Um dos privilégios — e há alguns, reconheça-se — desta vida de escutar e escrever sobre música é a possibilidade de ver de perto e de ângulos por vezes inesperados os artistas que a maior parte das pessoas “só” conhece dos discos ou dos palcos e também os profissionais que fazem tudo acontecer — podem admirar-se os relógios apenas pelo mostrador ou abrir a parte de trás e analisar os mecanismos que os fazem funcionar, certo? Conversar sobre humor, casinos e comida com um pianista nova-iorquino, discutir as diferenças entre os desportos americanos e os europeus com um saxofonista nascido em Porto Rico, ouvir histórias de um afinador de pianos profissional (sim, existem) ou entender as complexas nuances do financiamento de pequenos festivais em territórios periféricos ao jantar com um produtor são exemplos possíveis desse privilégio. E no Funchal Jazz — como noutros eventos, na verdade — isso está sempre a acontecer.
Ontem foi um dia especial e quem assina estas linhas tem que começar por admitir que um certo jogo de futebol acabou por se atravessar no caminho do programa e ditar que não se visse o primeiro concerto da noite, em que o vibrafonista Eduardo Cardinho apresentava o belíssimo Not Far From Paradise, ali mesmo, no Parque de Santa Catarina que, diga-se, não deve distar muito do paraíso, onde quer que tal lugar possa ser. Cardinho apresentou-se à frente do seu sexteto com João Mortágua no sax alto, José Diogo Martins no Fender Rhodes e sintetizador, Frederico Heliodoro no baixo eléctrico, Diogo Alexandre na bateria e Iúri Oliveira nas percussões. Uma “A Team” que em estúdio criou o que será, certamente, um dos discos do ano e que em palco, garante quem viu e ouviu, traduz essa obra de forma eficaz com uma apresentação dinâmica e com momentos arrebatadores. Para confirmar numa próxima oportunidade.
A estrela da noite era, no entanto, Bill Charlap. O “bebop pianist” — como o próprio se descreveu numa animada viagem de carrinha — trouxe consigo as “feras” Noriko Ueda, contrabaixista japonesa que integra o projecto Artemis (que é dirigido pela pianista Renee Rosnes, esposa de Charlap, e onde militam igualmente artistas como a saxofonista Melissa Aldana ou a vocalista Cécile McLorin Salvant, entre outras estrelas) e Carl Allen, um gigante que tocou com lendas como Benny Carter, Freddie Hubbard, Kenny Garrett ou Branford Marsalis, para não nos estendermos demasiado na exploração do seu avantajado currículo. Ora ter uma secção rítmica deste calibre a acompanhar o “bebop pianist” que foi próximo de Tony Bennett e que provou as suas mais valias em ensembles comandados por monstros sagrados como Gerry Mulligan ou Phil Woods é garantia de uma noite bem passada. E com a temperatura bem mais amena do que na jornada anterior, Charlap e companhia fizeram-nos crer estarmos no conforto de um pequeno clube de jazz em Manhattan a aplaudir uma sequência de standards que resulta num perfeito retrato da mágica relação que o jazz estabeleceu com o grande cancioneiro americano.
Charlap é um classicista consumado que muita gente acreditou ter vindo preencher o espaço que o desaparecimento de Bill Evans criou. Estudante dedicado do alquímico processo que transforma canções populares, da Broadway ou de Hollywood, em matéria jazz por excelência, Charlap nunca escondeu ser discípulo dos grandes que abriram caminho antes de si, mas na sua discografia como líder — que se estende já por mais de três décadas — há argumentos de sobra para o entendermos igualmente como um mestre. E ontem, perante uma plateia absolutamente rendida, com humor refinado e estilo absolutamente impecável, Charlap, Ueda e Allen mostraram que a arte do trio continua viva, vibrante e, muito sinceramente, absolutamente deliciosa, como um bom vinho a quem a passagem do tempo só faz favores.
Em “Caravan”, a clássica criação de Duke Ellington que é uma das melhores provas que se pode oferecer de que há temas com alcance universal, capazes de reverberar de forma intensa nos mais diferentes contextos, perante as mais distintas culturas, Charlap exibiu de forma plena todas as maravilhosas nuances do seu pianismo, mostrando que tanto na esquerda como na direita possui argumentos imbatíveis. É como se fosse capaz de soltar fogo de artifício de cada vez que um dos seus longos dedos percutem uma das teclas do Steinway, sempre a mil à hora, com um virtuosismo absoluto. Ouvi-lo num sistema de som de elevada qualidade e poder vê-lo no grande ecrã em que se projectam as imagens captadas em directo — muito preciosa a Go-Pro montada junto ao teclado, saliente-se — é um incrível espectáculo. Melhor mesmo só se estivesse a tocar na nossa sala, o que, há que admitir, provavelmente nunca acontecerá. Todos os aplausos que lhe foram oferecidos — e foram abundantes — foram obviamente mais do que merecidos. Um espectáculo na verdadeira acepçao da palavra. Volta sempre, Bill.
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