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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 07/02/2025

Pa Sempri Djuntus.

Ghoya: “As coisas estão cada vez mais difíceis para quem faz rap interventivo. Mas elas não têm que ser fáceis”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 07/02/2025

Referência maior do rap crioulo em Portugal, Ghoya cresceu no antigo Bairro das Fontainhas, às portas de Lisboa, e as suas vivências em contextos marginalizados sempre foram matéria-prima para as rimas que escrevia e gravava. A sua consciência social e política sempre o levaram a explorar um rap de intervenção que fala das suas comunidades invisibilizadas, dos problemas que sofrem, dos estigmas de que são alvo.

Esteve particularmente activo na primeira década do milénio. Nunca chegou a lançar oficialmente o álbum Di Otu Ladu Lei, que era para ter saído pela Sonoterapia Records, mas as diversas faixas gravadas entre 2007 e 2008 acabaram a circular à mesma, na clandestinidade online.

Com o seu colectivo Mentis Afro, porém, gravou e lançou o disco Mundu Infernal; que teria seguimento pouco tempo depois com o seu trabalho a solo 1 Vida So Ka Ta Tchiga. Acabou por se ausentar durante muitos anos, período em que esteve a cumprir uma pena de prisão, e embora tenha saído em liberdade há já uma mão cheia de anos, só fez alguns concertos e participações esporádicas.

Ghoya estava, aos poucos, a preparar-se para este momento. A arrumar a casa, a recuperar ficheiros antigos e a dar-lhes novas roupagens, a registar legalmente pela primeira vez a sua música, para honrar o legado que, com os anos, só ganhou uma maior dimensão, inspirando os seus pares e as novas gerações. Foi assim que reuniu algumas das suas faixas mais emblemáticas num disco editado em Janeiro, Pa Sempri Djuntus, que terá continuidade. Agora o rapper prepara-se para lançar mais música nova este ano, além de querer apostar nos concertos.

Este sábado, 8 de Fevereiro, toca na Galeria Zé dos Bois com alguns convidados. Os bilhetes estão à venda por 10€. O Rimas e Batidas entrevistou o músico sobre o novo disco, as novidades que aí vêm, o concerto de sábado, mas também sobre o seu legado, a aceitação (ou não) que o crioulo cabo-verdiano teve desde que iniciou o seu percurso, ou a necessidade de hoje existir mais rap interventivo.



Como é que surgiu a ideia de, nesta fase da tua vida, juntares estes sons para fazeres este disco?

Nós queríamos fazer mais do que um best of. Poderia facilmente ser algo do género, só que isso seria uma edição só. Como queríamos reunir vários sons de ao longo da minha carreira, achámos justo fazer isto desta forma para que não ficasse nada de fora. Ou seja, haverá seguimento daqui a uns tempos. Mas, para já, quisemos reunir um determinado número de sons que ilustram a minha trajectória até agora. É um abraço ao pessoal que nunca deixou estes sons morrer, alguns já têm mais de duas décadas. E estes sons é que transportaram o meu nome até agora, não tinha como darmos um passo em frente sem olharmos para trás e darmos uma qualidade sonora aos sons que, outrora, não a tinham. 20 anos depois, as coisas evoluíram, a sonoridade é outra e nós quisemos aproximar a sonoridade destes sons da actual. Acho que o conseguimos e estamos ansiosos para partilhar este trabalho com o público nos concertos.

E escolheram os sons que tiveram mais impacto ao longo dos anos, também tendo em conta os ficheiros a que tinham acesso, o arquivo que havia guardado?

Sem dúvida, até porque isto também foi uma forma de arranjarmos um sítio oficial onde os seguidores do Ghoya possam encontrar aquelas músicas de forma concreta. Porque não havia um sítio oficial onde as pessoas pudessem encontrar as músicas. Agora já existe um canal próprio. Claro que tivemos muito em conta a opinião das pessoas, demos muita atenção à opinião do público, e há músicas que nós também gostaríamos que fizessem parte do projecto mas que neste momento não é possível, daí sentirmos a necessidade de darmos um seguimento futuro a este trabalho.

Será, por exemplo, um Pa Sempri Djuntus Vol. 2?

Volume 2, volume 3… O conceito vai ser exactamente o mesmo, mas em simultâneo vamos estar a trabalhar em coisas novas e a lançá-las. Estamos também a pensar produzir vídeos para alguns sons antigos, que nunca os chegaram a ter, e eles merecem que isso aconteça.

Houve algum motivo específico para estares a fazer isto agora, nesta fase da tua vida?

