Em março, os Glockenwise celebraram um ano do lançamento de Gótico Português, o quinto registo de estúdio da banda de Barcelos, com um concerto especial no Musicbox, em Lisboa.
Semanas mais tarde, Nuno Rodrigues, Rafael Ferreira, Cláudio Tavares e Rui Fiusa apresentaram um dos discos mais aclamados da música nacional de 2023 ao Tremor, nos Açores, onde regressaram após uma década de ausência do festival em formato de mote para um ano onde colocam Gótico Português de volta à estrada. Neste sábado (25 de maio), tocam na Madeira, no Aleste, e a 7 de junho tocam no festival Quintais Adentro, em Odemira, antes de iniciarem o roteiro de verão que lhes vai permitir actuar em festivais como Sons no Montijo, Ponte D’Lima ou MEO Kalorama.
Nos Açores, o Rimas e Batidas conversou com Nuno Rodrigues e Rafael Ferreira sobre o impacto de Gótico Português na banda e na música portuguesa e sobre a relação do grupo com a sua “margem” e com todo o processo de saírem e regressarem a ela.
Estiveram no Musicbox a celebrar um ano de Gótico Português. Dado o longo percurso da banda, é especial encontrarem uma sala inteira ligada com as vossas canções como aconteceu nessa noite?
[Nuno Rodrigues] A relação entre a longevidade do nosso percurso e o propósito da tua pergunta tem particular relevância no nosso caso. Tu podes ter um percurso muito curto com salas muito cheias ou um percurso muito longo com salas normalmente vazias [risos]. No nosso caso, foi mais o segundo. Por isso, sim. Diria que, para nós, é especialmente bom perceber que há uma parte da nossa obra que começa a ressoar junto das pessoas, que elas percebem aquilo que estamos a querer dizer e que o nosso discurso encontrou um lugar de carinho junto pelo menos de algum segmento do público português.
O Gótico Português foi lançado em fevereiro de 2023 e foi apresentado como um disco em torno do conceito de um Portugal marginal, um Portugal escondido. Em 2023, quando apresentaram o álbum na Culturgest, lembro-me de vos ouvir falar que o disco não foi pensado como um disco descentralizador, mas que acabou por ganhar esse cunho subsequentemente. Como uma banda que vem de Barcelos, como encaram o desafio de tentar descentralizar o discurso musical em Portugal?
[Nuno] É uma resposta muito grande, diria, que não tem a ver só com a nossa prática artística, mas também pelo nosso percurso pessoal, que é muitas vezes contraditória em termos emocionais. Por um lado, quando começamos a tocar, havia claramente presente a ideia de queremos sair de Barcelos. Ou seja, começámos a tocar porque gostávamos de fazer música, de fazer ruído, mas isso também era um veículo para escaparmos ao tédio desse local. Foi isso que nos levou a ir tocar às, chamemos-lhes, grandes cidades – Porto e Lisboa – e isso era extremamente entusiasmante tendo em conta que na altura éramos miúdos do secundário e, portanto, os nossos fins de semana eram consideravelmente diferentes dos nosso colegas. Portanto, existe essa primeira relação, com este lugar descentralizado, em que te tens de centralizar primeiro. Tu és convencido que deves fazer isso. No entanto, muito cedo na nossa vida pessoal além da música, começámos a funcionar como facilitadores para a marcação de concertos de artistas que fomos conhecendo precisamente por nos termos aproximados dos centros. Isso fez com que pudéssemos criar oportunidades em Barcelos para que artistas com quem fomos travando amizades pudessem ir tocar a este sítio. E isso tinha uma dupla função. Por um lado, ter mais sítio onde tocar, claro, mas por outro, nós tivemos a oportunidade de poder ver artistas e bandas que nos levaram a querer fazer música e sentíamos que tínhamos uma certa responsabilidade de continuar a fazer isso pelas outras pessoas também. Ou seja, estava presente uma ideia de devolução ao sítio que nos criou.
