaixo. Tocado em arco, corda por corda, mas perduradamente cada uma só vibra. Uma notal pedal — estamos cientes que o drone anda em voga. Um exorada demonstração de ressonância por si, elementar e abrindo caminho o que se seguiria. O convite estava feito e restava entrarem em cena as outras partes.
Susana Santos Silva de trompete e surdina. Gustavo Costa entra no seu dispositivo de percussão, aquele vistoso bombo horizontal — mesa de trabalho como a de Lê Quan Ninh — mais um par de peles em tímbalos, e dois distintos conjuntos de carrilhões, uns tubulares e outros não. Uma trilogia de músicos dora em diante dispostos à sua prática interpretativa. Os andamentos estavam escritos em partituras gráficas — vimos isso depois, plenos de anotações dinâmicas: “play long tones”, “choose randomly” entre ondas, com espectros de variação e intensidade. É caso para pensar se a escrita em pautas de música comportaria tal dinamismo. Uma música que denota um detalhe fundamental para que essa progressão minimal seja deveras rica, quer em texturas (muito por via da trompete) quer nos timbres de percussão. Denote-se que a linha de tempo e ritmo é de acentuado caracter cíclico e repetitivo. Já Grady tinha essa percepção na obra anterior ao referir que “a paciência […] levada para além da sua simples virtuosidade, torna-se o fulcro criativo para um conjunto de entradas emocionantemente singulares, que se deleitam na latência variegada”. Neste novo segundo compromisso de Almeida com estados de restrição, notamos uma maior amplitude e riqueza dentro desse aperto, desse cerco criativo imposto.
Se nos dois primeiros andamentos há um campo mais abstracto, até atonal em vários momentos, em que a música se desliga desse centro tonal, aos demais andamentos reconhece-se uma mudança, em crescendo. Cadências mais apertadas no ritmo, uma linha de contrabaixo que se solta num sulco bem aberto e dinâmico e uma trompete mais melódica, até desviada mais vezes do sentido exploratório das suas componentes. Poder-se-á até separar duas metades. Na primeira contempla-se um equilíbrio entre o fascínio e o impulso de uma “eternidade feliz”, como referia Grady para as 5 partes da obra editada; e na outra metade há um inusitado convite à dança. A intensidade rítmica é gratificante e faz um apelo ao que sem isso seria possível. Referimos a seminal obra Drumming (1971) de Steve Reich. Gustavo Costa é um criativo instrumentista e compositor de baquetas na mão. Aqui tem, nas linguagens timbricas trazidas a jogo sobre o grande bombo, uma resposta à dúvida, que se poderia colocar à partida, se estaríamos perante uma música de restrição. E esses recursos provêm da natureza dos materiais, é uma “sonodiversidade” a que nos convida a observar melhor o (ó) que o som tem, como nessa genial ideia que um dia Rui Junior teve como título de obra. Mas a cadência segue minimal, não esqueçamos, para não perder o pé de dança, no tempo certo.
Referencia última ao gigante arcaboiço de exploração dos recursos trazidos por Almeida. Operando um mais que contrabaixo, e utilizando gravações de campo. A certa e oportuna altura, o andamento é despontado pelos timbres dos sinos pré-gravados, como convites. Como em tantas vezes, esses sinos são elementos que se ouvem nesta mesma blackbox, vindos de fora. Ficamos sem saber se até essa recolha é daqui mesmo, do lugar, desta cidade onde há sinos em todas as torres de igreja, tocam e ouvem-se em todo o lugar. E nesse mais que contrabaixo importa relembrar a sua recente peça “Lapso Continuum”, estreada na OSSO, em Dezembro de 2024. Essa instalação resultante também de uma residência que levou o compositor a poder colocar em prática a ideia de um certo contrabaixo a tocar por ele próprio. Um conjunto de autómatos — pequenos motores eléctricos e sensores de luz — em que se fez maestro orquestrando os mecanismos com ligares e desligares, como músicos para um só instrumento. Uma performance que ainda guardamos de boa memória pela genialidade e que encontramos ligada a este concerto. No contrabaixo habitam dois desses autómatos, um na ponte e outro nas cravelhas, ambos com extensa intromissão às cordas. Trazem e adensam o ritualismo, numa cadência de aproximação ao transe, que se ouve. Há graves profundos, timbres dos tímbalos e sopros desviantes, agitam-se os corpos e balançam em uníssonos as partes deste todo.
Vivida a obra, estamos num ponto de atrevimento que nos leva a suspeitar que, uma vez editada, esta monumental peça estreada e gravada, será um dos registos mais marcantes a ter em conta no campo da música contemporânea que se precisa e nem suspeitávamos existir. É que, na verdade, essa lanterna vai bem mais adiante, o que faz com que estas composições estejam além dos desígnios da mera cartografia do desconhecido, são antes a definição de existência pela sua invenção.