Como é sabido, estive muitos anos ausente, estive a cumprir pena durante algum tempo. Já vai para cinco anos que estou cá fora, mas estive a cuidar da minha vida pessoal, a vivê-la. Fez todo o sentido ser agora e não antes porque, se fosse antes, não iríamos conseguir dar a continuidade que elas mereciam ter. Era quase meter a carroça à frente dos bois.

Precisavas de tempo para trabalhares em coisas novas, para recuperares coisas antigas…

Para registar tudo nos termos legais… Antes era mais por amor à camisola do que propriamente por outra coisa. Daí ter levado este tempo e agora temos tudo legal e no sítio certo. Esperamos que as pessoas que seguem o nosso trabalho estejam satisfeitas com isso.

É uma espécie de recomeço para ti?

Pode dizer-se que sim. Em termos legais, oficialmente, até é mesmo um começo. Não é que as coisas antes não fossem oficiais, mas não tinham um lado formal. Era uma coisa muito underground, sempre fizemos as coisas por nós mesmos, e agora queremos tornar isso uma coisa concreta. E daqui para a frente é que vou estar a trabalhar em coisas novas. Tenho vindo a participar nalgumas coisas, fiz feats com alguns colegas, mas nunca em trabalhos de originais meus. Mas eu estava a precisar… Mais do que fazer música, eu queria apresentar uma nova fase que será com os novos trabalhos que vão sair. Em termos estéticos, musicais, em termos de imagem. Queremos mesmo dar uma nova roupagem àquilo que é a minha carreira. E esta intenção acho que também se nota nas participações que fiz.

Ao longo destes anos todos, com o aparecimento de novas gerações de rappers, sentiste a tua influência e sentes esse reconhecimento, de pessoal que cresceu a ouvir os teus sons e hoje são rappers com carreiras de sucesso?

Sabes, o maior reconhecimento que eu poderia sentir em relação a isso é exactamente o que temos estado a testemunhar. Actualmente, vemos que esses artistas que cresceram a ouvir a minha música ou que eu os possa ter influenciado de alguma forma não passam pelas mesmas frontas que nós tivemos que passar quando nos fizemos à estrada. Maior reconhecimento do que isso não poderia ter. Isso acaba por ilustrar que a luta não foi em vão, que as coisas funcionaram, que as pessoas a quem queríamos transmitir a mensagem conseguiram pegar nela e melhorar a sua caminhada ao ver a nossa. O objectivo nunca é dizer “ah, vocês agora estão bem, nós passámos muito pior do que vocês”. O objectivo sempre foi: “Nós estamos a passar mal para que vocês, amanhã, estejam numa estrada bacana e perceberem que realmente é possível fazermos alguma coisa com isto”. 

Claro, é o resultado directo do teu trabalho e de outras pessoas da tua geração e outros artistas mais antigos. Tendo em conta a tua mensagem, e sempre demonstraste ter essa consciência social, e a realidade que hoje vivemos, com o crescimento da extrema-direita, com o discurso de ódio mais presente, com uma sociedade mais polarizada, sentes que mais do que nunca é importante que o pessoal do rap se posicione com a sua música?

Depende de que tipo de rap estamos a falar. O rap nem sempre tem de ser de intervenção. Se for de intervenção, nós que o fazemos temos essa responsabilidade cada vez mais acrescida tendo em conta a realidade que vivemos actualmente no nosso país. Acabamos até por ter uma responsabilidade maior do que as outras pessoas, nesse sentido, porque mais do que ser denunciadores desse problema, nós somos pessoas que o vivem. E isso traz uma responsabilidade acrescida sobre aquilo que estamos a representar com o rap que fazemos. Se não, estaríamos a aproximar-nos daquilo que nós próprios criticamos, de se falar muito e se fazer pouco, em que o barulho da ignorância acaba por ser menos incomodativo do que o silêncio daqueles que têm alguma consciência. O pessoal que está a fazer rap interventivo tem cada vez mais responsabilidade e acredito que seja uma das razões pelas quais haja menos intervenção… Porque as coisas estão cada vez mais difíceis para quem quer seguir esse caminho. E não têm que ser fáceis, porque nos debruçamos sobre situações de que fácil não têm nada…

O caminho mais fácil não é fazer rap de intervenção.

Mas depende da perspectiva e é algo que não deve ser forçado. O rap às vezes vive um bocadinho preso a esse estigma, de que para fazeres um bom rap tem de ser político ou gangsta. Não pode ser por aí, porque se não vamos ter toda a gente a falar sobre um assunto que não sente. Acho que não é disso que precisamos.