[Rafael Ferreira] Acho que isso é porque, no nosso caso particular, a linha temporal da banda é a linha temporal das nossas vidas. Como o Nuno estava a dizer, houve essa fase inicial em que nós, como qualquer adolescente de um sítio periférico, queríamos ir para uma cidade e a banda acompanhou essa vontade, como depois acompanhou a análise de percebermos de onde é que viemos e porque é recorrentemente regressamos a Barcelos. E isso tem muito a ver com nós levarmos lá regularmente os amigos que fomos fazendo ao longo do tempo para tocarem em Barcelos. Isso foi algo que recorrentemente aconteceu. Por isso, tivemos sempre esse pé em Barcelos e noutro sítio.
[Nuno] A parte interessante deste processo é que nós passámos a ser o “outro” em todo lado onde passávamos. Éramos vistos como aquela figura autorizada do rapaz da província, mas depois simultaneamente éramos o “outro” na província [risos] – e aqui utilizo o termo província da maneira mais carinhosa possível – porque as nossas vidas deixaram de passar por ali no imediato. E isto era um sítio estranho de estar. Não era um sítio de total despertença, mas havia ali uma certa despertença que não era só territorial – era também artística. Acho que isso está muito presente no nosso trabalho. Ainda hoje sentimos esse sentimento de despertença artística, no sentido de que nunca nos ligamos com muita afinidade a determinadas tribos urbanas, como géneros musicais ou circuitos específicos. Esta espécie de rock andrógino que fazemos e que tem muita sede de explorar diferentes estados emocionais, desde ansiedades punk rock até crises existencialistas nostálgicas. Apesar do nosso som ter vindo a mudar com o tempo, consegue-se sentir sempre estas notas presentes na nossa música que, de certa forma, fazem com que não pertençamos a uma determinada tribo, digamos assim.
Acho que isso liga com o Gótico Português ser um disco emo um bocado escondido [risos].
[Rafael] É um bocado.
[Nuno] [Risos] Percebo. Se tivesse de dizer há uns anos que seria natural que a nossa música fosse classificada como emo, se calhar não era a primeira coisa que me vinha à cabeça, mas a partir do momento em que isso é feito, há coisas que se começam a ligar e a fazer sentido. Se formos às raízes do emo, eu pelo menos era grande fã dos Fugazi quando era adolescente e diria que eles estão mais ou menos nessas referências de angst, existencialismo e reflexão de onde és e porque és o que és. Acho que desde os Minor Threat que o Ian Mackaye tem vindo a fazer muito isso.
Em 2023, o Hugo Geada publicou uma reportagem na Comunidade Cultura e Arte a questionar o que teria acontecido às bandas de Barcelos. Que diferenças vêem entre Barcelos que vos criou enquanto músicos e Barcelos atualmente, uma localidade mais vazia de salas e espaços onde as pessoas podem conviver?
[Rafael] A cidade está muito diferente. Há um Barcelos pré-2010 e depois há um Barcelos a partir de 2016, 2017, que é muito próximo daquilo que é agora. A cidade está desprovida de espaços para tocar. Havia um sítio que era fulcral para a existência de uma comunidade, que era o CCOB [Círculo Católico de Operários de Barcelos], em que as pessoas passaram estar proibidas de usufuir daquele local. Portanto, além da falta de sítios para tocar, também faltam sítios onde uma comunidade inteira pode ir tomar café, porque isso também faz com que apareçam bandas. Nós começámos a tocar porque as pessoas paravam todas no mesmo sítio e é nesses sítios onde conheces as pessoas que passam a ser colegas de banda, onde se fazem amizades e se criam laços. A falta de um local para isso faz toda a diferença. A cidade neste momento tem um sítio onde ocorrem concertos, que é o teatro municipal. Como deves imaginar, o ambiente e o tipo de oferta que esse espaço tem é particularmente diferente.
[Nuno] Quando o artigo do Hugo saiu, isso promoveu um pouco uma reflexão, porque a situação vai além da discussão abrangente sobre práticas coletivas. Há várias coisas que jogam a favor do desaparecimento da banda enquanto fenómeno e isso não tem a ver só com as questões societárias, como a supremacia do individualismo. Tem a ver também com questões de logística. É muito difícil encontrares um sítio onde podes fazer barulho com outras quatro ou cinco pessoas [risos].
No caso do Norte de Portugal, a falta de espaços para se ensaiar e “fazer barulho” é notória.
