Gil Delindro estende a sua acção sonora para lá do espaço expositivo, em performances sonoras vividas e sentidas no momento, irrepetíveis. É prática do artista apresentar-se em concerto aquando de uma mostra do seu trabalho escultórico-sonoro. Foi assim no Verão de 2024 em Coimbra, quando esteve visitável no Convento São Francisco a exposição “A Natureza não reza”, que terminou com a performance que juntava então Gil Delindro a Teresa Castro (aka Calcutá) como convidada em “Voidness Of Touch”.
Agora neste 2025, na Casa de Serralves tem patente “A Audição Vibratória” e que retomamos a propósito do parte e reparte dos espaços. Intrigou-nos a disposição segmentada da exposição. E voltámos à mnemónica que se aprendeu na escola primária para se fixar o correcto uso dos esses” e dos “zês”. Foi nesses tempos que nos contaram que “os vizinhos vão para a cozinha e que as visitas vão para a sala.” Lembramos isso mesmo como um adágio quando temos que entender o porquê de atravessar uma outra exposição, na Casa de Serralves, para retomar a visual-audição das obras de Delindro. São, porventura, só ares a dar conta disso, mas que nos ajudam a entender esse porquê das coisas.
Houve contudo, num ir mais além, uma extensão das obras com uma performance no Auditório do Museu de Serralves no passado dia 9 de Março. Delindro pôde contar com um par de músicas convidadas para uma colaboração inédita assente numa construção em que a vibração acústica se torna uma ferramenta efectiva e fundamental. A artista Beatriz Romano tem uma recente e entusiasmante actividade no campo da música electrónica em FreqSix, um colectivo que integra 6 músicos com efectiva perda auditiva. A outra convidada é Inês Barbosa, performer que vai dos domínios do teatro às artes sonoras e que se tem feito ouvir, entre palavras, composições à guitarra eléctrica e teclado Korg, em CAVALA — quinteto interventivo-experimental. Este trio conjurado por Delindro tem pela frente um auditório disposto a absorver as ondas e vibrações no limiar da percepção do ouvido humano. Justamente são essas as premissas de trabalho e entendimento funcional entre os dois músicos ouvintes com a música não ouvinte, contudo com outras capacidades de percepção. Como remete Pedro Rocha, como curador da exposição de Delindro em Serralves, “[…] o que não se ouve é tornado visível e, por outro lado, produzem-se outros sons, estes audíveis; […] um mundo […] onde encontramos o outro pela ressonância”. Esse mundo tornado melhor à boleia da percepção de outros mais perspicazes, sensíveis ou tão somente por força de uma suplementar capacidade desenvolvida para colmatar outras perdas. Há notáveis exemplos disso no campo da música, como o trabalho da artista sonora Izabela Dłużyk, invisual e que nos transcende cada vez que nos dá a ouvir a sua superlativa capacidade de escuta. Foi assim na sua passagem pela edição de 2024 do Semibreve, junto a Chris Watson com Białowieża, na descrição acústica da floresta quase prístina.
A actuação sonora faz-se acompanhar de uma projecção video, sendo prática regular nas apresentações do artista. Delindro, recorde-se, nas suas recolhas de campo actua no domínio do som mas também da imagem. Fá-lo como método de veracidade, em muitos casos para um dar a conhecer de onde vem esse som — honestidade artística. Noutros há essa complementaridade visual como elemento aditivo à prestação sonora em curso — é o caso neste palco. Vemos crescentes nuvens, cumulativas, tons rubros — são nuvens piroclásticas, desenvolvidas em manifestações de vulcanismos explosivos. Intui-se-lhes um som, ribombante, mas escutamos e sentimos vibrante outro, vindo dos sub-graves dos músicos em palco. Há motivos para ver um som a que apetece inventar como sonoclástico. São como as partículas ígneas (piroclastos) que sobrevoam o espaço e sobretudo ressoam a matéria sólida e condutora das ondas sonoras no auditório. Romano está ladeada de dois potentes subwoofers, intercomunicadores para a sua escuta entre pares.
É sabida a incorporação das linguagens da geologia no trabalho de Delindro, é flagrante esta relação entre imagem e som, entre a escala do planeta e a de palco. Barbosa ocupa-se das cordas estendidas, quer do violino repousado quer da guitarra eléctrica a tira-colo. Esses estalidos são relâmpagos sonoros antes mesmo de serem propagações graves às mãos de Delindro aos comandos da mesa de operações. Aqui o mentor da performance assume-se como recolector sonoro de palco e que intervém de pronto, tornando moldável a dimensão sónica — agravando o momento. Há comunicação efectiva, poesia clástica em curso, é da natureza geológica sedimentar, são como partículas em transporte antes de assentarem em camadas.
Se à partida se imaginava uma construção despontada dos dois músicos ouvintes como estímulos imprescindíveis, é em muitos momentos das 4 partes em que se desenvolve a narrativa a música não ouvinte que convoca com texturas desde os seus dois sintetizadores. Abstracções texturais que dão lugar a formas ondulantes, progressivas, que acompanham o desenvoltura das nuvens, que desembrulham sem revelar na totalidade o que vai dentro. Na parte intermédia da prestação há um patamar feito de climaxes, o violino ascende em arcadas, o loutar — cordofone ancestral magrebino trazido por Delindro — ouve-se monocórdico e plana-se, por resposta, em ressonâncias telúricas. Se até aqui a ascensão sonora tinha produzido efeitos práticos, assistimos depois a uma descida, nada vertiginosa, mas efectiva. Procura-se o timbre dos clastos, das partículas antes em suspensão. Vê-se os limites do deserto, a grande superfície da matéria sedimentada. Das mãos de Romano disparam-se prodigiosos beats que Delindro dança no acomodar dos dedos nos controladores, respondem os músicos às formas do que vão encontrando, descrevem as feições dos clastos sonoros, justamente com mais partículas, individualizando as batidas no tempo. Crucial que tudo termine na tina de água onde permanecem submersos clastos vulcânicos, ampliados por um hidrofone, tudo repousa até que a mão por intromissão se a misturar a ordem do tempo sedimentar.
Gil Delindro é, por estes tempos, desde o trabalho de observação e inquirição do espaço acústico, da recolha efectiva dos elementos de campo, ao momento de construção das esculturas e, por complemento, na intervenção performativa, um destemido e precioso artista sonoro. Que nos transcende na sua acção artística, mais até por nos dar a ouvir um outro mundo — tantas vezes como o lugar de desejo na música — e por nos impulsionar e imprimir uma escuta efectiva do mundo em redor do qual nos vamos afastando por descuidos permanentes.