Comparando com a altura em que começaste a ter mais expressão, sentes que hoje é mais fácil para os rappers, mesmo aqueles que vêm de contextos marginalizados, que falam de assuntos difíceis e sensíveis… É mais fácil as pessoas terem voz? Terem visibilidade e passarem uma mensagem? Não quer dizer que depois seja eficaz…

Pois, a questão está aí. A quantidade nem sempre se traduz em qualidade. Hoje em dia é como dizes, temos muito mais quantidade, o acesso é muito maior, é mais fácil fazer música, mas eu noto que a mensagem se dilui um bocadinho. Talvez exactamente pela facilidade que se tem. Acho que há cada vez menos preocupação com aquilo que se quer transmitir às pessoas. Nem tudo é mau na música, a música tem sido muito melhor do que aquilo que já foi nalgumas coisas, noutras nem por isso. É como tudo, é sabermos aproveitar, reconhecer que hoje em dia temos mais espaço e agarrar nele para fazermos coisas melhores do que temos feito. E não acharmos que as coisas eram difíceis, hoje estão menos difíceis, então não é preciso fazermos mais nada. Isso acaba por diluir um bocado a mensagem e a eficácia daquilo que se quer transmitir.

Como é que olhas hoje para a realidade do crioulo cabo-verdiano enquanto língua? Embora as coisas tenham mudado, o rap foi muito marginalizado enquanto género musical. Dentro do rap em Portugal, o rap feito em crioulo obviamente ainda mais de estigmas sofria, e quando tu começaste isso era uma realidade. Hoje em dia já temos, apesar de tudo, rappers e não só que cantam em crioulo que estão muito mais próximos do circuito mainstream. Sentes que o crioulo enquanto língua na música e no rap está mais normalizado? Há mais portas abertas para o crioulo? Hoje existem rappers portugueses brancos que rimam em crioulo e parece-me que é a prova do legado cultural da língua.

É o paradoxo que existe em relação ao crioulo. Quando olhamos para a música, como dizes e bem, vemos jovens brancos a cantar em crioulo. E isso é, sem dúvida, uma vitória do e para o crioulo. Mas eu não quero que o crioulo seja visto como uma parte de uma arte. O crioulo não é uma coisa que praticamos só quando fazemos música. Nós pensamos e sentimos em crioulo. Grande parte da matriz do crioulo cabo-verdiano vem da língua portuguesa. Eu nunca vi, e acho que posso falar também pela maioria dos meus colegas, o crioulo como uma substituição da língua portuguesa mas antes como uma parte dela. Não tem como ignorarmos esse facto, não faz sentido vivermos em Portugal e o crioulo ser descartado, como se fosse uma coisa estranha, como se fosse algo novo. O crioulo não é uma coisa nova em Portugal. A sua presença [no espaço público] e aceitação é que é novo. E o facto de termos brancos portugueses a cantarem em crioulo significa que estamos a conseguir chegar a algum lado. Mas isso depois contrasta com os jovens que, na escola, falam crioulo e são expulsos da sala de aula. Porque estão a falar crioulo. E depois temos as nossas rádios a passarem música em crioulo. 

A música é muito ouvida e acolhida, mas as comunidades de onde essa música vem não são bem tratadas.

Não são bem tratadas e sente-se um bocado como se fosse uma invasão cultural. Não é assim. Se olharmos para a música cabo-verdiana, para a morna, para o funaná… Todas elas têm influências externas. Talvez tirando o batuku, que é mais tradicionalmente africana, não digo que as outras não sejam, mas têm fortes influências de outras coisas, como os cavaquinhos, as harmónicas, as gaitas… Tudo isso foi trazido de fora e temos de reconhecê-lo. E a própria língua não fugiu disso. A “luta” que estamos a travar é para que haja um reconhecimento bilateral em relação a isso. Não faz sentido para nós, enquanto praticantes do crioulo, reconhecermos a influência que a língua portuguesa tem no crioulo; e vermos que Portugal a nível institucional não o reconhece, e ainda encara o crioulo como uma cena estranha ou alienígena. Como se não fizesse sentido. É uma língua urbana super falada e divulgada. Só quem não anda nas ruas é que não se apercebe disso e isto já é assim há anos e anos. Só que hoje é menos marginalizado, sem dúvida, e isso é uma vitória. Orgulho-me disso.

No ano passado, o presidente de Cabo Verde, José Maria Neves, mostrou a sua intenção de oficializar o crioulo este ano, no 50.º aniversário da independência do país.