[Nuno] Sim. E depois é difícil não teres um sítio onde podes mostrar esse barulho que fizeste com as tal quatro ou cinco pessoas. A questão que se colocava na altura era porque é que já não existiam bandas em Barcelos, e eu acho que isso é uma questão superficial. Ainda há artistas em Barcelos. Acredito que sim. Deve haver miúdos que mudaram completamente as suas práticas de fazer música, porque a fazem sozinhos no computador, mas há um lado meu que acredita nisso — que vão existir sempre miúdos com criatividade e com vontade de querer fazer coisas. Por outro lado, esta questão da logística das coisas condicionou para que chegássemos a este ponto. Tu olhas para os nomes dos cartazes dos festivais e são cada vez menos os nomes coletivos. Mesmo as pessoas que se apresentam como um coletivo, como uma banda em palco, geralmente é sob um nome próprio em que são acompanhadas por uma banda. Ou seja, esta ideia da entidade coletiva está meio que a desaparecer.
Para editarem o Gótico Português, criaram o selo da Vida Vã, a vossa editora. Apesar de ainda não ter existido muita atividade, como pretendem utilizar esta editora para tentar dinamizar a cena musical no Norte do país? É uma coisa que já vos passou pela cabeça?
[Rafael] Quer dizer, nós já estamos particularmente envolvidos nesse trabalho. Fazemos parte de uma associação cultural em Barcelos que desenvolve um projeto em que a sua grande missão era juntar o circuito das salas pequenas do Norte do país com a Galiza para se criar ali uma espécie de intercâmbio entre artistas portugueses e galegos. De certa forma, estamos envolvidos nesse trabalho há muitos anos.
[Nuno] Independentemente da existência do selo ou não.
[Rafael] Creio que a editora não deve servir esse propósito. A editora deve servir o propósito de editarmos, eventualmente, aquilo que possamos achar que vale a pena, e acho que isso são duas causas diferentes. Acho que o problema da falta de salas não tem a ver só com o problema delas não existirem, mas também com a falta de visão para a potencialidade que esses sítios têm nas comunidades locais. Por exemplo, eu vivo em Guimarães, que é um sítio com uma grande fatia municipal investida na cultura e que está cheio de equipamentos, mas que não tem qualquer tipo de rede cultural a acontecer. Há um bar em Guimarães que se chama Oub’lá e que, se fechar amanhã, cria uma mossa muito maior na comunidade do que se fechar o Centro Cultural Vila Flor. Disso não tenho dúvidas absolutamente nenhumas. Acho que esses locais têm de ser encarados como locais que servem a comunidade e não só como salas de espetáculos.
[Nuno] Mas sobre a questão da editora… Nós não queremos que ela seja uma promotora. Ou seja, ela não vai ser um negócio 360º como são maior parte das editoras em Portugal. Queremos que ela tenha mais um cariz semelhante à Ama Romanta: puramente editorial. Primeiro, para servir de casa para o que é nosso [risos]. Eventualmente, se tivermos mais tempo, queremos preencher também com coisas que possamos eventualmente facilitar a outros, porque neste momento o selo está só preenchido pelo Gótico Português. Nesse aspeto, o Pedro Valente [Azáfama] é absolutamente fundamental para este processo. Ele é o nosso nortenho honorário, o nosso enviado especial a Lisboa [risos]. Isso faz muita diferença. Há claramente um antes e um depois, pelo menos no nosso caso, de termos uma espécie de embaixada permanente na capital. Ele é que tem assumido e facilitado o elemento logístico de termos criado este selo. Não esquecemos a editora, mas ainda não se proporcionou a oportunidade de editarmos mais coisas.
Porque acham que tantas pessoas se relacionaram com o sentimento cantado no Gótico Português?