Estou muito contente com isso, espero que seja desta, porque já está em cima da mesa há uns tempos. E acho que é desta. Ia ser um salto enorme. Isso não significa virar as costas à língua portuguesa, seria simplesmente reconhecermos que existimos e complementarmo-nos com a língua portuguesa. Não está em causa a sua inexistência ou extinção.

Claro, até porque são línguas tão próximas.

Faz parte daquilo que somos.

O que é que faz o Ghoya de 2025 querer escrever? Quais são os temas que te fazem querer ir para o microfone? Tem a ver com as coisas que se estão a passar agora, tem a ver com as muitas coisas que deves ter acumulado ao longo dos anos em que estiveste ausente?

O que me faz escrever é aquilo que sempre me fez escrever, embora os temas variem um pouco aqui e acolá. O principal motor para escrever são as coisas que eu sinto, que me rodeiam, as pessoas com quem partilho o meu dia-a-dia. Porque a música é uma partilha de energias. Mais do que mensagens, de eu querer que tu oiças isto e aquilo, é uma partilha de energias e espiritualidade. Se eu não sentir que há um bocadinho disso nas coisas que vou fazer… A motivação primária é eu sentir o que estou a escrever. Depois, deriva. Sendo eu um artista que se rege muito pela intervenção social, pelos sentimentos das pessoas, sejam as oprimidas ou não… Gosto de me ver como um artista que quer ter uma proximidade com as pessoas que me ouvem. Mais do que querer partilhar as coisas contigo, é fazer-te viajar. Mesmo que não seja a tua história, para perceberes que aquilo também podias ser tu. Porque eu não quero impor a minha música ou arte a ninguém, eu quero partilhá-la com as pessoas. E a melhor forma de o fazer é espiritualmente, de uma forma que nos convirja a todos. Talvez a única coisa que pode divergir entre a forma como eu fazia música antes é a minha maturidade, a forma como coloco e doseio esse sentimento nas minhas palavras. Reconheço que, por vezes, a dose de emoção pode determinar a forma como somos interpretados; por mais que tenhamos a melhor intenção do mundo. 

És mais ponderado, agora?

Claro. Mas também mais incisivo.

Em termos musicais, estás a explorar beats mais contemporâneos, próximos do trap ou do drill, por exemplo?

Acho que vou deixar isso para quando os sons saírem, porque seria levantar uma cortina que quero guardar mais para a frente. Mas, sim, haverá coisas novas e diferentes.

O que é que podes antecipar em relação ao concerto na Galeria Zé dos Bois? Vai ser um best of do primeiro volume do best of que é o Pa Sempri Djuntus? Vais mostrar coisas novas?

Vou, isso posso adiantar, vamos mostrar uma coisita ou outra nova, meter o povo por dentro daquilo que estamos a fazer. Em relação aos sons mais antigos, vamos apresentar essas faixas de uma forma que nunca apresentámos antes, com uma musicalidade diferente, com coros em termos de dobras. Porque muitas vezes apresento-me sozinho nas minhas performances e desta vez não vou estar sozinho, vou estar acompanhado de alguns colegas, o que é raro. Isso, por si só, já vai ser uma diferença notória. Também vamos apresentar sons antigos que nunca apresentámos ao vivo, porque não tive tempo para que isso pudesse acontecer. Eu próprio estou muito ansioso, gosto imenso de algumas delas…

E se calhar com o tempo até ganharam uma dimensão diferente.

Sim, uma dimensão que eu não esperava que ganhassem. As pessoas continuam a ouvi-las e isso dá-nos mais vontade e garra de fazer acontecer de uma outra forma. As pessoas que têm vindo a carregar estes sons durante este tempo todo merecem essa apresentação da nossa parte, que seja mais do que uma simples reprodução dos sons que temos no CD. Merecem mesmo uma performance diferenciada ao vivo.

E depois vais fazer mais datas ao longo do ano?

Claro, claro. Vamos apresentar novas datas mais à frente, que vamos partilhar daqui a um tempo. Estamos a trabalhar em clips, músicas novas, está tudo encaminhado.

É um bocado arrumar a casa, em relação ao passado, e celebrar o legado enquanto se continua em frente.

É exactamente isso. É um abraço a cada um dos ouvintes que de forma incansável carregaram esses sons. Porque, sem eles, não seria possível. Eu estive muitos anos ausente e é preciso haver uma dose de verdadeiro amor por trás disto tudo para que aquelas músicas permanecessem de pé. Elas não ficaram esquecidas e isso deve-se ao meu público, que mantiveram aquelas músicas vivas até agora.


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