[Nuno] É mesmo difícil responder a essa pergunta escapando a um campo de minas que são os clichês sobre a natureza da portugalidade [risos] ou soar arrogante. É uma pergunta armadilhada [risos]. Acho há várias coisas a contribuir, desde o Plástico, para este relacionamento do público com a nossa obra. Termos começado a expressar-nos em português é um fator incontornável neste processo, porque passou a traduzir de uma maneira muito mais imediata para o público que nos era mais próximo, que obviamente é o português, aquilo que sentimos. E acho que há uma universalidade em algumas das coisas que tentamos traduzir através da nossa música que foi agarrando pessoas com vários interesses semelhantes. No caso particular do Gótico Português, existe uma reflexão sobre uma identidade que não tem nada a ver com portugalidade. Tem a ver com a identidade da margem e acho que há uma certa diáspora, chamemos-lhe assim, que se interessou por isto e que percebeu ou se reviu nesta relação complexa que existe entre a margem e o centro, e entre ser de ambos estes lugares e que se não se fica apenas por uma nostalgia kitsch. Entende que a relação entre estes lugares é complexa e que a nossa relação com a margem é crítica também — nós não fazemos uma apologia sequer. Acho que isso foi um dos fatores importantes e foi uma feliz coincidência que isso tenha acontecido numa altura de particular apropriação e cristalização kitsch dessa “portugalidade”. Acho que uma fatia do público que ouve pop alternativa encontrou no Gótico Português uma outra abordagem que lhes pareceu interessante e reconfortante, talvez a face a esta atitude quase extrativista praticada por muitos artistas que, de repente, moldaram todas as suas personalidades em torno de uma cultura popular portuguesa que nem sequer é real. É kitsch e até tem laivos, e eu sei que isto é problematizar muito a questão, eu acho, de um certo “estadonovismo” que me dá alguns arrepios. Porque esse foi o papel do Estado Novo também. Cristalizar a ideia desta homogeneidade da cultura portuguesa e destes regionalismos bacocos, e acho que nós viemos falar disso, mas de outra forma. As coisas são muito mais estranhas, maleáveis, diversas e críticas do que estes chavões populares que, na sua maioria, são profundamente desinteressantes e perniciosos até para o estímulo cultural da margem [risos].
Em “Bom Rapaz”, última faixa do Plástico, cantavam “Quero perder a vergonha mas não sou capaz”; em “Deixar Ferver”, penúltima canção de Gótico Português, regressam a este tópico, cantando “Vergonha é o que me falta”. Qual a fórmula para passar de um estado para o outro?
[Rafael] É uma excelente questão.
[Nuno] É ótima. Vou tomar aqui a dianteira porque diz respeito a uma letra e talvez seja mais fácil ser eu a falar [risos]. Primeiro, apesar das letras terem um cunho marcadamente pessoal, há um esforço para que seja mais ou menos uma experiência universal. Ou seja, não me estou a fazer representar a mim mesmo exclusivamente nas letras, mas sim a um sentimento que sinto que é subcutâneo e partilhado entre nós e que consigo traduzir nas letras, e que o Rafa consegue traduzir na energia das melodias e dos riffs que traz para os ensaios. Nós temos este entendimento de quem está há muitos anos a fazer algo em conjunto e já estamos naquela fase em que cada um consegue, de forma interessante, traduzir o que coletivamente estamos a sentir naquele momento. Portanto, as letras têm essa vontade de não serem uma coisa extremamente pessoal e, por isso, estão cheias de contradições e complexidades. Acho que era o B Fachada que defendia que o conteúdo não se pode impor à forma no que diz as respeito às letras. Portanto, as letras encontram-se recheadas de non sequiturs, não é? Acho que as letras dele, que são consideravelmente melhores que as minhas, também estarão [risos]. Em relação à pergunta que fazes, no caso da “Bom Rapaz” a coisa tinha a ver com uma descrição particular de uma vontade de descontrair, de sair de um abraço apertado de uma camisa de forças e extravasar cá para fora coisas que estavam a borbulhar por ser, lá está, bom rapaz [risos]. Tinha a ver com os limites autoimpostos que não tiveram oportunidade de se superficializar. Pelo contrário, na “Deixar Ferver”, pode ser o efeito boomerang desse extravasar em que me queimo, que me molho, como a música diz também. Às vezes, um pouco de contenção é bem-vinda. É este o binómio em que operamos e do qual falamos muito ao longo do nosso trabalho enquanto banda. Estas contradições, estas complexidades. São dois estados de espírito que podem coexistir e não é só em nós. Acho que é universal e sujeito às condicionantes de cada momento.
[Rafael] Subscrevo totalmente [risos].